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III- Enquadramento da Prática Profissional

4.1. O ensino da EF: conceções e entendimentos

4.1.2. Legitimação da Educação Física no currículo escolar

Graça (2012, p. 9) refere que a EF é uma disciplina constituinte do currículo escolar que se renova continuamente nos discursos de prática. É um terreno partilhado e disputado por tradições, comunidades de prática e retóricas de legitimação. É, por isso, importante atribuir atenção às suas fontes de legitimação, à sustentabilidade, ao seu valor educativo e ao seu contributo para o fortalecimento da Educação.

Não é novidade que a EF tem sido desvalorizada pela sociedade, na medida em que é considerada uma disciplina pouco relevante e, por isso, dispensável. Segundo Renson (citado por Batista e Queirós, 2015, p. 33), a EF “tem assumido um significado marginal ou secundário para a educação”, sendo que este posicionamento decorre da crença de que a EF apenas trata o físico (Batista & Queirós, 2015), o que não é verdade. Se tivermos em consideração as diretrizes da American College of Sport Science (ACSM), um cidadão para ser considerado fisicamente ativo deve realizar atividade física de intensidade moderada a vigorosa entre trinta e sessenta minutos por dia, em cinco dias por semana. O tempo semanal total destinado à EF é de cento e trinta e cinco minutos semanais totais (não de prática efetiva) e em alguns casos menos tempo, o que não chega nem perto desse tempo. Isto significa que, apesar de a EF ter uma “palavra a dizer” relativamente à promoção da saúde e adoção de estilos de vida ativos e saudáveis, a dimensão física, no que respeita aos ganhos para a saúde, não constitui o valor central desta disciplina. Neste âmbito, Sallis et al. (1997) reporta que a duração e intensidade das aulas de EF se situa nos três minutos de atividade moderada a vigorosa por aula. Estes baixos valores servem “de argumento para deixar de se entender os objetivos de saúde e aptidão física como meras consequências naturais ou subprodutos de um ensino de habilidades desportivas que não equaciona deliberadamente nem controla a quantidade e qualidade da atividade física.” (Graça, 2012, p. 105). Assim sendo,

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não é de todo correto afirmar que a EF, por si só, seja uma forma de combater o elevado sedentarismo e obesidade infantil registados nos dias de hoje no nosso país. É correto, sim, afirmar que a saúde é um objetivo incontornável da EF mas numa perspetiva de contribuir para a promoção de hábitos de vida saudável e ativa.

Para Graça (2016, p. 15), a EF, tal como qualquer outra disciplina constituinte do currículo escolar, apresenta um grande valor educativo que, por sua vez, se afirma a partir do aumento da capacidade de compreender e atuar no mundo, do contributo para a melhoria do bem-estar e da realização das pessoas e da melhoria da sociedade. A dimensão proposicional (sobre o movimento), a dimensão funcional (por entre o movimento) e a dimensão experiencial/autotélica (apresenta objetivos para além de si própria) englobam as suas dimensões educativas (Arnold, 1980). É uma disciplina emancipadora, no sentido que prepara para uma participação relevante, humana e autónoma na vida social e cultural e dá oportunidades de sucesso a todos, tendo como referência o quadro institucional da escola. Nenhuma instituição social consegue cumprir melhor a missão da EF do que ela própria (Crum, 1993). De facto, “A incumbência pedagógica própria e insubstituível da educação física liga-se à especificidade da sua matéria, àquilo que só ela está em condições de atender e possibilitar” (Graça, 2016, p. 15). Esta disciplina deve ser vista como um meio, por excelência, de conhecer, trabalhar, aprender e desenvolver o corpo utilizando o movimento e o desporto como ferramentas principais. Não existe nenhuma outra disciplina no currículo escolar que permita lidar com o próprio corpo e aprender a utilizá-lo. A EF deve ser vista como uma disciplina essencial no currículo também porque ao desenvolver as capacidades físicas e condicionais permite aos alunos desenvolver competências que os ajudem a participar em atividades físicas, desportivas e corporais e a superar todos os constrangimentos físico-motores existentes, inevitavelmente, na vida diária.

Cada vez mais, os elementos constituintes da nossa sociedade valorizam o seu corpo trazendo essa valorização repercussões bem vincadas ao nível da autoestima, autoconfiança, autorrealização (Rose, 2001). A cultura corporal ou

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de movimento assume uma dimensão de tal forma significativa na vida do cidadão atual que a escola deve ser chamada não só a reproduzi-la, como também a promovê-la, de modo a que o indivíduo se aproprie dela, criticamente, para exercer a sua cidadania. Para Bracht (1999) a introdução dos indivíduos no universo da cultura corporal ou da cultura do movimento de forma crítica é tarefa da escola e mais especificamente da EF. Por conseguinte, a EF deve ser entendida como uma disciplina curricular que utiliza o desporto como uma forma específica de lidar com o que Bento (1999, p. 66) chama de “corporalidade”, enquanto sistema de comportamentos culturais associados a conceções, regras e normas socioculturais. Assim, é fundamental que a Escola seja chamada a desenvolver nos alunos a cultura corporal, não de uma forma reprodutiva, mas sim com uma postura crítica e reflexiva, sendo a EF um meio por excelência para o fazer.

