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2 A CARTOGRAFIA COMO CAMPO DE PESQUISA

2.3 Linguagem cartográfica e processos de aprendizagens

O processo de aprendizagem da linguagem cartográfica, assim como de qualquer outra linguagem, depende do meio cultural onde se vive e de como as pessoas se relacionam. A aquisição das habilidades para operá-la deve se articular ao processo de ensino e aprendizagem que ocorre, sobretudo, no contexto escolar, espaço privilegiado para o desenvolvimento formal dos indivíduos (CAVALCANTI, 2006). O papel do professor de Geografia assume uma relevância significativa, tendo em vista que dentro do currículo escolar é a disciplina de Geografia que se responsabiliza por desenvolver as noções espaciais fundamentais que serão exigidas ao longo de toda a vida do indivíduo.

É o professor de Geografia, o sujeito mediador do ensino da linguagem cartográfica na educação básica. É ele quem deve conduzir o processo de ensino para que a maioria dessas pessoas possa ler, interpretar e fazer uso dos mapas como instrumento necessário em suas vidas. Nesse caso, é preciso considerar que, para o professor promover essa construção com seus alunos no contexto escolar é necessário o domínio dessa linguagem, adquirida ao longo de seu processo de formação, tanto nos cursos de formação inicial e/ou continuada, como em sua experiência cotidiana.

Admitindo a importância fundamental do professor de Geografia no processo de formação dos alunos quanto às noções espaciais e domínio dessa linguagem espacial, questiono os motivos que têm contribuído para os problemas do ensino, que ainda persistem na aprendizagem da Cartografia na escola, cujos reflexos se estendem para além do ambiente escolar e atingem todo o cotidiano social e profissional dos indivíduos. Mesmo sabendo que várias práticas pedagógicas têm sido adotadas por professores que atuam no ensino fundamental é necessário perguntar: Por que estudantes, ao ingressarem no ensino médio, ainda apresentam tantas dificuldades em estabelecer raciocínios analíticos elementares de representações cartográficas e continuam com dificuldades em relação à leitura e interpretação dos mapas?

Isso leva a se considerar que as metodologias desenvolvidas para o ensino dessa linguagem têm se mostrado ineficazes ao longo dos tempos e que isso pode estar relacionado a duas questões inter-relacionadas: uma de ordem metodológica, em que os professores de Geografia do ensino básico privilegiam o ensino da Cartografia apenas como um conteúdo técnico e não como linguagem espacial, e outra associada a lacunas no processo de formação desses profissionais, em termos de domínios conceituais e procedimentos metodológicos.

O que se percebe é que, quando os professores de Geografia demonstram problemas na compreensão, ou não dominam alguns dos conceitos básicos relacionados a noções espaciais como o de localização, orientação, escala e legenda, e não conseguem estabelecer suas relações em conjunto, comprometem, também, o ensino e a compreensão dos seus alunos. Por isso, é importante que qualquer proposta metodológica considere o domínio que o professor tem em relação a essas noções bem como aquele da leitura e interpretação do mapa. É importante, considerar também, a possibilidade de aplicação efetiva de uma metodologia em sala de aula respaldada por uma fundamentação teórico-epistemológica de ensino correspondente à ciência geográfica, que dê suporte às práticas dos professores.

As Leis de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) e os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) estabelecem que a Cartografia seja tratada como um eixo temático, e que a partir dele se estabeleçam múltiplas relações conceituais. Ao contrário dessa orientação, o que se verifica, normalmente, nos cursos de graduação em licenciatura de Geografia, é que a Cartografia é tratada como um conteúdo técnico pulverizado dentro de algumas disciplinas do currículo. É essa forma de abordagem que depois é repetida pelos professores, em sua atuação profissional. Apesar de alguns cursos de graduação no Brasil buscarem seguir essas diretrizes curriculares, dando ênfase às exigências dos documentos reguladores, o que se verifica é que a maioria dos cursos de licenciatura em Geografia não prioriza, em suas matrizes curriculares,

a educação cartográfica (ABREU e CARNEIRO, 2006), ou ainda, que ela esta descolada do sentido de linguagem que, posteriormente deve ser mediado aos estudantes do nível básico. Nesse quadro em que se dá pouca ênfase à educação cartográfica na graduação, a formação fica prejudicada e pode comprometer o melhor desenvolvimento do ensino e aprendizagem da linguagem cartográfica na escola. Como constataram Abreu e Carneiro (2006) em pesquisa realizada em faculdades e escolas públicas, há uma relação direta entre o quê e como se aprende durante a sua formação e o quê e como se desenvolve o que se aprendeu na prática de sala de aula.

