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O Credor Incompassivo

No documento Parabolas de Jesus Completo Kistemaker (páginas 64-71)

Mateus 18.21-35 “Então, Pedro, aproximando-se, lhe perguntou: Senhor, até quantas vezes meu irmão pecará contra mim, que eu lhe perdoe? Até sete vezes? Respondeu-lhe Jesus: Não te digo que até

sete vezes, mas até setenta vezes sete. Por isso, o reino dos céus é semelhante a um rei que resolveu ajustar contas com os seus servos. E, passando a fazê-lo, trouxeram-lhe um que lhe devia dez mil talentos. Não tendo ele, porém, com que pagar, ordenou o senhor que fosse vendido ele, a mulher, os filhos e tudo quanto possuía e que a dívida fosse paga. Então, o servo, prostrando-se reverente, rogou: Sê paciente comigo, e tudo te pagarei. E o senhor daquele servo, compadecendo-se, mandou-o embora e perdoou-lhe a dívida. Saindo, porém, aquele servo, encontrou um dos seus conservos que lhe devia cem denários; e, agarrando-o, o sufocava, dizendo: Paga-me o que me deves. Então, o seu conservo, caindo-lhe aos pés, lhe implorava: Sê paciente comigo, e te pagarei. Ele, entretanto, não quis; antes, indo- se, o lançou na prisão, até que saldasse a dívida. Vendo os seus companheiros o que se havia passado, entristeceram-se muito e foram relatar ao seu senhor tudo que acontecera. Então, o seu senhor, chamando-o, lhe disse: Servo malvado, perdoei-te aquela dívida toda porque me suplicaste; não devias tu, igualmente, compadecer-te do teu conservo, como também eu me compadeci de ti? E, indignando-se, o seu senhor o entregou aos verdugos, até que lhe pagasse toda a dívida. Assim também meu Pai celeste vos fará, se do íntimo não perdoardes cada um a seu irmão”.

A História

Jesus, alguma vez, negou-se a atender qualquer um que tenha vindo a ele em arrependimento e fé? Claro que não! Nunca, não importa que pecado tivesse cometido. Essa é a nossa resposta. Sabemos isso porque “a Bíblia nos diz”. Mas, quantas vezes nos esquecemos do nosso próximo? Uma coisa é Jesus perdoar alguém que tenha cometido um crime odioso; outra, nós perdoarmos o nosso próximo que cai, constantemente, no mesmo pecado.

Pedro, conhecedor da Lei e dos Profetas, bem como da tradição judaica, sabia que devia perdoar seu semelhante. Sabia qual era o seu dever. Mas, qual o limite? Há limite, afinal? Pedro pensava que devia perdoar até sete vezes. Ele achava que sete vezes seria suficiente, e que Jesus, provavelmente, diria algo como: “Sim, Pedro, é bastante”. A misericórdia sem limite não encoraja uma vida de pecados? Jesus não concordaria com Pedro: “Há limite para tudo?”.

Mas a resposta de Jesus é: “Não te digo que até sete vezes, mas até setenta vezes sete”. Jesus multiplica os dois números, sete e dez — números que simbolizam a perfeição — e acrescenta um outro sete: Ele quer dizer, não sete vezes, mas setenta vezes — sete vezes; isto é, a perfeição vezes a perfeição e mais a perfeição110. Ele indica a idéia

de infinito. A misericórdia de Deus é tão grande que não pode ser medida; você, Pedro, deve também mostrar misericórdia a seu próximo.

Para explicar a magnitude do amor misericordioso de Deus, que deve se refletir em seu povo, Jesus ensina a parábola do servo incompassivo. Ele conta a história, e o faz muito bem.

Um rei reuniu seus oficiais (= servos), no dia marcado para o acerto de contas111.Um deles lhe devia a astronômica soma de dez mil

talentos. De fato, a expressão “dez mil talentos” traz implícito o significado de algo que não se pode numerar ou contar, algo infinito112.