Para Crum (1993), a EF adota a aquisição da condição física, a estruturação consciente do comportamento motor e a formação pessoal, social e cultural como os seus papéis principais, isto é, a EF deve basear-se nos conteúdos do desporto, enquanto fenómeno cultural, social e biológico. Logo, é necessário incorporar atividades, baseadas nos valores do desporto, com intencionalidade educativa interligadas ao campo cultural e, ao mesmo tempo, suscetíveis de proporcionar prazer aos alunos. Essas práticas devem promover a partilha de responsabilidade com outras áreas tendo em vista a formação de cidadãos, a descoberta das suas potencialidades e o desenvolvimento das suas competências. Como advogam Batista e Queirós (2015, p. 39), a EF “é a única disciplina em que o exercício físico é um meio fundamental para atingir objetivos educativos”.

Logicamente, existe sempre espaço para melhorar. A EF, para aumentar a sua qualidade, necessita de adotar novas metodologias e estratégias que interliguem novas experiências e aprendizagens que dão significado cultural àquilo que se faz, pois a construção do conhecimento e da aprendizagem situam- se num contexto histórico e cultural (Batista & Queirós, 2015). São necessárias melhorias na qualidade dos processos de ensino e aprendizagem para formar

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cidadãos desportivamente cultos e fisicamente educados (Hardman, citado por Batista & Queirós, 2015, p. 33). Essa mudança poderá passar pela utilização de modelos de ensino mais centrados no aluno uma vez que estes promovem mais um ensino cooperativo, significativo e direcionado às suas experiências culturais. Como menciona Graça (2012, p. 110) “Dispomos hoje, felizmente, de alternativas curriculares robustas e validadas, tanto no plano teórico como no terreno da prática, para encetar um processo de revivificação do ensino da educação física”.

Na teoria da aprendizagem sociocultural defende-se que a construção do conhecimento dá-se a partir de um contexto social sendo, por isso, a comunicação e a interação fundamentais para a aprendizagem (Säljö; Wertsch, citados por Batista e Queirós, 2015, p. 37). Importa ainda ter em conta que a vontade de aprender e a própria aprendizagem se relacionam com o significado que cada indivíduo atribui ao mundo que o rodeia (Rogoff, Säljö, Wertsch citados por Batista e Queirós, 2015) e que o conhecimento é construído a partir de um contexto histórico e cultural dando, assim, ênfase à extrema importância das práticas sociais na aprendizagem.

No que respeita ao desporto, são utilizadas várias formas de interação, sejam elas verbais ou não verbais e nas dimensões física ou comunicacional (Säljö, 2009), o que leva a que a comunicação seja utilizada concomitantemente ao movimento e que, por isso, se crie uma ponte entre a aprendizagem cognitiva e a aprendizagem corporal. Desta forma verifica-se que a aprendizagem e o conhecimento surgem a partir da interação com o meio envolvente onde “o saber é visto como um saber experiencial, que envolve os sentidos, as perceções, a ação mente-corpo e a reação. Como atestam Batista e Queirós (2015, p. 38) “conhecer este valor ao corpo no processo educativo implica reconhecer o corpo como fonte de conhecimento”. Assim, dá-se a desconstrução da dualidade corpo-mente na medida em que no processo de aprendizagem não se deve pensar que são duas coisas distintas. É imprescindível reconhecer o corpo como um meio para adquirir conhecimentos e entendê-lo como um todo onde estão inseridos processos físicos e cognitivos que estão interligados como um só.

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Nesse sentido, facilmente se percebe que a EF extravasa o físico, entendido apenas como um meio para realizar movimento, incorporando também o relacionamento e o sentimento, utilizando o corpo para desenvolver as dimensões física, socio-afetiva e cognitiva.

No meu entendimento, a diminuição da carga horária e não contabilização da nota de EF para o cálculo da média final do ensino secundário leva-me a acreditar que a disciplina assume um papel secundário no currículo escolar. Essa descredibilização decorre da crença social de que a EF não é direcionada para o desenvolvimento cognitivo mas para o desenvolvimento das capacidades físicas como a força, a resistência e a velocidade e para a melhoria da saúde.

Face ao exposto considero que a EF tem sido injustamente tratada pelas pessoas que não lhe dão valor educativo. Para mim, não há dúvidas de que esta disciplina vai muito para além do físico. No seu contexto, o desporto emerge como matéria de ensino onde a corporalidade, os sentimentos e o relacionamento individual e social são as principais formas de atuação pedagógica dos professores e de aprendizagem dos alunos. Neste entendimento, Bento (1999) refere que é dever do professor de EF ajudar o aluno a compreender os seus sentimentos e o seu relacionar-se na esfera da cultura do movimento e do desporto enquanto formas específicas de lidar com o corpo, ou seja, enquanto sistema de comportamentos culturais, com normas e regras específicas.

Este conjunto de conceções e entendimentos sobre o que é ser professor, quais os seus principais desafios e como este deve atuar de modo a promover o sucesso do processo de ensino-aprendizagem, torna muito importante o processo de planeamento e preparação da sua atividade profissional.

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