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Tempos de trabalho para complementar a renda

NOS TEMPOS COTIDIANOS DOCENTES: O ESPECTRO DO TEMPO LIVRE

Grafico 30: Prática religiosas/Periodo semanal – por sexo

3.1. Trabalhos da docência realizados fora da escola

3.2.3. Tempos de trabalho para complementar a renda

O trabalho de renda complementar é desenvolvido por 15% das professoras e profes- sores participantes da pesquisa, contudo, e novamente, as mulheres se desdobram mais do que os homens nessas atividades, representando 80% das/dos que a praticam.

As atividades mais comuns realizadas pelas mulheres são: cabeleireiras; consultoras de Avon, Natura, Boticário; farmacêuticas; garçonete na alta temporada; aulas particulares em casa, dentre outras. Já os homens atuam como garçons, no período de alta temporada; educa- dor físico, em academias; consultor de imóveis; vendedor de produtos agropecuários, dentre outros. Todos os sujeitos que declaram desenvolver outra atividade de renda complementar já trabalham 40h por semana, na escola, o equivalente a 08h por dia, fora os tempos dedicados ao trabalho da docência fora da escola, à reprodução social, ao cuidado de si, dentre outros. Desse modo, é possível pensar que conciliar esses tempos excessivos de trabalho na docência, na casa e outros, para aumentar a renda, é um grande malabarismo. Ainda que esses trabalhos extra para ampliar a remuneração sejam pontuais, mesmo ocorrendo geralmente em finais de semana, nos turnos livres, ou nos finais de turnos de trabalho na escola, trata-se de um exces- so, de uma exaustão. Pode-se perguntar, aqui, sobre como esse excesso de tempo de trabalho repercute na docência, na qualidade de uma aula, nas relações com os educandos, as quais já são, em si mesmas, complexas, desgastantes, como algo do envolvimento humano, psíquico, intelectual, emocional?

Ainda quanto às atividades para elevar a remuneração, é significativo esse relato da professora Ana:

Eu trabalho 40h na escola, à tarde e à noite. Pela manhã fico em casa cui- dando de minha filha menor e da casa. Nesse mesmo turno aproveito para organizar a minha atividade complementar, pois eu vendo confecções, peças íntimas, bijuterias, peças em ouro e prata, dentre outras coisas. É um sufoco conciliar isso tudo. Mesmo porque eu não gosto de faltar na escola. Eu preci- so fazer compras, então já pedi que minha folga fosse sempre na sexta-feira, então posso viajar na sexta de madrugada para fazer compras. (...) Já faz mais de quinze anos que faço as duas atividades e nunca deixei de cumprir com as exigências da escola. Também, para isso, vou dormir de madrugada, não durmo, às vezes. Deixo de estar com as minhas filhas, minha família, mas se não fosse assim, hoje eu não teria a minha casa. O salário de profes- sora é muito pouco para tudo (Mensagem da professora Ana, pela internet, em 10 de junho de 2013).

Enquanto a professora Ana trabalha com vendas, a professora Luz dá aulas particula- res, para complementar a renda, como relata: “Por falar em dinheiro, resolvi dar cursos ex-

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tras para alunos da faculdade, na sexta à noite e no sábado à tarde” (Mensagem de Luz, pela

internet, p. 7, em 12 de outubro de 2013). Essa renda geralmente é para aplicar em algum pro- jeto. No caso de Ana, foi a construção da sua casa; já no caso de Luz, foi para ajudar na cons- trução da casa da mãe.

Em nenhum dos relatos encontramos professoras e professores pensando em trabalhar para viajar, curtir momentos com a família, pois a justificativa sempre está relacionada à sub- sistência. Como a professora Ana mesmo salienta, “o salário de professora é muito pouco

para tudo”. Professora Luz dá aulas de produção e interpretação de textos para alunas/os que

ingressaram no ensino superior e não sabem redigir, e para alunas/os que pretendem participar de seleções públicas, vestibular e ENEM. Ela conta:

Dezembro começou com atividades extras. Não sei se contei que eu e meu irmão decidimos construir a casa de nossa mãe, e para aumentar a renda co- loquei umas carteiras escolares em casa, a fim de dar aulas particulares. As- sim, estou dando aula para alunos que vão fazer vestibular ou concurso ou que desejam aprender a produzir textos mais elaborados (Mensagem de LUZ pela Internet em 06 de dezembro de 2013).