Outra constatação observada no cotidiano escolar é o crescente desinteresse e desencanto de estudantes em relação ao aprendizado de conhecimentos sistematizados pelo currículo escolar, não somente de Geografia ou de Cartografia, mas de forma geral, o que tem sido amplamente relatado nos meios de comunicação e em pesquisas sobre evasão escolar publicadas pelo Ministério da Educação - MEC (BRASIL, 2010). Do ponto de vista prático, essa circunstância no meio escolar, me instigou a buscar alternativas de ensino e aprendizagem que estimulem e despertem o desejo e a curiosidade em aprender conceitos que sejam significativos para a vida dos alunos, especialmente aqueles ligados à linguagem cartográfica.

Em se tratando das questões metodológicas no ensino, Geraldi (1984, p. 42) destaca que para qualquer consideração específica sobre a atividade de ensino, é preciso que se tenha presente que toda e qualquer metodologia articula uma opção política – que envolve uma teoria de compreensão e interpretação da realidade – com os mecanismos utilizados em sala de aula.

As principais orientações pedagógicas aos professores, contidas nos estudos publicados sintetizam a necessidade de o aluno exercer a função de mapeador, partindo do espaço conhecido. Além de saber ler e interpretar os mapas prontos, o aluno deve produzir e utilizar mapas mentais, representando trajetos, como o da casa-escola, sala de aula, escola, quarteirão, bairro, cidade, entre outros. Assim, trabalhar com diferentes recursos visuais, uma vez que tais experiências facilitam a compreensão das representações cartográficas tanto dos espaços próximos quanto dos mais distantes, desconhecidos por eles (ALMEIDA, 2000).

As orientações contidas nos PCN - (BRASIL, 1998) destacam que ao final do 3º ciclo (5ª e 6ª séries, atuais 4º e 5º anos), o aluno reconheça, no seu cotidiano, os referenciais espaciais de distância, de modo que se desloque com autonomia e represente os lugares onde vive e se relaciona. Mas, deve-se ter o cuidado para o processo de orientação na construção de mapas pelos estudantes, pois é necessário respeitar a noção de espaço da criança de acordo

com seu desenvolvimento cognitivo (Almeida, 2000). Entretanto, desde o primeiro ciclo do ensino fundamental, é importante que os alunos conheçam alguns procedimentos que fazem parte do método de operar da Geografia como, observar, descrever, representar e construir explicações. Ainda, como relata Almeida (2000), o trabalho com a linguagem cartográfica deve considerar o interesse que as crianças têm pelas imagens, sobretudo agora em que há forte influência das tecnologias digitais com recursos visuais disponíveis no ciberespaço, além de seus conhecimentos prévios essenciais para a aprendizagem cartográfico-geográfica.

Nessa perspectiva, a Cartografia ensinada no ambiente escolar, pode contribuir para a formação dos estudantes, pois, ao desenvolver habilidades para ler e interpretar os mapas capacita-os a análises de diferentes pontos de vista e compreensão de diferentes representações geográficas. Por isso, a Cartografia deve ser considerada não apenas como conteúdo trabalhado, repassado pelos professores, mas como uma linguagem que requer metodologia. Deve ser encarada como uma linguagem gráfica, aprendida pelo estudante e usada como forma de expressão e comunicação em seu cotidiano (NEVES, 2002, p. 20).

Essa consideração trouxe motivo para uma reflexão sobre o processo de formação e atuação de um grupo de professores que trabalham nesse nível de ensino, no sentido de buscar pistas para o melhor entendimento das opções metodológicas privilegiadas por eles em seu dia a dia com seus alunos no ensino da Cartografia escolar. Na sequência deste trabalho há uma proposta experiência didática baseada em atividades práticas de construção e uso de mapas que possam ser aproveitadas em ações futuras.

