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1.A EVOLUÇÃO DA PALAVRA MUSEU

1.3. O SÉCULO XIX – O SÉCULO DOS MUSEUS

A acção liberal foi marcada pela laicização do Estado e a tendência para a secularização. Os tesouros artísticos que pertenciam às antigas colecções eclesiásticas e principescas vão constituir parte integrante da evolução dos museus de História Natural, Arte e Arqueologia, em que a sistematização dos objectos da exposição dos museus, destas diferentes tipologias, implica a sua classificação através da investigação científica desenvolvida por Linneaus, (1707-1778). (Almeida, 2007).30 ―Neste contexto, o desejo de apropriação do conhecimento enciclopédico tornou sintomátic as Viagens Philosophicas pela procura do objecto natural, arqueológico, artístico e etnográfico, em que o mundo dos sentidos se transfere para o plano das ideias, criando no público uma áurea de sacralidade ritual pela classificação e datação segundo as épocas e civilizações, agrupando as colecções em zonas e expositores com uma informação sintética e essencial para o público‖ (Almeida, 2007).31

29 O ―século das luzes‖ inaugura o conceito de museu científico, segundo princípios teóricos estabelecidos em tratados por eruditos,

como se de uma enciclopédia se tratasse (Homs, 2004: 28). A natureza e a organização das colecções transformam-se pouco a pouco, entrando em ruptura com a tradição da curiosidade. Começam a proliferar novas colecções, tais como as de arqueologia, botânica e geologia.

30 Nome pelo qual é conhecido o zoólogo e botânico sueco Carl von Linné (Pearce, 1995:115-118). Foi o criador de uma classificação

das plantas, em que atribuía a cada uma um nome duplo, nomeadamente o género e a espécie, e que mais tarde aplicou à classificação de todo o mundo animal. O seu Systema Naturae, divulgado em 1735, continua ainda hoje a ser utilizado.

31 Alexandre Rodrigues Ferreira, em 1777, aos 22 anos, foi nomeado pela Rainha D. Maria I como ―o primeiro naturalista português‖ e

encarregado da expedição científica denominada ―Viagem Filosófica‖, que complementou a Comissão de Demarcação de Limites entre as fronteiras dos domínios de Portugal na América. As imagens na Viagem Philosophica e os desenhos de peixes oceânicos produzidos pelo arquitecto italiano António José Landi e pelos dois desenhadores Joaquim José Codina e José Joaquim Freire, que o acompanharam pela selva amazónica, revelam técnicas e os métodos de desenhar comuns a todo o género de representações. O exemplo da Viagem Philosophica patenteia a necessidade da procura dos objectos naturais neste período, a sua classificação e datação que se transferirá para o público numa amostragem através de expositores com informação simples. Através dos documentos textuais resultantes das Viagens Philosophicas, como as relações das remessas de colecções, as correspondências de viagens e os inventários de museus, é possível localizar e comparar os desenhos de peixes oceânicos executados pelos desenhadores das duas expedições. Os documentos resultantes dessa viagem interessam a todas as áreas do conhecimento humano

103 No princípio do século XIX, a Europa já contabiliza uma importante quantidade de museus, classificáveis em três categorias: os museus de arte, os mais numerosos, cujos bens culturais provinham directamente das colecções particulares32 os museus de ciências

naturais, que expõem espécimes naturais, fósseis, cristais e rochas; e os museus históricos, normalmente galerias com retratos e quadros históricos, com particular

interesse para os nacionalismos imperialistas da Europa de Oitocentos, a formação de novos Estados, a afirmação da classe média e a burguesia industrial, as indústrias e actividades artesanais e as novas relações laborais entre operariado e patronato (Hooper- Greenhill, 1994).

A evidente ruptura das novas teorias do conhecimento resultante da discussão ideológica da nova dimensão pública do museu acrescenta um conhecimento científico moderno. A crítica à metodologia positivista, pretende recriar o passado da História do Homem de uma forma totalizante e evolucionista da vida humana, procurando mostrar a interligação entre a política, o social, o económico, a religião, as manifestações da Arte, evitando hierarquizar as tipologias de colecções pelo aproximar aos conceitos de inspiração marxista na museologia (Bourdieu, 1970). ―A institucionalização dos grandes museus assistiu ao propagar dos gabinetes de curiosidades que, ainda privados, tinham por base a fortuna, a dedicação à recolha e mecenato para patrocínio da exploração, teorização e investigação científica do mundo, pois este podia e devia ser conhecido e dominado‖ (Almeida, 2007).