O professor Tárcio é educador físico e trabalha numa escola municipal pela manhã e à tarde. À noite trabalha em uma academia. Segundo ele, “viver somente com o salário da do-

cência seria muito difícil”, mesmo contando com a renda da sua esposa, que também trabalha

fora, pois moram de aluguel e têm uma filha pequena (entrevista concedida pelo professor Tárcio, em 10 de dezembro de 2013). É muito baixo o salário de um professor da Educação Básica, diante das necessidades elementares daquelas/es docentes, cidadãs/ãos, mães e pais de família. Ainda nesse subconjunto, das/dos colegas que completam sua renda com outros tra- balhos remunerados, a professora Janine relata:

Ah, eu vendo quase tudo. Não dá para criar duas crianças com o dinheiro só do magistério, né? As minhas duas filhas estudam na escola particular, não que seja a melhor, mas pelo menos tem aula todos os dias. Nós temos os me- lhores professores da cidade na rede municipal, por exemplo, mas o proble- ma é que no final do ano não tem 160 dias de aula. As aulas começam em março e terminam em dezembro, se você tiver sorte de ter um filho com um professor efetivo, porque se for contratado, em novembro eles dispensam to- do mundo. Além disso, alimentação em Porto Seguro é o olho da cara, eles exploram os turistas e acabam explorando os moradores também, é tudo um preço só. Sim, como eu tava falando, eu vendo tudo: natura, calcinha, cueca nem tanto, porque homem só compra uma depois que a outra acaba (risos). Vendo tupperware, bijuteria, só não vendo minhas filhas, Deus me livre! (ri- sos). Ah, Jequeti, Avon, enfim, é preciso vender de tudo, porque uma coisa que não te dá 10% dá pelo menos o perfume dos filhos. Aquilo que não deu

175 uma renda e tanta, deu pelo menos um calcinha, um batom (Entrevista con- cedida pela professora Janine, em 10 de dezembro de 2013).

Os tempos cotidianos docentes fora da escola, e mesmo dentro dela, estão inscritos em seus corpos, nos seus pensamentos, em suas racionalidades e emoções, em experiências subje- tivas diversas, nas quais tempos e sentimentos coexistem entrecruzando-se, sobrepondo-se, interrogando-se, enlaçados em sonhos, nas angústias, em alegrias e dores, em reflexões e dú- vidas e muito mais. São diversos e mutantes, pois na docência e tudo mais, um dia não é igual ao outro.

Quando indagados especificamente sobre como se sentiam quando ocupavam os seus tempos livres com trabalho, nossas/os colegas, novamente, se diferenciaram, misturando-se os sentimentos. Alguns/as disseram que se sentem angustiadas/os; cansadas/os; revoltadas/os; obrigadas/os; exploradas/os; roubadas/os; tristes; sem alternativa, dentre outras mais. Vê-se que a experiência dos tempos cotidianos docentes acompanha afetos e emoções que vivem no corpo, na experiência subjetiva, onde tempos diversos coexistem, entrecruzando-se, sobre- pondo-se, manifestados nos sonhos, nas angústias, nas alegrias e tristezas, na reflexão.

Por essas vias, vê-se com total nitidez, a suspensão do tempo livre, pois esse tempo se transforma em atividade laboral, conforme os termos de Jurgen Habermas (1982). Mas isso ainda é pouco, quando procuramos compreender os tempos docentes fora da escola, pois ain- da se vê neles, configurações outras. Trata-se de frações de tempos livres forçadas, muitas vezes obtidas pela exigência familiar, pela transgressão dos tempos de trabalho e até mesmo pela exigência do próprio corpo. Podemos também observar que são atividades rotineiras, repetitivas, com poucas novidades, sendo a maioria delas com familiares e com colegas de trabalho, desse modo, há mais uma sensação de angústia por assistir os supostos tempos livres invadidos pelo trabalho e poucos tempos imprensados para as sociabilidades, lazer e outras práticas culturais, do que a compensação das sequelas deixadas no corpo pelo trabalho sem fim, esses e outros aspectos das temporalidades docentes, discutiremos no próximo capítulo.

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CAPÍTULO 4

SOCIABILIDADES, PRÁTICAS CULTURAIS E LAZER