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2.6. Dimensão sócio-cultural da aprendizagem

2.6.1. Mediação

Mediação é um conceito central para a compreensão das concepções vygotskianas sobre o funcionamento psicológico e, em termos genéricos, é o processo de intervenção de um elemento intermediário numa relação; a relação deixa de ser directa, e passa a ser mediada por esse elemento (Oliveira, 1993). A mediação pode então ocorrer a partir da utilização de diferentes tipos de ferramentas. Vygotsky distingue dois tipos de elementos mediadores na actividade humana: as ferramentas técnicas e os signos (ferramentas psicológicas e ferramentas de mediação semiótica). Ambos são parte da herança cultural da humanidade, foram produzidos e usados pelos seres humanos, desenvolvendo-se gradualmente ao longo de séculos, mas mantendo as suas funções. Embora claramente distintos, Vygotsky supõe signos e ferramentas na mesma categoria de mediadores. Pelo que toca à sua função, a diferença entre signo e ferramenta assenta na diferente maneira como orientam o comportamento humano. A função de uma ferramenta está externamente orientada, o seu propósito é servir como condutor da actividade humana para dominar a natureza. A função de um signo está orientada para dentro, é um meio de actividade interna para gerir o eu. De acordo com Vygotsky o domínio da natureza e o domínio do eu estão estritamente ligados.

Um processo de internalização pode transformar ferramentas em ferramentas psicológicas quando uma ferramenta externamente orientada se torna uma ferramenta psicológica (que pode lidar com representações mentais) e modela novos significados. Neste sentido uma ferramenta pode funcionar como um mediador semiótico. O processo de mediação semiótica desenvolve-se a vários níveis, embora centrado no uso de um artefacto. O artefacto é objecto particular com características intrínsecas, concebido e construído de forma a executar uma tarefa particular (Vygotsky chamou-lhe ferramenta) e há também a noção de instrumento que segundo Rabardel (citado em Mariotti, 2002) se refere ao sujeito e diz respeito às contrapartidas mentais de um uso bem adaptado de um artefacto particular (Vygotsky chamou-lhe ferramenta psicológicas). Então fica evidenciado um nível do processo de mediação semiótica, quando um aluno usa o artefacto de acordo com certos esquemas de utilização, para atingir o objectivo da tarefa. Ao fazer isto, significados emergem do envolvimento do sujeito na actividade.

Um segundo nível do processo de mediação semiótica envolve o uso do artefacto pelo professor, de acordo com esquemas de utilização específicos, para explorar estratégias de comunicação com o fim de guiar a evolução de significados dentro da comunidade da sala de aula. Na dialéctica entre estes dois níveis, a construção de significados ocorre como o produto de um processo de internalização guiada pelo professor (Mariotti, 2002). O artefacto sob a

orientação do professor pode produzir de maneira “natural” efeitos cognitivos e didácticos importantes (Arzarello, 2004). O computador também pode ser usado como um instrumento de mediação semiótica, mas o uso consciente de tecnologia para mediação semiótica exige um planeamento das actividades atento e cuidadoso, tendo em conta o uso duplo do artefacto em jogo (Mariotti, 2002). Mariotti conjectura a seguinte hipótese: Significados são enraizados na experiência fenomenológica (acções do utilizador e feedback do ambiente do qual o artefacto é uma componente), mas a sua evolução é atingida por meio de construção social na aula, sob a orientação do professor.

2.6.2. O pensamento e a linguagem

Os sistemas simbólicos e particularmente a linguagem (sistema simbólico básico de todos os grupos humanos) exercem um papel fundamental na comunicação entre indivíduos e no estabelecimento de significados compartilhados que permitem interpretações dos objectos, acontecimentos e situações do mundo real (Oliveira, 1993). Para Vygotsky é fulcral compreender as relações entre o desenvolvimento da linguagem e o pensamento já que a linguagem é também um instrumento do pensamento, pois tem a função de pensamento generalizante (ordena o real, agrupando todas as ocorrências de uma mesma classe de objectos, acontecimentos e situações sob uma mesma categoria conceptual). O pensamento e a linguagem têm origens diferentes e desenvolvem-se segundo trajectórias diferentes e independentes. A linguagem, sob a forma de discurso, evolui dos gestos, respostas afectivas e desenvolve-se num contexto de comunicação e interacções sociais. O pensamento especialmente o pensamento lógico, evolui da actividade em que a criança está envolvida. Num determinado momento do desenvolvimento filogenético, os processos de desenvolvimento do pensamento e da linguagem unem-se, surgindo o pensamento verbal e a linguagem racional. O ser humano passa a ter a possibilidade de um modo de funcionamento psicológico mais sofisticado, mediado pelo sistema simbólico da linguagem (Oliveira, 1993).