Além disso, o talento era, naqueles dias, o mais alto valor monetário do sistema financeiro. Comparando, vemos que o total anual de impostos que Herodes, o Grande, recebia de todo o reino era de, aproximadamente, novecentos talentos113. Está claro que o ministro

das finanças devia a seu senhor uma quantia enorme. Não nos é contado o que ele havia feito com o dinheiro; esse fato não tem importância. Ele devia a soma de dez mil talentos, e tinha que pagar. Ele sabia que jamais conseguiria todo aquele dinheiro, no dia marcado para o ajuste de contas.

Quando ficou diante de seu senhor, ouviu o veredicto: ele, sua mulher, seus filhos e tudo o que possuía seriam vendidos para o pagamento da dívida. Era demais para ele. Atirou-se aos pés do soberano, implorando misericórdia, e pediu: “Sê paciente comigo e tudo te pagarei”. Ele implorou misericórdia, não o perdão. Prometeu restituição, sabendo que poderia pagar apenas uma pequena parte e não mais. Como resposta, recebeu o que menos esperava — quitação da dívida. Seu senhor teve piedade dele, cancelou o seu débito e deixou-o ir114.Inacreditável! Que alegria! Quanta bondade!

Este foi apenas o primeiro ato do drama115. O segundo ato é

paralelo ao primeiro: o ministro das finanças se torna senhor e encontra um outro oficial do rei.

Descendo as escadas do palácio real, o servidor público

111 Quando um monarca oriental convocava seus secretários do tesouro, deixava de

lado os oficiais menores. Etc se encontrava com os oficiais do alto escalão do serviço público. Veja-se K H. Rengstorf, TDNT 11; 266 que destaca que a palavra servo é a forma lingüística usual para a relação de sujeição ao rei, nas despóticas monarquias do antigo oriente.

112 H. O. Liddell e R. Scott, A Greek English Lexicon (Oxford: Clarendon Presa, 1968),

p. 1154. A soma de dez mil talentos chega a vários milhões de dólares.

113 Josephus, Antiquities 17:318-20. Judéia, lduméia e Samaria pagavam Seiscentos

talentos de impostos anualmente. Galiléia e Peréia pagavam duzentos talentos; Batanéia e Traconitis, bem como Auranitis pagavam cem talentos.

114 O ministro das finanças expôs sua falta de condição para pagara dívida e pediu

um adiamento. Prometia pagar tudo dentro de um ano. Desse modo, o dinheiro devido renderia juros ao rei. Na realidade, o débito (=daneion) que o rei perdeu era um empréstimo. Derrett, Law in the New Testament, pp. 39-40.

115 Para um estudo simétrico da parábola, veja-se F. H. Breukelman, ‘Eine Erklárung

des Gleichnisses vom Schaiksknecht”, Parrhesia, Festschrift honoring Karl Barth (Zürich: 1966), pp. 261-87.

absolvido encontrou um outro servidor que lhe devia cem denários. Realmente, era muito pouco — alguns dias de trabalho e a soma seria conseguida. Mas o servidor público agarrou-o pelo pescoço e o sufocava, exigindo pagamento imediato: “Paga-me o que me deves”116. O devedor atirou-se aos pés do ministro das finanças e

pediu: “Sê paciente comigo e te pagarei”. Ele não precisava dizer: “Pagarei tudo”, porque o total era pequeno. Estava claro que ele pagaria tudo. Mas o ministro das finanças se recusou, lançou o homem na prisão, esperando que alguém opusesse em liberdade sob fiança, e pagasse a dívida.

O terceiro ato apresenta as testemunhas do segundo ato; e é, também, a segunda e última confrontação do rei com o servidor público.

Nada foi feito às escondidas; era difícil guardar segredos, no palácio. Outros viram o que tinha acontecido e não podiam manter silêncio. Tinham que contar ao rei. O rei, quando ouviu a história, ficou zangado. Chamou o servo e o repreendeu: “Servo malvado, perdoei-te aquela dívida toda porque me suplicaste, não devias tu, igualmente, compadecer-te do teu conservo, como também eu me compadeci de ti?” Com isso, entregou-o aos carcereiros para que o torturassem até que a divida fosse paga117.

