• Nenhum resultado encontrado

2.BREVE HISTÓRIA DO MUSEU EM PORTUGAL

2.2. MUSEUS NO PERÍODO DA DITADURA E ESTADO NOVO

A revolta de 28 de Maio de 1926 põe fim à Primeira República portuguesa e coloca no poder uma Ditadura Militar. Com as transformações no regime político o sistema museológico estava definido de acordo com um discurso regionalista, utilizando um método pouco sistemático e marcado pelas disciplinas da história natural, da etnografia e da antropologia. Mais tarde, com o regime do Estado Novo – de 1933 (Nova Constituição) a 1974, as novas ideologias vão ter impacte sobre a museologia nacional, nomeadamente a do restauro imperativo do património edificado e o das comemorações nacionais. Não se privilegia a construção de espaços próprios, pelo contrário, são eleitos edifícios pré- existentes para novas funções museológicas. Observa-se assim que muitas vezes as exposições tiveram de rivalizar com símbolos do passado, nomeadamente as igrejas, e de se adaptar a espaços pouco favoráveis para as suas dimensões – talvez por isso se tenha privilegiado as exposições temporárias em detrimento das permanentes. O apoio dado a estes museus continua a ser o das elites letradas. No entanto, é neste período, com a publicação da ―Carta Orgânica dos Museus‖ em 1932, que acontece a primeira tentativa de organizar o sistema museológico português.

A ―Carta Orgânica dos Museus‖ refere algo muito singular: ‖Porque a propaganda, os pequenos trabalhos de protecção, conservação e limpeza dos monumentos classificados e dos repositórios de arte são do interesse das comunidades onde estes se encontram, poderão ser criadas, opcionalmente, comissões de arte e arqueologia, que constituirão um elo essencial entre os homens bons, amigos dos monumentos e da sua terra, e a organização administrativa dos serviços, permitindo desta forma estabelecer por todo o país uma rede de elementos corporativos interessados na salvaguarda e propaganda do nosso património artístico e arqueológico.‖ O Estado Novo utilizará três meios nesta fase para afirmar a centralização de um Estado forte, que recusa o demo - liberalismo e que promove uma imagem nacionalista: desenvolvendo o culto dos edifícios particularmente simbólicos, como os castelos, os conventos e as sés, que são objecto de obras de restauro; instituindo uma série de comemorações, das quais o Duplo Centenário da Fundação e Restauração de Portugal (1940), o 8º Centenário de Lisboa (1947) e o centenário henriquino (1960) foram as mais significativas; conduzindo uma prátic a

132 museológica caracterizada pela vontade de enclausurar obras em espaços de privilégio que lhes confeririam uma conotação capaz de fabricar uma imagem consagrada do passado. Sérgio Lira (1997) refere ―(o) território, nação, história e tradições formavam um todo, explicativo da identidade portuguesa, indivisível e coeso. Sobre esta base foi erigido muito do discurso nacionalista e também sobre esta base foi pensada muita da museografia da época‖. No entanto, embora seja uma legislação clara nos requisitos técnicos e procedimentos institucionais, não fornece problemáticas sobre os públicos, as temáticas dos museus e o que coleccionar por não ter uma resposta. Quanto à referência aos ―homens bons‖ na Carta Orgânica, segundo Howard Wiarda (1974:18), ―não devem ser confundidos com uma elite ou nobreza, mas entendidos como o elo constante entre os interesses públicos e o soberano ou, nos tempos modernos, entre o interesse público e o Estado.‖

Em 1932, foram abolidos os três Conselhos de Arte e Arqueologia criados anteriormente, mas a política de descentralização manteve-se, através do incentivo dado às Comissões Municipais. A Carta Orgânica dos Museus irá observar-se na prática através da reestruturação museológica do país. Foram, por exemplo, atribuídas competências museológicas às Casas do Povo, no sentido de ―providenciar assistência social e serviços de auxílio, tornar acessíveis estruturas de apoio educativo e cultural e encorajar o desenvolvimento das comunidades‖. No documento ―Normas Gerais de Organização dos Museus e das Casas do Povo‖, publicado em 1946, ordenava-se que em cada Casa do Povo fosse instalado um museu no sentido de recolher e agrupar elementos etnográficos, a arte e a vida rural de cada região.