Vygotsky ao investigar a relação entre o pensamento e a linguagem considerou que a significação da palavra é a unidade de base indecomponível que reflecte sob a forma mais simples a unidade de pensamento e a unidade da linguagem. Uma palavra privada de significado, não é uma palavra é um som vazio. Por consequência a significação é um signo distintivo necessário, constitutivo da própria palavra. É a própria palavra, tomada sob o seu aspecto interno, é um fenómeno da linguagem. Mas sob o ângulo psicológico, a significação da palavra não é senão uma generalização ou um conceito. Toda a generalização, toda a

formação de conceitos é um acto de pensamento autêntico, incontestável assim podemos considerar a significação da palavra como um fenómeno do pensamento.

Vygotsky descobriu também que as significações das palavras não são imutáveis, constantes, invariáveis, elas desenvolvem-se, podem-se modificar. Se a significação da palavra se pode modificar é porque a relação do pensamento e da palavra se modifica também, e é importante descobrir o papel funcional da significação da palavra no acto do pensamento. As crianças usam palavras para efeitos de comunicar e organizar as suas próprias actividades antes de terem uma compreensão completa do que essas palavras significam. O significado da palavra é dado à criança pelo uso dessa palavra num discurso aceite histórica e socialmente. O uso funcional da palavra ou de qualquer outro signo joga um papel central na formação de conceitos como um meio de focar a nossa atenção seleccionando características, e analisando-as e sintetizando-as. Os adultos através das suas comunicações verbais com a criança são capazes de pré-determinar o caminho do desenvolvimento de generalizações até ao seu ponto final – um conceito completamente formado (Vygotsky, 1985).

O indivíduo, segundo Vygotsky, é então activo no seu próprio processo de desenvolvimento humano e para esse percurso de desenvolvimento é importante a actuação dos outros membros do grupo social na mediação entre a cultura e o indivíduo e na promoção de processos interpsicológicos que serão posteriormente internalizados (processos intrapsicológicos de reconstrução interna de actividades externas). Vygotsky postula para o processo do desenvolvimento do pensamento e da linguagem que o percurso é da actividade social, interpsíquica para a actividade individualizada, intrapsíquica, ou melhor a evolução gradual dum discurso comunicativo para um discurso interior onde aparece um procedimento de transição o discurso egocêntrico.

O discurso comunicativo tem por função manter um contacto social, a comunicação com os outros, sendo o pensamento traduzido por palavras. O discurso interior representa uma forma interna de linguagem, dirigida ao próprio sujeito e não a um interlocutor externo. É um discurso sem vocalização, voltado para o pensamento, cuja função é auxiliar o indivíduo nas suas funções psicológicas. É fragmentado, abreviado, contendo quase só núcleos de significado e não todas as palavras usadas num diálogo com outros. O discurso egocêntrico é o discurso quando o indivíduo pensa alto, quando fala sozinho, independentemente da presença de um interlocutor. O discurso egocêntrico acompanha a actividade da criança, começando a ter uma função pessoal, ligada às necessidades do pensamento. É utilizado como apoio ao planeamento de sequências a serem seguidas, como auxiliar na resolução de problemas. Aparece como um procedimento de transição, no qual o discurso já tem a função

que terá como discurso interior, mas ainda tem a forma de fala socializada externa (Oliveira, 1993).

2.6.3. Interacções e a aprendizagem

A parte central da abordagem de Vygotsky é o papel dos outros mais capazes os quais facilitam o desenvolvimento da criança por “andaime” dentro da zona de desenvolvimento proximal (ZDP). A ideia de Vygotsky sobre zona de desenvolvimento proximal foi introduzida, a partir do postulado que existem dois níveis de desenvolvimento do aluno – o real e o potencial, e foi definida como:

“A distância entre o nível de desenvolvimento real a resolver problemas independentemente e o nível de desenvolvimento potencial determinado a resolver problemas sob a orientação de um adulto ou em colaboração com pares mais competentes” (Vygotsky, 1978, p. 86).

A zona de desenvolvimento proximal é um domínio psicológico em constante transformação: aquilo que uma criança é capaz de fazer com a ajuda de alguém hoje, conseguirá fazer amanhã sozinha. A zona de desenvolvimento proximal define então aquelas funções que ainda não amadureceram, mas que estão ainda em processo de maturação, funções que amadurecerão, mas que estão presentemente em estado embrionário. Estas funções poderiam ser chamadas de “botão” ou “flores” do desenvolvimento em vez de “frutos” do desenvolvimento (Vygotsky, 1978, p. 86).

