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Recentes reformas da Educação Básica e os tempos docentes: breve discussão

DELINEAMENTO, ORIGEM DO PROBLEMA E PERCURSOS METODOLÓGICOS

1.4. Recentes reformas da Educação Básica e os tempos docentes: breve discussão

Por volta da segunda metade do século XX, a América Latina foi tomada pelo pensa- mento liberal que gradativamente foi se espalhando por todo o continente, e abruptamente abortou o projeto nacionalista que se articulava na época, através de golpe militar e manuten- ção das elites no poder. Depois de mais de duas décadas, após o processo de abertura política e redemocratização dos países, essa corrente de pensamento se apresenta com uma nova con- figuração, uma fase do capitalismo orquestrada por países ativos europeus e pelos Estados Unidos, intitulada de neoliberalismo. Essa nova corrente política é marcada, dentre outras, pelas seguintes características: globalização da economia; fim das fronteiras econômicas; fim dos direitos sociais; desmonte do estado; inserção de empresas multi e transnacionais; compe- titividade; maximização dos lucros, através das tecnologias e engenharias racionalizadas.

A política neoliberal é constituída por uma dupla dinâmica: de um lado é uma alterna- tiva de poder, constituída por estratégias políticas, econômicas e jurídicas, orientadas para encontrar uma saída dominante para a crise capitalista; por outro lado, sintetiza um projeto ambicioso de reforma de nossas sociedades, “promove a construção e a difusão de um novo senso comum que fornece sentido e legitimidade às propostas de reforma impulsionadas pelo bloco dominante”, como explica Pablo Gentilli (1999, p. 65).

40 No que se refere à educação, conforme o autor, o neoliberalismo também passou a conduzir as políticas educacionais, por meio de reformas. Desse modo, a educação passou a ter um papel estratégico para o neoliberalismo. Sua função, dentre outras, é ampliar o merca- do consumidor; gerar a estabilidade política nos países com a subordinação dos processos educativos voltados para o interesse do mercado internacional; priorizar formação abrangente e o ensino tecnológico e profissionalizante.

Nesse contexto, para adequar a política neoliberal, instaura-se no Brasil e em toda a América Latina, a partir da década de 1990, um conjunto de reformas. As primeiras orienta- ções do bloco dominante foram divulgadas e impulsionadas pela Conferência Mundial sobre Educação para Todos, realizada em Jotiem, em março de 1990. O objetivo principal da confe- rência, cujo tema geral foi “A educação para a equidade social”, era orientar as reformas edu- cacionais dos países mais pobres e populosos do mundo (Dalila OLIVEIRA, 2004).

A autora argumenta que, para cumprir com os compromissos firmados na conferência, os países em desenvolvimento tiveram que mobilizar estratégias para elevar o nível de escola- ridade e de profissionalização da população, sem aumentar, na mesma proporção, os investi- mentos. Numa perspectiva mais ampla, Dalila Oliveira (2004) adverte que as reformas educa- cionais possuem um duplo enfoque: “a educação dirigida à formação para o trabalho e a edu- cação orientada para a gestão ou disciplina da pobreza” (p. 1131). Para dar conta dessa tarefa, os países em desenvolvimento tiveram que buscar novas estratégias de gestão, consultoria e financiamento do banco mundial.

Desse modo, a partir da segunda metade da década de 1990, surge no Brasil uma nova regulação das políticas educacionais, conforme Dalila Oliveira (2004). Dentre os fatores que indicam tais mudanças, é possível destacar: a centralidade atribuída à administração escolar nos programas da reforma, elegendo a escola como núcleo do planejamento e da gestão; o financiamento da educação, com a criação de um fundo específico para isso; a regularidade e ampliação dos exames nacionais de avaliação, bem como a avaliação institucional e os meca- nismos de gestão escolar que insistem na participação da comunidade. Um dos retrocessos, segundo a autora, é que o campo pedagógico, mais uma vez, passa a ser orientado pelos con- ceitos da administração: produtividade, eficácia, excelência, eficiência, dentre outros. Sendo assim, as reformas trouxeram consigo uma “padronização e massificação de certos processos administrativos e pedagógicos”, sob o argumento da organização sistêmica, do controle dos gastos e custos, garantia da suposta universalidade, da gestão escolar baseada na combinação de formas de planejamento e controle, associados à descentralização administrativa, dentre outras (p. 1133).

