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PERSONAGEM: LUCÍOLA

7.1.1 Síntese da narrativa

O romance Lucíola (1862), de José de Alencar se divide em vinte e um capítulos. A narrativa é feita em flash-back pelo personagem protagonista, Paulo, amante de Lúcia, também conhecida como Lucíola, personagem central da obra.

117 O título do livro, como explica a nota ―Ao autor‖ (ALENCAR, 1997, p. 12) refere-se a um ―um lampiro noturno que brilha de uma luz tão via no seio da treva e à beira dos charcos.‖

A não ser pelo capítulo inicial, poderíamos dizer que a obra é totalmente linear. O protagonista a inicia fazendo um contato com uma senhora (G.M.) a quem destinaria alguns manuscritos em forma de carta que seriam o próprio romance. Desta forma, vemos no último capítulo esta amarração com o primeiro: ―Terminei ontem este manuscrito que lhe envio ainda úmido de minhas lágrimas‖ (ALENCAR, 1997, p. 137).

A história é narrada em primeira pessoa pelo protagonista Paulo que é, ao mesmo tempo, observador e participante dos acontecimentos que narra.

―A primeira vez que vim ao Rio de Janeiro foi em 1855. Afastei-me arrebatadamente. Senti as mãos úmidas de lágrimas, que não sentiria chorando-as. Quando a lembrança ainda recente devia evitar as cores do quadro vergonhoso e revoltante que me tinha indignado‖. (ALENCAR, 1997, p. 14).

Faz-se importante notar que a história contada por Paulo se deu depois de certo afastamento dos fatos ocorridos. A retrospectiva ou flash-back se dá depois de Paulo haver já ―ruminado‖ os fatos, depois de ele haver refletido. Este afastamento permite-lhe certa revisão dos acontecimentos, dos fatos, que agora ele passa à velha senhora, a primeira a saber da sua história com Lúcia.

―A senhora estranhou, na última vez que estivemos juntos, minha excessiva indulgência pelas criaturas infelizes, que escandalizavam a sociedade com a ostentação de seu luxo e extravagância. Calando-me naquela ocasião, prometi dar- lhe a razão que a senhora exigia; e cumpro o meu propósito mais cedo do que pensava. Trouxe-lhe no desenho de agradar-lhe a inspiração e achei voltando a insônia de recordações que despertara a nossa conversa. Escrevi as páginas que lhe envio, às quais a senhora dará um título e o destino que merecem‖. (ALENCAR, 1997, p. 13)

11. Todas as considerações feita no íten 7.1 são fundamentadas nas seguintes obras: ALENCAR, J. de. Lucíola. São Paulo: FTD, 1997.

118 Mascarado em G. M., (autora da reunião das cartas, que dão origem ao livro, depois de titular devidamente) José de Alencar desenha, com raro esmero, o perfil da mulher. Para o autor seria apenas um mero esboço mas que, mesmo assim, provocaria repercussões na sociedade da época: ―Deixem que raivem os moralistas‖ (ALENCAR, 1997, p. 12).

Esse disfarce do autor para se apropriar da história vivida por Paulo deu-lhe oportunidade de destinar a obra ao seu público preferido, as mulheres e os estudantes da época. E permitiu-lhe também certa ousadia para o tempo. Alencar aborda uma temática não muito convencional: a prostituição e a sedução. Os recatos da sociedade tão moralista e repressora do período romântico recriminavam este tipo de obra.

A ação de Lucíola se passa no Rio de Janeiro do Segundo Reinado e, como as demais obras urbanas de Alencar, faz um recorte histórico dos usos e costumes sociais e religiosos desta época. Vale dizer que a narrativa se dá entre 1855 e 1861, época em que se dá o reinado de Dom Pedro II, coroado em 1841 e cujo governo se estende até a extinção da Monarquia, em 1889. Portanto, o cenário da obra é o Rio de Janeiro com sua nobreza, pois lá está o rei com tudo e todos que o cercam. Temos aí o Rio de Janeiro e tudo que representa a corte com os seus atrativos. Lugar onde se podem viver grandes emoções. Lugar onde já se vive com certa pressa, porque a vida na corte era marcada pela ambição, turbulência, vaidade e corrupção. Os próprios personagens já buscavam refúgio por causa do desgaste que aquele tipo de vida lhes provocava.

É nesse Rio de Janeiro, no qual a aristocracia vivia, que Lucíola vai ostentar sua riqueza, seu ouro, suas roupas de último modelo, que irá freqüentar o teatro lírico, que irá participar dos grandes bailes (últimas novidades de Paris), que irá comer nas tabernas, passear pela Rua do Ouvidor, desfilar nas festas religiosas ou à beira do mar, seduzir. Enfim, é este o Rio de Janeiro já mencionado também em outras obras com seus vícios, seu cinismo e seus atrativos da cidade grande que já era naquele tempo.