Vygotsky postula então a importância da actuação de outros membros do grupo social na mediação entre a cultura e o indivíduo e na promoção dos processos interpsicológicos que serão posteriormente internalizados. A intervenção deliberada dos membros mais maduros da cultura na aprendizagem das crianças é essencial ao seu processo de desenvolvimento. Vygotsky fala da imitação e define-a como a reconstrução individual daquilo que o indivíduo observa nos outros, mas defende que só é possível imitação de acções que estejam na ZDP do sujeito, caso contrário não conseguirá apropriar-se desses mesmos conceitos. A intervenção pedagógica do professor tem pois um papel central na trajectória dos indivíduos que passam pela escola. O professor tem o papel explícito de interferir na zona de desenvolvimento proximal dos alunos, provocando avanços que não ocorreriam espontaneamente. Também uma criança mais avançada num determinado assunto pode contribuir para o desenvolvimento das outras. Pode funcionar como mediadora entre uma outra criança e as acções e significados estabelecidos como relevantes no interior da cultura (Oliveira, 1993).

2.6.4. Apropriação

Um conceito central, na perspectiva sociocultural da aprendizagem dos neo-vygotsianos, é o de apropriação usado para descrever como a aprendizagem é mediada por interacção com outros e como as crianças aprendem quando adultos os guiam ou ensinam. O conceito de apropriação tem sido usado para descrever como os que aprendem usam ferramentas culturais de gerações anteriores e os recursos fornecidos por outras pessoas (Moschkovich, 2004).

Rogoff (citado em Moschkovich, 2004) usa apropriação como uma alternativa a internalização e descreve-a como o produto de pensamento partilhado e participação guiada. Ele enfatiza que apropriação não é transmissão ou imitação, porque os que aprendem transformam informação e competências. Radford (2000) que usou a noção de apropriação para se focar na apropriação de “expressões matemáticas técnicas” destaca que a apropriação envolve não uma cópia mas uma adaptação das palavras em termos das nossas necessidades pragmáticas e intenções particulares e que os estudantes fornecem às palavras do professor novos significados ao interagirem entre si. Moschkovich (2004) que usou o conceito de apropriação para descrever como os estudantes aprenderam a trabalhar com funções lineares lembra que apropriação aqui incluiu transformação.

Na investigação empírica que coexistiu com a exploração teórica do modelo de pensamento visual-espacial proposto, a dimensão do sócio-cultural vai ser examinada em relação à interacção entre alunos, à intervenção da investigadora e às interacções com o micromundo Tarta.

Capítulo III

Metodologia

Neste capítulo será descrita a metodologia adoptada para a implementação da presente investigação a qual teve um carácter essencialmente qualitativo, com um cunho descritivo e interpretativo. Este estudo pretende elaborar, explorar e refinar um modelo teórico sobre o pensamento visual-espacial e compreender, a partir desse modelo, como o pensamento visual- espacial dos alunos se desenvolve, identificando modos de pensamento visual-espacial e evidenciando como esses modos de pensamento visual-espacial foram socialmente vividos. Também esta investigação, no contexto global visual e dinâmico da geometria das transformações onde nos concentramos nos movimentos rígidos, isometrias, que movem figuras planas, quer construir exemplos de modelos didácticos para a compreensão do pensamento visual-espacial e identificar, não só processos de pensamento que os alunos utilizam na execução de tarefas geométricas, mas também determinar os seus níveis de desenvolvimento de raciocínio geométrico para movimentos.

Para que os objectivos acima mencionados fossem atingidos, a abordagem metodológica do estudo implicou cinco vertentes que por vezes ocorreram em simultâneo: desenvolvimento do modelo teórico, desenvolvimento dos ambientes de ensino, desenvolvimento e administração de tarefas geométricas, implementação dos ambientes de ensino e recolha e análise de dados envolvendo esta última fundamentalmente a refinação e avaliação do modelo teórico e o nível de desenvolvimento geométrico dos alunos.

O desenvolvimento do modelo teórico foi uma construção gradual que surgiu fundamentalmente das muitas leituras e reflexões sobre o pensar visual-espacial. O desenvolvimento dos ambientes de ensino foi tratado com o fim de esses ambientes serem experienciados por alunos num ambiente natural de aula. Com o desenvolvimento das tarefas geométricas pretendia-se saber os conhecimentos geométricos dos alunos de duas turmas, e

determinar os níveis de desenvolvimento de raciocínio geométrico para movimentos e identificar modos de pensar visual-espacial dos alunos antes e depois de estes serem sujeitos aos ambientes de ensino. A vertente ligada à validação do modelo pretende ver se o paradigma de que partimos é coerente e funciona bem.

Foi decidido utilizar uma amostra diversificada, com o fim de enriquecer e variar o contexto onde se pretendia desenvolver e estudar o pensamento visual-espacial dos alunos. Optei por recorrer a duas metodologias de ensino implementadas em duas turmas do 4º ano do 1º ciclo do Ensino Básico. Em cada uma destas turmas centrei a minha observação em alunos com desempenhos diferentes. Não foi intenção deste estudo comparar quer as duas metodologias, quer os alunos com diferentes desempenhos.

No documento MARIA DA CONCEIÇÃO MONTEIRO DA COSTA (páginas 79-86)