A concepção da Cartografia como linguagem é fundamental para enxergarmos os atributos de um mapa e construirmos os significados que nos interessa durante sua leitura. Nesse sentido, tratar a Cartografia como linguagem espacial é muito diferente de abordá-la apenas como um conteúdo. Ao tratar a Cartografia apenas como um conteúdo de Geografia, na maioria das vezes, busca-se entender os conceitos de escala, projeção cartográfica, curva de nível, sistemas de coordenadas e outras noções espaciais como as de localização e orientação de forma isolada, sem conexões entre si e sem interações com a realidade representada em um mapa. Dessa forma esses conceitos não são apreendidos de forma significativa pelos alunos, tendo em vista que estes não “veem” sentido ou significado naquilo que está estudando. É como analisar uma frase ou uma oração separando-a em partes e decifrando sua sintaxe apenas; o leitor pode até entender os conceitos de forma isolada, mas não consegue criar nenhuma relação de significados com o que está lendo ou estabelecer relações entre os conceitos apresentados.

Por outro lado, ao tratarmos a Cartografia como uma linguagem, e o mapa como uma representação material dessa linguagem espacial, busca-se compreender esses conceitos em uma totalidade. Não se trata de buscar os significados em si mesmos, de forma isolada, mas no conjunto impresso no mapa e percebido de forma instantânea como uma unidade a ser analisada.

Essa compreensão, do mapa como a materialização dessa linguagem, pode ser apreendida nos estudos sobre linguagem desenvolvidos ao longo dos tempos. Uma das concepções mais utilizadas, e que é peça fundamental nos estudos da semiologia gráfica no ocidente baseia-se na obra de Saussure (SILVA, 2011). Segundo esse teórico um signo é uma relação entre um significante, que pode ser uma letra, palavra, um som, uma imagem acústica ou um grafema, e um significado, ou seja, um conceito a ele (signo) relacionado. Trata-se de um conjunto de formas e suas regras de combinação (sintaxe), sendo que todo símbolo que possui um sentido pode ser considerado um signo linguístico e uma das principais características do signo linguístico é a arbitrariedade que permite que os significantes possam ter diferentes significados (SILVA, 2011).

Em estudos sobre a concepção de linguagem desenvolvida por Bakhtin, Ribeiro (2006) propõe que o significado é uma impossibilidade teórica, e destaca que

Um signo, não tem um significado, mas receberá tantas significações quantas forem as situações reais em que venha a ser usado por usuários social e historicamente localizados. Em uso, a língua é muito diferente do seu modelo teórico. Para a linguística um signo tem um significado. Sabemos, entretanto que, ao falar, nós estamos diariamente modificando, acrescentando, excluindo, torcendo os significados codificados pela língua (RIBEIRO, 2006).

Assim, apoiando-se nas proposições de Bakhtin sobre linguagem, Ribeiro (2006) afirma que a leitura exige “adentrar de cabeça no tema e não ficar catando milho nos dicionários, escritos ou não”. Ler é tentar entender, recriando as circunstâncias em que o material foi pensado e escrito ou desenhado; é adentrar pelas possibilidades culturais da época; é comparar a sociedade em que o texto foi escrito com aquela em que ele é lido; é construir um mundo imaginário equivalente àquele que habitou o construtor antes, durante e depois da escrita. Da mesma forma, ler o mapa é compreender todo o seu enunciado, se não o alcançarmos, a leitura se frustra e se torna apenas um exercício maçante de decodificação simbólica (RIBEIRO, 2006).

Ao aproximarmos a concepção de linguagem elaborada por Bakhtin aos estudos da linguagem cartográfica, podemos conceber o mapa como uma unidade (ou enunciado) básica

que materializa os vários conceitos envolvidos na linguagem cartográfica. Nesse sentido, para os estudos de Cartografia escolar, a unidade básica não pode ser o signo, pois este pode ser resultado de uma construção teórica sem a presença dos sujeitos envolvidos na interlocução. Ao invés de analisar o signo de forma isolada deve-se debruçar sobre o mapa como um todo, entendendo-o como uma unidade que permite uma interação entre quem o fez e quem o está usando. Nessa direção, as concepções baseadas nos estudos de Vigotsky (2009) nos mostram que os conhecimentos que adquirimos ao longo de nossa vida são apreendidos por meio de alguma relação com o mundo ao nosso redor. Essas relações podem ser diretas, quando temos uma experiência concreta com alguma coisa e aprendemos sobre ela, ou indireta, quando as relações são estabelecidas por meio de signos ou mediação simbólica. Quando se trata de uma relação direta, o conhecimento é apreendido a partir de uma experiência concreta com os objetos, ou seja, se, por exemplo, queremos saber a distância física entre duas cidades podemos medir a partir de um instrumento de medida como uma trena, uma fita métrica ou outro sistema baseado em tecnologias modernas de recepção de informações digitais satelitizadas como o GPS.