Apesar da implementação de numerosos espaços museológicos, surge a dúvida de saber se estes deviam abrir exclusivamente aos estudiosos e investigadores, ou, pelo contrário, se se incentivava a aprendizagem do público em geral. De qualquer modo e apesar da indecisão, verificou-se que os museus progrediram no sentido de se tornarem instituições de maiores possibilidades e com uma orientação pública (Pearce, 1995). Durante o período de transição, os museus, muitas vezes, optaram por abrir ao público em

32 No século XIX desenham-se os modelos nas galerias de arte e nos museus, enchendo-se de cópias de escultura e pintura, como

alternativa às Academias de Belas Artes. Este facto desenvolve-se mais nos países anglo-saxónicos, com a resultante diferenciação que se fará entre Museu e Galeria de Arte.

104 determinados dias do ano, ou épocas. 33

Houve uma ―segunda‖ revolução com a passagem dos ―museus - bibliotecas de objectos‖ à procura da exaustividade, quando surgiu a ―exposição‖ no fim do século XIX. A partir de 1851, com as Exposições Universais, cria-se uma nova forma de divulgação da oferta cultural, emergindo uma oportunidade para a educação pública de massas, mesmo ao nível internacional, estando sempre presente a ideia de progresso científico, tecnológico, industrial e comercial. Estas exposições, com uma sucessão de objectos acolhendo um único tema, levaram-nos a uma certa autonomia da exposição em relação ao museu. A criação das exposições no fim do século XIX foi acompanhada de uma dissociação do espaço do museu entre as funções de ―reserva‖ e de ―exposição‖. Isto contribuiu e permitiu que fosse realmente levada em conta a comunicação com os visitantes, mas privou-os da percepção da diversidade das actividades dos museus (pesquisa, recolha, conservação).

A primeira impressão da actividade museológica da segunda metade do século XIX é o seu carácter de permanência, ou seja, contrariamente à colecção particular, que em muitos casos, se dispersava depois da morte do coleccionador e proprietário, o museu sobrevive aos seus fundadores, sendo a transferência de propriedade de colecções (da posse privada para a posse pública) e a sua gestão pelo Estado feitas para benefício e educação das populações. Assiste-se ainda a uma inquietação na criação de novos espaços museológicos e na diversificação das suas temáticas cujas palavras - chaves são o eclectismo, o romantismo e o nacionalismo. Os valores artísticos começam a ganhar força, o museu adquire, pouco a pouco, uma nova função, a de consagrar os artistas vivos. Deste conceito nascem os museus de arte ―contemporânea‖ que recebem os artistas activos. Para o efeito, o Estado Francês estabeleceu no Palácio do Luxemburgo, um museu de artes vivas, uma espécie de ―antecâmara do Louvre‖, suportado pela administração das Belas Artes. O desejo de ser conhecido conduziu numerosos artistas a assegurar, por legados e doações, para que as suas obras entrassem num Museu (Barbosa, 2006: 19).

33 Foi privilegiado o valor científico das colecções em museus de ciência e indústria, com o objectivo de servir o elemento educativo e

consolidar as mudanças sociais em curso, a partir de 1851, com as Exposições Universais, marcando uma nova forma de divulgação da oferta cultural, com a capacidade para a educação do público, mesmo ao nível internacional, estando sempre presente a ideia de progresso científico, tecnológico, industrial e comercial (António Almeida, 2007). As peças que foram expostas na primeira Exposição Universal (1851) em Inglaterra permitiram a abertura, em 1852 do Museum of Manufactures, que mais tarde, em 1857, com um novo edifício de arquitectura de ferro e de vidro, se designará South Kensingthon Museum. Na viragem do século XX, em 1899 é rebaptizado de Victoria and Albert Museum (Pardal, 2008). Nesta altura, esta instituição destacou-se pelo estabelecimento de um horário pós-laboral, cujo objectivo era facilitar as visitas às classes trabalhadoras.

105 Em 1873, como refere Jean Clair (1976), o sueco Hazelius funda em Estocolmo o Nordiska Museet, baseado no mais amplo conceito de civilização nórdica, estendendo-se dos Alpes à Lapónia. Para mostrar tudo o que havia num território com a sua vida própria, imaginou-se uma nova forma de museu: o museu a céu aberto, contrapondo aqui o museu coberto e fechado entre muros. Em 1891, abriu-se esta nova tipologia de museu no parque de Skansen, onde se podia visitar diversos tipos de construções rurais, uma igreja antiga, fazendas, moinhos, ateliês espalhados no meio de um parque botânico e zoológico. Era um museu etnográfico escandinavo que reunia diferentes edifícios, cujos interiores estavam reconstituídos com o mobiliário de origem. Os guardas estavam vestidos com trajes locais que reviviam as antigas técnicas de fabricação e o estilo de vida.