41 Numa outra perspectiva analítica, a crise sistêmica pela qual a educação vem passando nos dias atuais, deve-se não somente à imposição da reforma neoliberal, pois a problemática é mais complexa. Há, por exemplo, no interior das escolas, outros conflitos e tensões, oriundos de fraturas existentes no currículo e no método. As/os docentes,com suas certezas abaladas, convivem com o drama da continuidade e ruptura, ou seja, fazer o que sabem ou/e ousar em novas experiências. O desgaste, a falsa autonomia, as relações com indivíduos de gerações diferentes, sejam alunas/os e/ou professoras/es, fazem com que os atores vivam uma tensa inquietude. Destaca-se, ainda, neste cenário, que a expansão da educação básica aumentou o contingente de matrícula, mas as estruturas dos prédios escolares, as condições de trabalho, o salário das/os trabalhadoras/es da educação tiveram pífias elevações, quando essas ocorreram. O problema da educação nacional, em todos os seus níveis, tem constituído uma questão es- trutural que os gestores públicos têm se recusado a discutir, a enfrentar com a radicalidade necessária.

A expansão da educação básica, realizada nos moldes da globalização atual, do ponto de vista de Dalila Oliveira (2004), sobrecarregou professoras e professores em grandes medi- das, pois determinou a reestruturação do trabalho docente, passando a existir uma nova forma de organização do trabalho, de planejar, de avaliar, de elaborar projetos, além de papéis dis- tantes da formação docente, a saber: agora, mais do que nunca, é preciso conhecer a diversi- dade social, cultural e econômica das/dos discentes e suas famílias; é necessário compreender os seus problemas e conflitos sociais; participar de atividades para a promoção da cidadania e para implementação de políticas públicas; é preciso responsabilizar-se pela formação das/os discentes em todos os âmbitos. Além disso, as/os docentes estão ocupando funções das famí- lias e dividindo a socialização das crianças e jovens com as influências da mídia, com a inter- net e outras instituições cada vez mais presentes na vida social e nas sociabilidades infantis e juvenis.

Esta sobrecarga analisada pela autora desencadeia dois fatores que se tornaram comuns na profissão docente: de um lado, a ampliação das jornadas, ou seja, para aumentar os seus rendimentos, professoras e professores, em sua maioria, ampliam o número de aulas, turmas, disciplinas, transitam por diversas escolas, assumem atividades paralelas à docência, como nos explica Inês Teixeira (1998). De outro, ocorre a intensificação dos ritmos do trabalho, que segundo Michael Apple (1998), é acompanhada de dois processos históricos em desenvolvi- mento: a desqualificação do/da trabalhador/a e a separação entre concepção e execução no trabalho. Para o autor, a intensificação tem algumas características: destrói a sociabilidade, aumenta o isolamento e dificulta o lazer. Apple afirma que a crise financeira levou à escassez

42 de pessoal. Assim, uma gama mais diversificada de tarefas, de responsabilidade de outras pessoas, passou a ser desempenhada por uma só pessoa, simplesmente porque aquelas outras não estão mais na instituição. Nesse sentido, Apple atesta que os indivíduos precisam apren- der uma gama maior de habilidades, porém elas e eles parecem não ter tempo para conservar- se em dia com sua especialidade. Nesse ponto, ele salienta que a intensificação traz uma gran- de contradição: ao mesmo tempo em que os indivíduos devem ter mais habilidades, não con- seguem manter-se atualizados em sua especialidade.

De outra parte, a intensificação do trabalho, na expressão de Andy Hargreaves (1998), representa uma quebra, muitas vezes abrupta, na orientação para o lazer e para regeneração do corpo, esperada por todas/os as/os trabalhadoras/es, pois reduz o tempo de relaxamento após um dia de trabalho. A intensificação cria uma sobrecarga persistente que provoca redução na qualidade do serviço, fabrica corpos cansados, esgotados de jornadas duplas, triplas e até quá- druplas, no caso das/os profissionais que são responsáveis pelo trabalho da casa, especialmen- te as mulheres.

A sobrecarga de trabalho não é somente na escola, segundo Andy Hargreaves (1998), o tempo de preparação pode propiciar ganhos significativos, devido ao planejamento do traba- lho, à avaliação e acompanhamento das/os alunas/os. Contudo, os tempos destinados por lei, para esse fim, são irrisórios6, o que leva muitas/os docentes a trabalharem o dobro ou triplo do tempo especificado na legislação nacional. Dessa forma, trata-se do que Theodor Adorno (2009) chama de expropriação do tempo livre.

