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Para se ter uma noção inicial sobre a relação entre a psicanálise e a literatura, basta considerarmos que Freud, apesar de médico neurologista e de ter dado brilhantes contribuições ao desenvolvimento de toda teoria psicanalítica, nunca foi indicado ao prêmio Nobel de medicina, a que faria jus, mas sim ao de literatura em 1936. Além disso, se pesquisarmos em sua obra, encontraremos referências a Shakespeare, Goethe, Leonardo da Vinci e tantos outros autores; sem nos esquecermos de que o conceito chave do Complexo de Édipo tem como pano de fundo a tragédia de Sófocles. (BELLMIN, 1983)

Um leitor que se envolve com uma obra literária e que busca nas entrelinhas das palavras escritas aquelas que ficaram ao nível do não dito, assemelha-se ao analista atento que, buscando significantes nas histórias de vida que lhe são contadas, absorve o que não foi anunciado, o que está no interdito. (BELLMIN, 1983)

A literatura, sendo fruto da subjetividade e forma sublimatória da pulsão do autor, fornece preciosos elementos que servem para uma análise ou mesmo para uma suposição sobre o inconsciente de quem escreve. (BELLMIN, 1983)

63 Freud, em ―Escritores Criativos e Devaneios‖ (1908/1970) nos diz que o poeta, assim como a criança, cria um mundo de fantasia, leva-o a sério e investe nele toda sua emoção. Ao se tornarem adultas, as pessoas perdem o prazer da infância e param de brincar. No entanto, trocam o brinquedo pelas fantasias, das quais se envergonham e as ocultam, por serem infantis e, muitas vezes, proibidas. Para Freud, a obra literária é um substituto do brincar da criança. O artista expõe suas fantasias e as torna bonitas para as demais pessoas realizando assim seus desejos e os alheios. (FREUD, 1908/1970)

A literatura contribui com a psicanálise oferecendo exemplos, características e enriquecendo a formação da teoria. Da mesma forma, a psicanálise contribui com a literatura oferecendo aos autores novas metáforas e oportunidades de aprofundamento na constituição psicológica dos personagens. (BELLMIN, 1983)

Um sujeito em análise ao contar repetidas vezes a sua história passa a interpretar de outra maneira o livro de sua própria vida e, o analista, como um leitor atento, por meio de sua atenção flutuante, busca o sentido oculto naquilo que está sendo dito, interpreta e analisa. Tanto o discurso do paciente quanto uma obra literária demandam um processo de interpretação porque são expressões do inconsciente de seus respectivos autores. (BELLMIN, 1983)

A literatura pode oferecer informações características de uma determinada sociedade apresentadas mediante o ponto de vista, ou seja, o pensamento, os valores e as crenças do autor do texto literário. Como a civilização ocidental foi construída incorporando o patriarcalismo, a literatura produzida, principalmente a de autoria masculina, tende a reproduzir esta ideologia, na qual a mulher é considerada hierarquicamente inferior e cujas funções essenciais são ser reprodutora da espécie e sexualmente e socialmente submissas. (WANDERLEY, 1998)

―A história da cultura ocidental se consolidou segundo a tradição do saber masculino. Em função disso, é comum encontrar entre as obras da literatura imagens de mulher estereotipadas segundo o modelo da sociedade patriarcal, caracterizadas pela submissão, pela resignação, pela espera, pelo sofrimento, pela saudade‖. (ZOLIN, 2001, p. 20.)

Na história ocidental, as relações entre homens e mulheres sempre foram marcadas pela dominação do masculino sobre o feminino e, no que se refere ao acesso à educação, à

64 possibilidade da mulher se alfabetizar, o mesmo acontecia. É na Idade Média que as ordens religiosas e sua influência social reforçaram a idéia de superioridade do homem, limitando a possibilidade do ingresso feminino ao campo do saber e ao domínio das habilidades de leitura e escrita, com a justificativa de que tais saberes eram necessidades e competências essencialmente masculinas. Os representantes da Igreja passaram a ser os responsáveis pelo ensino e se as mulheres quisessem aprender a ler e a escrever teriam de ingressar nos Conventos. (WANDERLEY, 1998)

Na Bíblia, que é um documento literário da cultura religiosa ocidental, encontramos referências ao feminino, que serviram e ainda servem de modelos para as representações antropológicas da mulher:

- Sobre o matrimônio, está em Gênesis, 2,18, 25, ―a mulher aceita o marido como Senhor; existe a bigamia masculina, mas não a feminina‖. (LOBO, 1997, p. 2.)

- A primeira mulher, Eva, foi criada a partir de um modelo, Adão. Deus, que criou o homem à sua imagem e semelhança e Eva é parte desse homem, originada de sua costela e não concebida diretamente por Deus. (LOBO, 1997)

- Eva, sendo a extensão de Adão, que é filho de um Deus masculino, carrega a responsabilidade de tê-lo induzido a comer o fruto da Árvore do Conhecimento, acarretando- lhes a expulsão do Paraíso, tendo o homem de trabalhar para garantir a sua subsistência e a mulher de ser submissa e de sentir dor na hora do parto. (LOBO, 1997)

Segundo Lobo (1997), desde os primórdios estamos submetidos a uma ideologia sobre o feminino que reforça o estabelecimento do masculino como norma e do feminino como desvio.