A maioria dos conhecimentos é apreendida a partir de mediações simbólicas, realizadas com uso de alguma forma de linguagem, que desenvolvemos ao longo das interações com o meio cultural em que vivemos, como por exemplo, a linguagem cartográfica. Usando o exemplo anterior, poderíamos saber a distância aproximada entre as duas cidades a partir do uso da escala representada num mapa, sem precisar medir diretamente no local. A escala do mapa representa de forma objetiva, portanto generalizada, a mediação simbólica entre a distância representada no mapa e sua correspondência no espaço real. Em seus estudos, referindo-se sobre a língua como instrumento de comunicação, Vigotsky nos alerta para o fato de que a linguagem simbólica é construída culturalmente e sua compreensão possibilita a classificação, nomeação e finalmente a generalização no mundo. A palavra, como função simbólica, é carregada de significado social e cultural (Vigotsky, 2009), assim como a linguagem escrita, a matemática, ou a linguagem musical. Transferindo essa concepção para a linguagem cartográfica, pode-se dizer que o mapa, portador de signos, com funções simbólicas estabelecidas culturalmente, também é um produto carregado de significado social e cultural.

Em seu livro, A construção do pensamento e da linguagem, Vigotsky esclarece que o significado, além de ser um componente essencial da palavra é, ao mesmo tempo, um ato de pensamento, pois o significado de uma palavra já é, em si, uma generalização. Ou seja, é no significado da palavra que o pensamento e a fala se unem em pensamento verbal. É no

significado que se encontra a unidade das duas funções básicas da linguagem: o intercâmbio social e o pensamento generalizante. São os significados que vão propiciar a mediação simbólica entre o indivíduo e o mundo real, constituindo-se no "filtro" por meio do qual o indivíduo é capaz de compreender o mundo e agir sobre ele. Como os significados são construídos ao longo da história dos grupos humanos, com base nas relações dos homens com o mundo físico e social em que vivem, eles estão em constante transformação.

Todo o sistema simbólico, presente nos mapas, deve ser ensinado por profissionais com formação adequada, que facilitem a internalização desses conhecimentos, o que amplifica a importância da formação do professor de Geografia da educação básica. Ele é o profissional responsável por fazer a mediação no processo de compreensão e interpretação da realidade espacial com os alunos, por meio de um mapa. Identificar as diferentes linguagens e seus recursos expressivos como elementos de caracterização dos sistemas de comunicação é uma das habilidades mais importantes exigidas dos alunos do ensino básico (MEC, 2010). Portanto, se são exigidas dos alunos, essas habilidades precisam ser dominadas também pelos professores que atuam nesse nível de ensino.

Localizar o lugar onde estamos e aquele onde outros objetos se encontram, sabermos nos orientar em relação a outros lugares ou objetos e escolhermos o melhor caminho durante um deslocamento são competências vitais em nossa existência. Essas competências envolvem o domínio de noções espaciais como a percepção da distância, localização e orientação, além da capacidade de, por meio da linguagem abstrata presente nos mapas, relacionar o significante e o significado, tendo condições de refletir sobre uma dada realidade socioespacial.

Essas habilidades são construídas socialmente, no meio onde vivemos e também de forma sistematizada no ambiente escolar. Na escola a apreensão desses conceitos, e habilidades para operá-los, é desenvolvida ao longo de toda a vida escolar. Outras disciplinas participam desse processo, mas é a Geografia escolar por meio da linguagem cartográfica que se responsabiliza pelo ensino que envolve as representações de imagens do mundo, nos mapas.

Nessa perspectiva, a Geografia é a disciplina, dentro do escopo do currículo escolar, que deve desenvolver o ensino de leituras e interpretação de mapas, para que as pessoas possam ter sua cidadania provida dessas competências.

A observação desse quadro de dificuldades, verificado a partir de leituras e observações cotidianas na prática docente, o estudo da literatura pertinente ao assunto foram o ponto de partida para a elaboração deste estudo com professores de Geografia da rede pública

de Uberaba-MG. A observação desses problemas justifica o interesse em buscar relacionar as dificuldades metodológicas dos professores às dificuldades apresentadas por estudantes e, ao mesmo tempo, propor uma reflexão alternativa que contribua para o ensino de Cartografia Escolar no ensino básico.

3 CARTOGRAFIA E GEOGRAFIA ESCOLAR: SABERES E PARTICULARIDADES