E é também neste cenário que Lucíola, a cortesã, irá seduzir e enlouquecer os homens. E o que eram as cortesãs? Pode-se dizer que as cortesãs eram mulheres com relativo destaque na sociedade carioca da época. Mulheres influentes no seu espaço, que gozavam, entre os homens, de certos privilégios. A notoriedade gozada pela cortesã é a mesma que se pode dar hoje às grandes atrizes e dançarinas. Elas viveram em todas as épocas situações contraditórias: foram amadas pelos homens, odiada e, às vezes, admiradas pelas mulheres.

119 A história de Lucíola é contada por Paulo da Silva, um jovem que veio de Olinda, em Pernambuco, recém formado em Direito e que pretendia se estabelecer na profissão. Está com vinte e cinco anos. Como bom provinciano, é ainda tímido e ingênuo.

―Compreendi e corei de minha simplicidade provinciana, que confundira a máscara hipócrita do vício com o modesto recato da inocência. Só então notei que aquela moça estava só; e que a ausência de um pai, de um marido, ou de um irmão, devia- me ter feito suspeitar a verdade‖. (ALENCAR, 1997, p. 15).

Como a maioria dos homens de seu tempo, é mais um disposto a aproveitar dos serviços prestados pela cortesã em troca do que lhe pagaria os préstimos. Era bem pobre; mas estava independente, formado, no ardor da mocidade e sem encargos de família. Já tinha intenção de estabelecer-me aqui; e antes de começar a vida árida que é o trabalho sério do homem que dedica vida ao futuro, queria dar um último e esplêndido banquete às arrogâncias da juventude.

―Quem melhor do que Lúcia me ajudaria a consumir as migalhas que me pesavam na carteira, e me embelezaria um ou dois meses da vida que eu queria viver por despedida? ‖ (ALENCAR, 1997, p. 52)

Ainda que Paulo tenha se tornado o personagem que vemos no final, pode-se perceber em seu comportamento, pouco desprendimento, já que sua intenção ficou bem clara. Comprova-se sua pobreza de compreensão dos esforços de Lúcia para provar-lhe o grande amor que sentia, e o que se vê é um Paulo mesquinho, preocupado apenas com sua imagem construída na hipócrita sociedade carioca da época.

O crescimento de Paulo foi lento e à custa de muito desprendimento de Lúcia que teve de lhe dar todas as provas possíveis para que se convencesse de que ela o amava.

A obra nos vem através dos olhos e memória do personagem protagonista e narrador Paulo em resposta a solicitação de uma senhora G. M. que resumirá seu relatos, e daí nascerá

120 o romance. O narrador nos proporcionará um retrato da personagem e segundo ele: ―É um perfil de mulher apenas esboçado.‖

O relato de Paulo inicia-se com a sua chegada de Olinda para se estabelecer no Rio. Seus primeiros dias na corte são destinados a conhecer as novidades.

Através do amigo Sá tem seu primeiro contanto com Lúcia na festa religiosa de Nossa Senhora da Glória. Ele fica impressionado com sua beleza, mas Sá o adverte de que se trata de uma cortesã (prostituta).

Paulo, apesar de impressionado, tenta manter vivo o aviso de seu amigo Sá de que se tratava de uma sultana (mundana). Entretanto, ou ele era ingênuo demais ou já estava ―fisgado pelo cupido‖. Logo Paulo não conseguiu mais esquecer Lúcia e resolve visitá-la para conhecê-la melhor.

Não demorou muito para se tornarem íntimos. Depois de muitas peripécias de sedução, finalmente Lúcia revela a Paulo sua verdadeira história: como perdera a virgindade e como fora parar naquele tipo de vida, é que Paulo compreende as atitudes de Lúcia durante todo aquele tempo que viveram juntos e pôde compreender que grande pessoa humana ela era.

Ao final da obra, Lúcia muda-se para um ambiente simples e passa a viver ali com sua única parente viva: sua irmã Ana que estava interna estudando.

Paulo lhe visita sempre, mas está cuidando de sua vida profissional. Numa dessas visitas, Lúcia pede a Paulo que cuide de Ana. E ainda mais, tenta fazer com que Paulo se comprometa a casar-se com Ana para protegê-la, mas Paulo se nega, pois não a ama.

A debilidade de Lúcia já é visível pelo fato dela estar vivendo uma gravidez de risco, fato só descoberto por Paulo já próximo da morte de Lúcia. Mas é tarde. Lúcia caminha para o fim. Negando-se a tomar remédio que expulsaria o feto e que lhe salvaria a vida, Lúcia morre.

― – Tu me purificaste ungindo-me com teus lábios. Tu me santificaste com o teu primeiro olhar! Nesse momento Deus sorriu e o consórcio de nossas almas se fez no seio do criador. Fui tua esposa no céu! E contudo essa palavra divina do amor, minha boca não a devia profanar, enquanto viva. Ela será meu último suspiro‖. (ALENCAR, 1997, p. 137).

121 7.1.2 Análise Literária

Lúcia (Lucíola, Maria da Glória) é protagonista da obra. Em torno dela gravitam todos os outros personagens. É a personagem mais bem acabada de Alencar. Ela carrega grande carga de tensão dramática. Pode-se ver do início ao fim uma revolução gradativa da personagem. As dificuldades de compreensão do caráter dúbio da personagem se mostram desde o início e vão crescendo até o seu máximo de tensão.