Um traço claro da moral sexual judaico-cristã é a fobia. Diferentemente de outras culturas, onde deuses e sacerdotes praticavam toda sorte de ―perversões sexuais‖, a religião judaica prima pela abstinência sexual e pela renúncia aos ―vícios da carne‖, por comportamentos fóbicos relacionados ao sexo e, muitas vezes, utiliza como forma representativa da luxúria a imagem feminina. Javé – diferentemente dos Orixás, de Apolo e até de Tupã, é um deus assexuado. O céu judaico-cristão é um paraíso assexual, onde os que na terra foram virgens ou celibatários obterão recompensa. (LAPLANTINE, 1998)

65 O tabu da nudez, o machismo, o patriarcado, a monogamia e indissolubilidade do casamento são colocados como alicerces da família e a virgindade como requisito para o matrimônio. (LAPLANTINE, 1998)

Modelo tão rígido comportou, desde os tempos bíblicos, espaço para os desvios. Desvios esses que sempre foram mais expostos, discutidos e julgados quando cometidos por mulheres. O machismo e o patriarcado autorizam os homens a praticarem determinadas transgressões das normas cristãs de sexualidade e condenam as mulheres que cometem os mesmos atos. Assim, as próprias mulheres carregam no inconsciente a idéia de relação direta entre sexo e pecado, entre desejo e sujeira. (LAPLANTINE, 1998)

Os castigos impostos aos que transgrediam, como apedrejamento ou a fogueira, aparecem hoje na nossa imagem cerebral como atos realizados contra mulheres (basta lembrar do mito Maria Madalena), assim como o adultério, concubinato e sodomia estão representados no inconsciente das pessoas até hoje como comportamentos mais frequentemente ou com maior gravidade realizados por mulheres. (LOBO, 1997)

Seguindo essa linha de pensamento, os pensadores judeus (seguidos mais tarde pelos cristãos) deram até mesmo uma nova interpretação às causas da queda do Homem. Uma leitura um pouco mais atenta do Velho Testamento nos permite observar que Adão e Eva foram expulsos do Paraíso apenas por não terem obedecido às ordens de Jeová, que os proibiu de comer dos frutos da Árvore da Ciência do Bem e do Mal (Gênesis, 2:17). Fica explícito, no texto, que a expulsão do paraíso se deveu à desobediência em si, e não ao fato de terem eles tido relações sexuais (Gênesis, 3:22). Registra-se, no mesmo versículo, o receio divino de que o Homem, tendo já condições de conhecer o Bem e o Mal, por ter provado do fruto da Árvore, continuasse a ser desobediente e provasse também dos frutos da Árvore da Vida, passando assim a ser também imortal. No claro intuito de reprimir as manifestações da sexualidade, no entanto, o texto foi reinterpretado, sendo apresentada como causa da queda a experiência sexual que Adão e Eva tiveram. Além disso, quem não faz uma interpretação devida, conclui rapidamente que Eva seduz e induz Adão ao pecado. (UCHOA & VIDAL, 1994)

A pobreza de citações sobre a mulher como sujeito na história corresponde à presença exuberante dela como imagem mítica. A história da literatura traz imagens contraditórias como as de Nossa Senhora, da mulher idealizada, da bruxa, da jovem inocente, da sedutora, da mãe dedicada ou da femme fatale. A diversidade das imagens estereotipadas femininas na

66 literatura, sobretudo na literatura brasileira, se estrutura de uma forma dualista: elas dividem o feminino numa forma idealizada e demoníaca. (WOOLF, 1999)

A psicanalista Christa Rohde-Dachser define os mitos sobre o feminino patriarcais como fantasias de defesa do sujeito masculino. Ela defende que na sociedade patriarcal é atribuído à mulher aquilo que é excluído e repudiado da autodefinição masculina, ou seja, características ternas de reconciliação e inocência ou características associadas à morte. (ROHDE-DACHSER, 1991/1999).

Na contemporaneidade, a situação da mulher brasileira moderna, especialmente nas últimas três décadas, está relacionada com uma árdua tentativa em redefinir-se, na literatura, como personalidade autônoma, como conseqüência da sua luta pela libertação dos clichés impostos pela sociedade. Sendo assim, o tema predominante na literatura feminina brasileira atual, especialmente de autores do sexo feminino, é a busca da identidade própria. Surgem protagonistas femininas com personalidades fortes mas divididas internamente, que oscilam entre a sua condição feminina e o grande desejo de livrar-se de complexos de inferioridade e da pressão que as impediu de alcançar uma personalidade autônoma. (WOOLF, 1999)

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CAPÍTULO 6:

A REALIDADE:

HISTÓRIAS DE VIDA E INTERPRETAÇÕES

―Se quero saber quem sou, tenho que recuar até quem fui. No desenrolar temático das narrativas femininas, as personagens com freqüência recorrem à memória, a fim de encontrar prováveis respostas para as indagações em torno de suas verdades. (...) Em função dessa permanência de retorno ao já experienciado, o tratamento dado ao tempo tem sido uma quebra da linearidade de Chronos, a favor de uma circularidade ou de um ir-e-vir de passado a presente e de presente a passado, além de inserções de futuro, às vezes utópico. É como se não houvesse distância entre ontem e hoje, tal a intensidade dos sentimentos do que passou‖. (Cunha 1997, p.128).