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Na velhice, o real de um corpo que se transforma marcado pelo irreparável de algumas modificações leva a um esfacelamento daquilo que durante sua vida toda se constituiu no

ideal do eu, forma pela qual o sujeito se viu susceptível de ser amado e forma mediadora entre

seu eu e seu narcisismo. A perda progressiva de traços simbólicos introjetados pelo ideal do

eu referentes à imagem do próprio corpo poderá trazer para o idoso estados depressivos,

passageiros ou não, manifestações de raiva e até comportamentos de apego excessivo a objetos pessoais como uma tentativa de se manter determinada consistência de si mesmos (MUCIDA, 2006).

Apesar das mudanças irremediáveis no corpo do idoso, o processo de envelhecimento é longo e contínuo. Percebemos mais facilmente a velhice no outro, especialmente, quando ficamos muito tempo sem vê-lo. Esquecemo-nos, entretanto, de que também envelhecemos aos olhos dessa pessoa. E, observamos nessa ocasião o surgimento de um fenômeno que Freud chamou do duplo, quando reconhecemos nós mesmos como estranhos. Muitos idosos percebem as marcas do tempo pelas fotos de si mesmos ou por se verem nas fotos de seus pais ou avós (MUCIDA, 2006).

Em ―O estranho‖ (1919/1976), Freud esmiuça o sentido do estranho fazendo uma pesquisa etimológica dos termos originais no alemão. Unheimilich (estranho) é, de fato, o oposto da palavra Heimilich (familiar, íntimo) e conclui que a palavra heimilich conduz ao seu oposto levando ao construto de que há algo de estranho em tudo que é familiar. Ou seja, há sempre algo secreto, desconhecido naquilo que, para nós, é comum ou familiar. (FREUD, 1919/1976)

―Estava eu sentado sozinho no meu compartimento no carro-leito, quando um solavanco do trem, mais violento do que o habitual, fez girar a porta do toalete anexo, e um senhor de idade, de roupão e boné de viagem entrou. Presumí que ao deixar o toalete, que havia entre os dois compartimentos, houvesse tomado a direção errada e entrado no meu compartimento por engano. Levantando-me com a intenção de fazer-lhe ver o equívoco, compreendí imediatamente, para espanto meu, que o intruso não era senão o meu próprio reflexo no espelho da porta aberta. Recordo-me ainda que antipatizei totalmente com a sua aparência‖. (FREUD, 1919/1976 p. 309)

53 Freud pontua nesse texto como a velhice pode ser a produção de uma imagem familiar e estranha. Essa estranheza surge como efeito do encontro do sujeito com a imagem de um corpo marcado por alterações e, portanto, um novo corpo, para o qual ele ainda não construiu uma cadeia de significantes. (FREUD, 1919/1976)

Sendo, o corpo, para a psicanálise um encontro entre a imagem, os significantes que o qualificam e o real, aquilo que escapa a qualquer nomeação mas que está presente; quando falta um desses constituintes temos um esfacelamento psíquico do corpo – uma situação em que o indivíduo é exposto a um real (real de castração) diante do qual ele se encontra desamparado do suporte simbólico, apartado de significantes que o nomeiam. Nessa situação, surge o susto, essa sensação do ―estranho‖ que nada mais é do que o encontro do sujeito com o real quando o simbólico está, mesmo que momentaneamente, incapacitado de dar o tratamento adequado a esse real. (FREUD, 1919/1976)

Voltando à estruturação do sujeito, a construção do ideal do eu, forma constitutiva que oferece saídas viáveis à fantasia do eu ideal e que possibilita o percurso de vida do sujeito até sua morte é formado a partir da inserção da metáfora paterna, da instância simbólica, da linguagem, enfim, do Outro. Um Outro dotado de caráter de extimidade, de diferença e que se apresenta como a matriz da identificação própriamente dita. A partir dessa identificação com o Outro o sujeito passa a considerar como sendo ―eu‖ aquilo que o outro vê nele. Pela via da linguagem (Outro) o ser recebe uma qualificação simbólica universal de sujeito. (DOR, 1989)

Retomando questões já articuladas anteriormente, se pensamos na velhice como um período da vida onde faltam traços corporais que, ao longo da vida, constituíram o ideal do eu podemos concluir que na velhice, o ideal do eu está falho, impedido e, consequentemente, o caráter vital do indivíduo como sujeito está ameaçado. Viver com esse impedimento do ideal do eu traria, segundo Freud (1916-1917/1976), determinada regressão com a formação de inúmeros sintomas.

Deparamo-nos, então, com uma questão de necessidade imperativa de reconstrução desse ideal do eu na velhice a fim de que permaneça a integridade do sujeito. Como vimos, essa construção passa pela via da identificação com o Outro e ocorre a partir do olhar desse Outro que lhe oferece suporte simbólico e contribui para a entrada desse sujeito no campo dos significantes. Está aí, novamente, o ser, como na infância e na adolescência, tentando se estruturar a partir do olhar do Outro. (QUINET, 2002)

54 Lacan coloca esse olhar como objeto a (causa de desejo e de angústia) e pontua que somos sempre insuficientes em relação à nossa apreensão corporal e antecipamos pelo Outro aquilo que podemos ser (ideal do eu). Mas esse Outro apenas nos oferece uma imagem antecipada e não uma imagem real de nós mesmos, de qualquer forma, essa imagem é consistente, mantém, enlaça e dá um sentido a partir do qual, em qualquer período cronológico da vida, o sujeito começa a se nomear como um ―eu‖. (LACAN, 1998)

Se, na sociedade, a velhice tende a ocupar um lugar de verdade sobre o sujeito com um

saber a priori, a psicanálise toma-o como sujeito falante, capaz de agregar/produzir os

significantes fundadores de sua própria história. Abre a porta para uma conciliação com o corpo frágil e mortal (MANNONI, 1995). A ética psicanalítica implica em convocar o sujeito a responsabilizar-se pelo destino de suas ações, cuja motivação mais legítima é o próprio desejo e cuja fórmula é a disposição para se reidentificar e se resignificar (RINALDI, 1996).

Se o corpo, na velhice, é o lugar privilegiado de desilusão narcísica, prometido à decadência e à morte e palco do adoecer, empurrando o sujeito a enfrentar o desafio de manter a aposta na vida; por outro lado, é abrindo mão da completude ilusória, que o desejo encontra sua possibilidade de movimento para a vida e para o novo.

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