A categoria de museu regional é reconhecida pela primeira vez na história do sistema museológico português e introduzida num programa governamental. São reconhecidos os museus Machado de Castro em Coimbra, o Museu de Aveiro, o Museu Regional de Évora, o Museu Regional de Bragança, o Museu Grão Vasco de Viseu e o Museu de Lamego (art.º 51 do Decreto lei nº 20895, Diário do Governo do dia 7 de Março de 1932). É-lhes dado um enquadramento legal e financeiro. À excepção do Museu de Aveiro, que era um museu de arte e história, todos os restantes eram museus de arte e arqueologia. Incluíam parte dos acervos das extintas ordens religiosas e das colecções reais (após 1910), objectos diversos de arqueologia, pintura e escultura. Uma nova discussão é incitada nesta fase relativamente aos objectivos dos museus regionais e

133 sobre o local da sua instalação (Trindade, 1988)

A legislação de 1932 classificou os museus em três grupos: os três museus nacionais (o de Arte Antiga, o de Arte Contemporânea e o dos Coches), os sete museus regionais (Machado de Castro, Grão Vasco, de Aveiro, Regional de Évora, Regional de Bragança e de Lamego) e os museus municipais, tesouros de arte sacra e outras colecções de valor artístico, histórico e arqueológico. Além dos museus nacionais e regionais mencionados, havia ainda, segundo um inquérito realizado pelo Museu Nacional de Arte Antiga, outros trinta e três museus no país, dos quais vinte e dois eram dependentes das Câmaras Municipais, dois das Comissões de Iniciativa e Turismo, dois pertencentes às Juntas Gerais dos Distritos, dois ligados a Misericórdias, três particulares e ainda o Museu da Casa da Nazaré e o Museu Camiliano (Couto, 1961).

As Exposições Colonial em 1934 e a Exposição do Mundo Português de 1940 foram verdadeiros instrumentos do discurso cultural do Estado Novo, concretizando o modelo ideológico que será aplicado às estruturas museológicas. Em resultado das Celebrações dos Centenários, três novos museus surgem: o Museu José Malhoa, nas Caldas da Rainha (1933), o Museu de Arte Popular em Lisboa (1948) e o Museu Nacional de Etnografia das Províncias do Douro Litoral, no Porto (1945). Até ao final da década de 50, surgem iniciativas como a instalação no Porto do Museu Nacional Soares dos Reis (1940) – cujo acervo resulta da colecção do Museu Portuense e de um acervo da Câmara Municipal do Porto. Inédito na história dos museus em Portugal é a inauguração, nas Caldas da Rainha, do Museu José Malhoa (1959), por ter sido a primeira instituição museológica com edifício construído de raiz. ―Por volta de 1940, o sistema museológico português possuía as características suficientes para permitir que a diversidade cultural de Portugal se manifestasse através das colecções e programas. Os museus do país pretendiam-se modestos em tamanho e recursos, e a sua criação deveria ser impulsionada por preocupações regionais, através do esforço das elites locais‖ (Pimentel, 2005: 141).

Com a abertura gradual de Portugal ao exterior que se verificava desde meados dos anos 50, torna-se visível a situação dos museus portugueses totalmente dependente das elites locais com todas as desvantagens que essa situação tinha. Classificação da documentação e colecções, formação dos funcionários, diversidade de exposições, armazenamento eram questões não consideradas, os museus cresciam com as mais variadas características, sem objectivos claros quanto à sua finalidade. No entanto, o

134 prestígio de certos estudiosos e conservadores vai permitir a problematização destas questões. Destaca-se o exemplo de João do Couto. Tendo iniciado a sua carreira de conservador no Museu Machado de Castro em 1915, assume as mesmas funções no Museu Nacional de Arte Antiga em 1924, tornando-se seu director em 1932. Desenvolveu um trabalho muito aprofundado sobre os museus portugueses e criou o primeiro serviço educativo numa organização museológica portuguesa no Museu de Arte Antiga.

Em 1962, João Couto traçou um mapa museológico do país que se tornou num balanço da actividade museológica do Estado Novo. Ao fazê-lo, chegou à conclusão que era necessário alargar a rede dos museus nacionais e regionais: ―Se os museus não fossem ainda letra morta no plano da cultura nacional e se os indivíduos, conscientes da lição que lhes podem oferecer, os acalentassem, os frequentassem e os pagassem, o problema estava em grande parte resolvido‖ (Couto, 1942: 314-315). Neste estudo, João Couto referia que o maior número de museus se aglomerava na região entre Douro e Mondego, seguido dos museus da área de Lisboa e depois de Évora. João Couto preconizava uma mudança na mentalidade face ao que deveria ser um museu: ―Claro que não vejo o Museu como um simples agrupamento de obras capitais de arte de todos os tempos antigas e modernas. Vejo o museu como um estabelecimento que preside aos interesses turísticos da região, mas ainda um local onde se desenvolve uma intensa vida cultural que vai das exposições de arte plástica aos concertos musicais, das palestras às lições e aos cursos‖ (Couto, 1942: 314-315). A perspectiva de João Couto antevê aquilo que virá a ser o museu pós modernista do século XXI vocacionado a encontrar formas de mediação com os diferentes públicos, tentando diversas formas de comunicar a arte.

