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2 O IPI E A SUA(S) REGRA(S) MATRIZ(ES) DE INCIDÊNCIA

2.1 A linguagem e o direito

Para a hermenêutica jurídica tradicional (teoria científica sobre as técnicas possíveis de interpretação), os textos normativos eram dotados de sentido próprio, com supedâneo seja na “intenção do legislador” ou na “vontade da lei”. Os métodos eram utilizados para encontrar o sentido e o alcance correto e único do texto interpretado; havia a reprodução de um sentido já contido no texto.

Ocorre que a hermenêutica tradicional não logrou solucionar diversos problemas, dentre eles e, talvez o mais importante, o fato de que a palavra, mesmo usada da forma “correta” e na sua univocidade como pregavam, gerava interpretações distintas, nem mesmo encontrava solução para os chamados conceitos abertos ou indeterminados.

Tal circunstância fez com que surgisse uma reformulação na forma de aproximação do objeto a ser conhecido. O marco desse movimento são os estudiosos do Círculo de Viena, na segunda metade do século XX, quando filósofos e cientistas repensaram a teoria do conhecimento, concluindo que a linguagem é o instrumento por excelência do conhecimento científico. Essa nova visão, advinda com a corrente filosófica conhecida como giro linguístico, influenciou a concepção de interpretação.

O movimento iniciado no século XX – giro linguístico ou reviravolta linguística – mudou os rumos da Filosofia e provocou um profundo impacto sobre todas as áreas do conhecimento, fazendo surgir um novo entendimento sobre o estudo da linguagem. Robson Maia Lins destaca:

Assim, o giro linguístico supera os métodos científicos tradicionais, dando uma nova postura cognoscitiva perante o que se entende por sujeito, por objeto e pelo próprio conhecimento. Após o giro linguístico passou-se a exigir o próprio conhecer da linguagem, condição primeira para apresentação do objeto.

O mundo exterior só existirá para o sujeito cognoscente se houver uma linguagem que o constitua.

O conhecimento pressupõe a existência de linguagem. Esta cria ou constitui a realidade29.

A linguagem passa a ser analisada como instrumento de representação do mundo, estruturadora da cultura e constituidora da vida humana, passando a ter papel preponderante e decisivo para o conhecimento científico. Sonia Maria Broglia Mendes assevera:

O objetivo era, por meio da análise da linguagem, acabar com os problemas de ambiguidade, obscuridade e falta de sentido com que as filosofias ditas "tradicionais" se deparavam, principalmente na relação entre as palavras e as coisas ou fatos.30

A mudança da concepção do conhecimento consubstanciada na linguagem surgiu, então, com o movimento giro linguístico, marcado pela obra Tractatus logico-

philosophicus, de Ludwig Wittgenstein. O entendimento era de que tudo está na

linguagem: “os limites da linguagem são os limites do mundo”31.

Tárek Moysés Moussallem afirma que, com a publicação da obra Wittgenstein, “a linguagem iniciou o seu processo de independência em relação à realidade, passando a sobrepô-la”:

Sem embargo, a linguagem não é o espelho da realidade. Trata-se de mundos tão distintos quanto não inter-seccionáveis. A linguagem existe de per se, é auto-subsistente.

[…]

Mediante determinado ato de fala, Deus, com seu poder supremo de fala, criou a realidade. Com o homem, sua imagem e semelhança, não se dá diferente. Partindo do mito, não é difícil constatar que a linguagem tornou o home a “imagem e semelhança” de Deus, pois não há nada que o homem não possa fazer por meio da linguagem (criar monstros, lugares maravilhosos, imaginar o seu time campeão do mundo, etc.). 32

Para essa concepção, os eventos só existiam para o homem quando constituídos em linguagem. As coisas passam a ser reais a partir do momento em que o

29 LINS, Robson Maia. O Supremo Tribunal Federal e norma jurídica: aproximações com o

constructivismo lógico-semântico apud HARET, Florence; CARNEIRO, Jerson (Coords.). Vilém Flusser

e juristas: comemoração dos 25 anos do grupo de estudos Paulo de Barros Carvalho. São Paulo: Noeses,

2009, p. 374-377.

30 MENDES, Sonia Maria Broglia. A validade jurídica pré e pós giro linguístico. São Paulo: Noeses,

2007, p. 1 et seq.

31 WITTGENSTEIN, Ludwig. Tractatus logico-philosophicus. São Paulo: EDUSP, 1994, proposição 5.6. 32 MOUSSALLEM, Tárek Moysés. Fontes do Direito Tributário. 2. ed. São Paulo: Noeses, 2006, p. 3.

homem as interpreta, “o acesso aos acontecimentos (mundo físico) só ocorre pela via da linguagem. Nada existe fora de interpretações. A interpretação é a versão dos fatos (Nietzsche)33”.

A base da nova hermenêutica jurídica evolui, alterando-se, de modo a superar os entendimentos até então formados pelas Escolas que preconizavam que a interpretação se consubstanciava na tarefa de obter o sentido e alcance do texto normativo. Alterou-se o modo de ver as coisas e os procedimentos. O conhecimento foi transferido para a linguagem, deixando de ser um meio entre sujeito e objeto para assumir a condição essencial do conhecimento.

Os estudiosos a partir da reviravolta linguística apontaram um sentido inovador para as questões filosóficas, saltando da era da filosofia do ser para a filosofia da linguagem. A ideia de um sentido único e abrangente, onde as palavras tinham um significado ontológico (relacionado com a coisa) e, consequentemente, próprio a cada termo, deu lugar, pela nova concepção, a uma relação entre linguagens.

Nessa concepção, o direito manifesta-se na forma de linguagem, e, para conhecê-lo, precisamos necessariamente conhecer a linguagem. Paulo de Barros Carvalho, expressivo defensor dessa teoria, afirma:

[…] penso que nos dias atuais seja temerário tratar do jurídico sem atinar a seu meio exclusivo de manifestação: a linguagem. Não toda e qualquer linguagem, mas a verbal-escrita, em que se estabilizam as condutas intersubjetivas, ganhando objetividade no universo do discurso. E o pressuposto do “cerco inapelável da linguagem” nos conduzirá, a uma concepção semiótica dos textos jurídicos, em que as dimensões sintáticas ou lógicas, semânticas e pragmáticas, funcionam como instrumentos preciosos do aprofundamento cognoscitivo34.

O direito positivo é formado por proposições que visam disciplinar o comportamento humano. Sem dúvida, a convivência social organizada se dá com o estabelecimento de regras de direito que vão organizar a referida convivência, regulando as condutas das pessoas nas relações de intersubjetividade.

33 MOUSSALLEM, Tárek Moysés. Fontes do Direito Tributário. 2. ed. São Paulo: Noeses, 2006, p. 3. 34 CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributário, linguagem e método. 3. ed. São Paulo: Noeses,

O direito, ao disciplinar comportamentos humanos, o faz mediante os textos escritos, objetivado, portanto, em linguagem, perfazendo-se, então, em um conjunto, um corpo de linguagem que possui função prescritiva. O direito se expressa por linguagem, daí que para conhecê-lo é preciso conhecer a linguagem.

Considerando que o conhecimento está na linguagem, conhecer um objeto, sem dúvida, significa conhecer a linguagem. Desse modo, para conhecermos o direito precisamos conhecer a linguagem pela qual se expressa; para tanto, necessitamos interpretar os enunciados prescritivos, não aos moldes da teoria tradicional de extrair o sentido dos textos, que são entidades meramente físicas, mas, a partir delas, construir significações.