Lúcia é uma personagem de personalidade dupla e revela isso em suas atitudes. De dia, é uma mulher recatada. À noite, se transforma numa bacante fria que seduz os homens com a magia de sua beleza deslumbrante.

Ao mesmo tempo em que é tratada pelo narrador como vestal, mulher casta e virgem, protetora do fogo aquecedor dos lares e da família, é também chamada de musa cristã, pecadora e fonte de inspiração. Porém, sendo pecadora, tem a chance quando se reaproxima da igreja.

Ela própria rejeita os símbolos da virgindade como o perfume da flor da laranjeira usada pelas noivas em suas grinaldas por se auto-desprezar em função da vida que leva. O narrador, Paulo, insiste mais de uma vez no caráter difícil de Lúcia que aparece muitas vezes inconstante e difícil de ser compreendida.

No íntimo, Lúcia parece dividida em severa guerra interior, daí os que a cercam terem suas dificuldades em compreendê-la. O próprio Paulo demora-se muito em perceber-lhe detalhes. Foi à custa de muitos enganos que ele passou a ver Lúcia de maneira diferente dos demais.

O conflito existencial de Lúcia se estabelece do início ao fim da obra. O dilema corpo versus alma carrega forte significação. Somente seu mistério, revelado a Paulo perto do fim do enredo esclarece sua ânsia pela libertação do estigma da perda da virgindade que a mergulha numa vida mundana.

122 O processo de purificação e sua evolução revela o crescimento da grandeza interior de Lúcia. Sua capacidade de assimilar a incompreensão de Paulo e dos outros, sua grandeza de espírito em ajudar os desafortunados, seu amor pela irmã, seu desprendimento pelas coisas materiais revelam a forte intenção de Lúcia de curar-se daquela mácula circunstancialmente ocorrido em sua vida, ainda que tudo tenha decorrido em função de um ato de amor.

Seu dilema (conflito existencial) cessa à custa de sua própria vida. Paradoxalmente, Lucíola não assimila que a devassidão em que mergulhara nasceu de um ato humanitário de sua parte e do oportunismo desumano daquele que, aproveitando da situação, tirou-lhe a virgindade, mais do que pureza, no seu caso, símbolo de vida digna.

Não há como resgatar a perda deste valor a não ser pela morte. A única forma de restabelecer a dignidade é anulando o corpo, considerado fonte de pecados. Nem o filho, fruto de seu verdadeiro amor, é suficiente para este resgate, por isso é condenado a morrer com ela.

Lucíola é desenhada como a típica heroína romântica.

O tema do amor, bálsamo para todos os males, e da morte que redime a personagem e a regenera como um processo de ressurreição está presente na obra. A purificação de Lúcia se inicia a partir do momento em que conhece o verdadeiro amor, Paulo. E na ótica da personagem, a grandeza deste amor está exatamente numa dimensão espiritual. Isso ocorre quando ela e Paulo mantêm um relacionamento apenas de amizade não existindo mais a relação carnal. A partir do instante em que ela evita desnudar seu corpo físico e passa a abrir- lhe a alma, revelando-lhe seus segredos mais recônditos, é que seu amor se torna sereno e tranqüilo, casto e puro numa total dimensão romântica.

―Agora que minha vida se conta por instantes, amo-te a cada momento por uma existência inteira. Amo-te ao mesmo tempo com todas as afeições que se pode ter neste mundo. Vou te amar enfim por toda a eternidade‖ (ALENCAR, 1997, p. 136- 137).

Lúcia tem um perfil de mulher romântica e aristocrático da época. Vários são os elementos de educação tradicional da mulher do século XIX encontrados nela: tem habilidades domésticas (costura, borda, cozinha, arruma, com bom gosto) e virtudes de salão (canta, toca piano, fala francês), tem dom de fala fácil e é inteligente, pois lê bastante os clássicos da época, principalmente os de origem francesa. Estas últimas habilidades parecem contraditórias com as condições sociais da família da qual Lúcia se origina.

123 Por que se diz que Lucíola se parece com a Dama das Camélias de Alexandre Dumas Filho, romancista romântico francês? A semelhança se dá pelo de ambas as obras trazerem temáticas comuns. Tanto Margarida Gautier quanto Lucíola são prostitutas (cortesãs) e vivem no luxo e na ostentação à custa de seus amantes e que pela beleza que possuem, brilham em salões em busca de prazer e orgias sensuais. As duas, em determinado momento de sua trajetória, apaixonam-se verdadeiramente por um de seus amantes; Margarida, por Armando e Lúcia, por Paulo. Em função deste amor, fazem sacrifícios tremendos para merecê-los e completarem a sua felicidade. Nenhuma consegue concretamente. No caso de Margarida, houve impedimento por parte do pai do rapaz e Margarida morre de tuberculose. O impedimento de Lúcia foi seu próprio espírito que a fazia compreender que não merecia Paulo e morre em função de um aborto.

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7.2 ESTÓRIA 2

(Relaciona-se com história de vida II e sua interpretação psicanalítica) 12