Nesses cenários, envoltas/os a tanto trabalho, como professoras e professores conse- guem regenerar as suas forças e compensar o seu corpo do cansaço diário? Como se sentem em seus tempos fora da escola, teoricamente seus tempos livres cotidianos, e que desafios são enfrentados para vivê-los? Como professoras e professores, com jornadas de trabalho diferen- tes, vivenciam os seus tempos livres cotidianos e quais as implicações dessa ampliação e in- tensificação do trabalho docente em suas vidas, sobretudo em seus tempos livres, estando e- las/es fora da escola?

De outro modo, a experiência cotidiana dos tempos de professoras e professores é con- traditória e complexa, devido à própria processualidade histórica e cultural em que se inscre- vem as relações de gênero. Enquanto a maioria dos homens se preocupa somente com a pro- dução, com o trabalho fora da esfera da casa, nos dias atuais as mulheres se envolvem com a produção e a reprodução. Elas assumem a jornada de trabalho na escola e continuam a traba-

6 A lei 11.738/2008 define que 1/3 da carga horária das/os professoras/es deve ser destinado ao tempo de prepa-

43 lhar quando chegam a casa, perpetuando o processo de desigualdades entre homens e mulhe- res. Nos termos de Helena Hirata (2008) e Elsie Fanger (2006), mesmo depois de lutas e con- quistas do movimento feminista, há rupturas e continuidades, especialmente quanto à divisão sexual e equânime do trabalho.

Tratando-se de um estudo sobre o magistério no Brasil, a problemática do gênero é crucial, pois atualmente as mulheres são maioria na Educação Básica, perfazendo um total equivalente a 81,5% do total do professorado brasileiro, atuando especialmente na Educação Infantil e nas Séries Iniciais do Ensino Fundamental. Esta situação só vai se alterando nos anos finais do Ensino Fundamental e no Ensino Médio, nos quais o percentual de homens na docência alcança os 36%7. Tais mudanças também tiveram por efeito, acentuar a discrimina- ção sexual. Christina Bruschini e Tina Amado (1988) argumentam que enquanto as mulheres ocupavam as vagas de professoras das séries iniciais, os homens ampliavam as suas carreiras, como professores das séries finais ou como diretores e inspetores das unidades escolares onde as mulheres lecionavam, mesmo porque delas era exigido para lecionar, apenas o domínio da leitura e da escrita. Somente anos depois, com a instituição da Escola Normal, ocorreu uma das poucas oportunidades, se não a única, de as mulheres prosseguirem seus estudos além do primário. Ela abrigou tanto mulheres que pretendiam lecionar efetivamente, como outras que buscavam apenas dar continuidade aos estudos e adquirir boa formação geral antes de se casa- rem. Quanto ao ensino secundário propedêutico, destinava-se aos homens, evadidos do magis- tério em busca de outras oportunidades e altos salários. Eles pretendiam prosseguir os estudos em nível superior, o qual não era permitido às mulheres.

Desse modo, a categoria de gênero é fundamental para a análise da docência enquanto profissão, bem como para a compreensão das tensões ocorridas atualmente na vida pessoal e profissional de mulheres e homens na sociedade moderna. Gênero é um conceito relacional, entre opostos e iguais, constituindo relações de gêneros e poder. Ademais, os estudos de gêne- ro representam uma grande saída diante dos impasses provocados historicamente, acerca da condição da mulher e das teorias que procuram as causas originais da dominação do sexo masculino. Entretanto, estudar gênero não significa estudar apenas mulheres, mas também os homens e as orientações e performances de ambos, bem como suas intersecções.

7 Os dados são da pesquisa realizada pelo INEP, através do Educacenso/2009, que identificou o total de

1.977.978 professoras e professores atuando na Educação Básica brasileira. Além disso, deve-se destacar, contu- do, que essa realidade nem sempre foi assim. A feminização do magistério é um fenômeno do século IX, através da Lei de 15 de outubro de 1827, a qual concedeu à mulher o direito à educação, com a criação de escolas de primeiras letras para meninas. Anos depois, surgiram também as primeiras vagas para as mulheres no magistério primário, porque até então era uma profissão masculina.

44 Partindo do exposto, a partir da perspectiva dos gêneros, é de suma importância discu- tir e refletir sobre as diferenças, semelhanças e intersecções reveladas na configuração dos tempos livres docentes, bem como os elementos e circunstâncias imbricados nessas relações.