A criação da Fundação Calouste Gulbenkian em 1956, e do seu museu em 1969, dotada de meios absolutamente inéditos para a escala nacional, vai marcar a diferença pela sua capacidade económica, pela diversidade das suas iniciativas e pelas suas opções modernas e independentes: ―(…) Tanto no delineamento das suas diversas componentes (espaços expositivos, acolhimento, reservas, laboratórios, oficinas e serviços) e respectiva articulação funcional como nas soluções museográficas adoptadas e respectivo percurso, ele beneficiava dos notáveis progressos da museologia internacional entretanto ocorridos que, em geral, proclamavam o Museu como lugar de cultura visual, de forte marcação estética, onde os vários conjuntos de peças, mas também cada uma delas, deveria ser capaz de entrar em diálogo silencioso com o visitante‖ (Silva, 2001 in Barbosa, 2006: 25).

135 O papel dinamizador do ICOM (Conselho Internacional de Museus) nas décadas de 50 e 60 e a criação da Associação Portuguesa de Museologia em 1965 levam igualmente a uma nova viragem. A associação é criada com o objectivo de agrupar conservadores de museus, restauradores de obras de arte, historiadores e críticos de arte, arquitectos e outros técnicos e cientistas ligados aos problemas museológicos, mas também de promover o conhecimento da museologia e dos domínios científicos e técnicos que a informam através de reuniões e visitas de estudo, conferências, exposições e publicações. O seminário e o conjunto de palestras organizadas pela Associação Portuguesa de Museologia em 1967 demonstram a preocupação que os profissionais dos museus portugueses já tinham, nesta fase e o papel da acção educativa dos museus. Porém, serão as décadas de setenta e oitenta que irão marcar a viragem decisiva neste campo, como veremos a seguir (Camacho, 2007:26).

O decreto-lei nº46758, conhecido como o Regulamento Geral dos Museus de Arte História e Arqueologia, publicado a 18 de Dezembro de 1965, veio trazer novas responsabilidades e exigências. Desde logo, foi elaborada uma lista de museus dependentes do Ministério da Educação Nacional, para os quais foram sistematizados o âmbito das respectivas colecções, os objectivos e o papel educativo e social. Este novo Regulamento introduzirá relevantes alterações na vida dos museus portugueses, se nem sempre na prática, ao menos na forma teórica em que eram entendidos pelo poder legislativo. No preâmbulo deste decreto-lei manifesta-se uma nova concepção de museu em Portugal: os objectivos, a constituição, as funções e as formas de as desempenhar, o próprio exercício institucional, foram revistos e alterados. O museu, em especial o museu de arte ou de arqueologia, passou a dever cumprir dois propósitos fundamentais: assegurar a conservação e "(...) expor, valorizar, fazer conhecer e apreciar as obras que nele são conservadas (...)". Uma missão científica e artística e uma missão educativa e social: "Se o museu não for mais do que uma instituição com finalidade conservadora, poderá então qualificar-se de necrópole. (...) O museu deve ser um organismo cultural ao serviço da comunidade. (...) o museu [deverá estar] aberto ao público e destinado a fomentar a ilustração geral." O texto do decreto-lei afirma a necessidade de o museu deixar de ser uma instituição passiva. O operário, o estudante da escola primária ou secundária, o não iniciado, precisam ser esclarecidos, necessitam ter um museu interessante e

136 interessado. O museu deverá ser um "(...) instrumento de formação de espírito" e "(...) exercer uma acção pedagógica eficiente". Em resumo, conclui o legislador, "A novas responsabilidades são, pois, chamados os museus".

Um dos passos dados no sentido de responder a estas novas solicitações foi o da substituição do estágio de conservadores por um curso de conservadores de museu, "(...) acentuando-se a evolução iniciada pelo decreto nº 39116, no sentido de as formas de aprendizado, quase exclusivamente empíricas, cederem o lugar ao ensino sistematizado, de feição simultaneamente teórica e prática". Neste novo curso, a disciplina fundamental passou a ser a Museologia, apesar de serem mantidas algumas outras, à imagem do que acontecia no estágio. Mais uma vez, a preocupação foca-se na profissionalização do pessoal dos museus, limitando o desempenho de cargos superiores a pessoas detentoras do curso, especialmente tratando-se de cargos de provimento definitivo: "Com estas cautelas se procura obstar a que a função seja entregue, como muitas vezes tem acontecido, a pessoas bem-intencionadas, mas inteiramente desconhecedoras das mais elementares normas museológicas.".