Na mudança de século, uma nova discussão ideológica levará os museólogos a reformular a dimensão pública do museu, alicerçando novos sentidos à sua missão e aos seus objectivos. O simbolismo dos espaços reais, aristocráticos e da própria igreja será substituído pelo espaço do museu que passará também a representar o culto do Estado- Nação (Naldinho, 2007). A organização museológica foi-se distinguindo enquanto instituição histórico-social e tornando-se lentamente visível. A modernidade enquanto representação de concepções e de práticas burguesas, não só funda e edifica a invenção nacional, mas imaginariamente também a projecta e materializa através dos museus. Enquadrados pela função exercida em espaços dedicados a armazenar, recordar, preservar, mas que realizam sobretudo selecções e hierarquias e, deste modo, separam e distinguem o que hegemónica e simbolicamente se impõe aos povos lembrarem, respeitarem e talvez até se observarem, como num espelho, numa imagem de si mesmo (Ponce, 2008).

A entidade museológica aspirou assumir um papel cultural e ideológico com uma marca homogeneizadora em relação aos múltiplos conjuntos sociais. Hegemonizados em virtude da acção de grupos sociais detentores de poder institucional. Enquanto proposta museológica, a concepção de informar, formar, educar resultou mais num esforço de se adequar à multiplicidade de fracções socioculturais, segundo e sob determinados parâmetros políticos, estéticos e historiográficos. Um grupo de elite proveniente o u

106 identificado com os valores burgueses revela os seus elementos simbólicos através de princípios linguísticos, culturais, estéticos, bem como as estreitas relações que este grupo mantém com outros grupos. As fracções socioculturais presentes num museu patenteiam ainda os imaginários sociais, as representações difundidas entre diversos grupos socioculturais, a selecção de certas memórias (em detrimento de outras memórias colectivas ou de grupo) e a eleição de acervos patrimoniais. Ao darem simbolicamente importância a tais narrativas, incorporam, a selecção e a hierarquia formadas pelo perfil desse grupo social. Afinal, uma escolha traduz-se sempre numa narrativa subjectiva, impressa em áreas tão distintas como a investigação, a conservação e a comunicação do museu (Ponce, 2008).

O projecto moderno de museu fez deste um espaço em que a selecção das memórias, bem como a definição dos objectos para corporizar valores e significados então eleitos, a fim de compor tais narrativas, resultou, em muitos casos, numa quase auto-

sacralização, ou seja, como se fosse o lugar onde também residiria algo sagrado (Ponce,

2008). Basta lembrar a atenção e a veneração que se costuma (ou costumava) solicitar ao comportamento do público, que deve ser silencioso, contido e evitar os contactos tácteis com os objectos expostos. O acervo depositado e exibido é considerado repleto de preciosidades e raridades. Os legados que o discurso museográfico planeia apresentar a uma imaginada comunidade de visitantes, representam a complexidade sociocultural desse público. Convém, pois, interpretar significados os políticos que estão historicamente incorporados ou até incutidos na evolução moderna e contemporânea da organização

museal; bem como estes nos podem remeter para a sua re-conceptualização. Sendo

assim, entende-se que os museus são lugares de memória e de poder. Estes dois conceitos estão permanentemente articulados em toda e qualquer instituição museológica. Os museus podem simbólica e efectivamente tentar a árdua tarefa de operar como espaços onde se celebra, de modo acrítico, a ―memória do poder‖. Mas podem também vir assumir a função de equipamentos interessados em trabalhar democraticamente com o poder da memória (Chagas, 1998: 13). Assim, a compreensão do museu como sendo também ―uma arena e um campo de luta‖ está bastante distante da ideia de espaço neutro e apolítico de celebração de memórias. Mesmo quando estruturados sobre bases positivistas, pretensamente objectivas, de celebração da memória de vultos vitoriosos e de culto à saudade de heróis, estão indelevelmente marcados peloo embrião da contradição e de um jogo dialéctico (Chagas, 1998:20-21).

107 A constituição dos museus exaltadores da memória do poder decorre da vontade política de indivíduos e dos grupos sociais, e representa os interesses de determinados segmentos sociais (Ponce, 2008). Assim, museus de celebração da memória do poder das classes hegemónicas (política e socialmente porque detêm uma sumptuosidade institucional e simbólica persuasiva) ainda que tenham tido origem, em termos de modelo, nos séculos XVIII e XIX, continuaram a sobreviver e proliferar durante todo o século XX (Chagas, 1998:20-21).