Outro aspecto que mereceu atenção foi o da própria organização e arranjo dos museus e suas exposições: "(...) a acumulação e a amálgama cederam o lugar à selecção, à simplicidade e ao bom gosto (...)", pois "(...) os museus são órgãos de cooperação escolar (...)", não mais abertos apenas a um público de letrados, mas vocacionados para um público bem mais vasto. Outra questão singular refere-se a uma formulação genérica de uma política aquisitiva para os museus do Estado, não só relacionada com os quantitativos orçamentais disponíveis, mas pautada por critérios mais vastos e, tendencialmente, mais uniformes.

Relativamente à organização interna regulamentada por este instrumento, no que respeita a livros de registo e a inventários: pretende-se uniformidade a nível nacional, tanto nas documentações internas como na actividade de publicação de catálogos e guias. Ainda a nível nacional, fica determinada uma regra geral de horário de abertura, bem como uma regra de pagamento das entradas40. O decreto começa por determinar a lista dos museus dependentes da Direcção Geral do Ensino Superior e das Belas-Artes, em número de vinte e os seus encargos financeiros. Neste, as Câmaras Municipais ficavam sujeitas a um a

40 Ficando as entradas livres possíveis apenas durante o fim-de-semana e assegurando, como antes se havia já feito, o acesso sem

ónus a professores e estudantes das Universidades e das escolas superiores de belas-artes, bem como a todas as visitas de estudo de qualquer grau de ensino, dependendo dos directores de cada museu a respectiva regulamentação.

137 participação a acordar com os ministérios do Interior, Finanças e Educação Nacional.

Nos casos específicos das Câmaras Municipais de Abrantes, Braga, Castelo Branco, Guimarães e Leiria, a lei era muito clara quanto à manutenção das obrigações financeiras para com os respectivos museus, conforme legislação anterior, exaustivamente citada no diploma. Preocupou-se ainda o legislador em anotar, em capítulo específico, os mais importantes princípios de organização interna e funcionamento dos museus, bem como, em outros dois capítulos o que respeita às suas direcções e às funções reservadas aos conservadores, ficando, desta forma, traçado um quadro algo rígido. Não foi também esquecida a inspecção dos museus, determinando a peça legislativa relativamente aos princípios do seu funcionamento, as suas responsabilidades e o âmbito da sua execução.

Este decreto inovou no sentido de pretender que os museus fossem organismos vivos, se assumissem como centros activos de divulgação cultural para além das funções clássicas de conservarem, ampliarem, exporem, catalogarem e investigarem colecções. Sugeriu que os museus observassem os modernos conceitos museológicos apelando para uma mudança do conceito de acumulação e amálgama de objectos para o da selecção e simplicidade. Incitou os museus a desenvolverem mecanismos de atracção dos públicos e sobre eles exercerem uma acção pedagógica eficiente com cursos, palestras, exposições temporárias e visitas orientadas Sugeriu um contacto estreito entre museus e escolas. Instituiu o curso de conservador de museus no Museu Nacional de Arte Antiga.

No contexto do Estado Novo, a museologia etnológica irá alcançar um novo fôlego, um papel inovador que até ali tinha pertencido à arte. O período longo do Estado Novo estabeleceu uma dinâmica nos museus assente numa restauração material, moral, nacional instituída por António de Oliveira Salazar e representada a partir do culto a edifícios simbólicos, diversas comemorações e a valorização do enclausuramento de obras de arte que pudessem aclamar o passado. A intensa criação de museus regionais, como já foi referido, que vão desempenhar o papel de centros preservadores da memória local e a ideia de criação do Museu do Homem Português, que acabou por se traduzir na constituição do Museu de Etnologia do Ultramar (com os seus impulsionadores Jorge Dias e Veiga de Oliveira) e no de Artes e Tradições Populares. Duas instituições com flagrantes indefinições e marcadas por períodos de interrupções até os dias de hoje. Lentamente, os museus deixam de ser da exclusiva responsabilidade da elite local, para passarem a ser administrados por uma classe profissional regulamentada e financiada pelo Estado. Porém,

138 a mudança de uma mentalidade corporativista defendida em 1932 para uma realidade diferente e mais progressista e moderna levou tempo a ser realizada. O Museu de Etnologia só viria a abrir após o 25 de Abril de 1974.