A conclusão é que todo aquele que recebeu perdão deve estar pronto a perdoar quem quer que esteja em débito com ele, e deve fazê-lo de todo o coração.

A Lição

Esta história movimentada, contada em pormenores expressivos, acentua o contraste entre o amor infinito e a misericórdia de Deus e o comportamento mesquinho do homem, que tenta justificá-lo com base na lei. Jesus usa essa parábola para dizer a Pedro algo a respeito da grandeza do amor misericordioso de Deus para com o homem pecador. O pecado do homem é tão grande que Deus tem que perdoá-lo infinitamente mais que a conta de setenta vezes sete. A misericórdia de Deus não pode ser medida. Podemos calculá-la apenas vaga e aproximadamente, ao contar a história do servidor público que devia a seu senhor uma soma que beirava a milhões.

Embora a palavra justiça não seja encontrada na parábola, os

116 O conservo não podia pagar, pois estava indo ao rei para quitar seu imposto

anual. Prendendo seu companheiro, o ministro das finanças ofendeu o rei, privando- o de receber o que lhe cri devido, naquele dia. Consulte-se Derrett, Law in the Newlestament, pp. 41-42.

117 “A tortura era empregada regularmente, no Oriente, contra um governador

desleal, ou contra qualquer um que atrasasse os impostos, a fim de descobrir onde escondia o dinheiro, ou para extorquir a soma de seus parentes e amigos”. Jeremias, Parables, 212.

conceitos expressos são os de misericórdia e justiça. São conceitos bíblicos porque ocorrem repetidamente no Velho Testamento, revelados pelos salmistas e profetas118.

Cantarei a bondade e a justiça; a ti, SENHOR, cantarei (Sl 101.1).

O povo judeu sabia muito bem que tinha que praticar a misericórdia e a compaixão. Deus lhes dissera expressamente: “Se emprestares dinheiro ao meu povo, ao pobre que está contigo, não te haverás com ele como credor que impõe juros. Se do teu próximo tomares em penhor a sua veste, lha restituirás antes do pôr-do-sol; porque é com ela que se cobre, é a veste do seu corpo; em que se deitaria? Será, pois, que, quando alguém clamar a mim, eu o ouvirei, porque sou misericordioso” (Ex 22.25-27)119. A justiça se manifestava

de diversas maneiras. Por exemplo, as exigências do Ano do Jubileu eram impostas; durante aquele ano, os que haviam alienado suas propriedades entravam de novo na posse delas e os escravos adquiririam sua liberdade120. Resumindo, o judeu dos dias de Jesus

sabia que misericórdia e justiça não podem ser tratadas separadamente. Estão interligadas.

É por esse motivo que Jesus conta a parábola do credor incompassivo. Ele ensina que a prática da misericórdia não se coloca apenas ocasionalmente ao lado da justiça. Jesus ensina a aplicação de ambas, da justiça e da misericórdia. Muitas vezes, entendemos justiça como uma norma que deve ser aplicada rigorosamente, a misericórdia como um abandono ocasional dessa norma. Exercemos essa opção como um “direito”, e, freqüentemente, somos elogiados ao mostrar indulgência121. Reconhecemos que a justiça contém um tanto de

misericórdia, mas, no geral, sentimos que esta não deve ser mostrada a toda hora.

No tempo do Velho Testamento, entretanto, Deus instruiu seu povo a considerar misericórdia e justiça como normas iguais. Normas essas que devem ser, ambas, eficientes e funcionais, pois refletem a maneira como Deus se relaciona com o seu povo. Com o tempo, a ênfase se alterou. Escritos do período entre os Testamentos proclamam que, no dia do juízo, a justiça prevalecerá e a misericórdia terá fim. “Então o Altíssimo será visto no trono do julgamento, e haverá um fim para toda piedade e paciência. Apenas o julgamento permanecerá” (2 Esdras 7.33, 34 NEB).

118 Sl 103.6,8; Mq 6.8. Consulte-se F. Notscher, “Righteousness (justice)” na

Encyclopedia of Biblical Theology (London: 1970), 2: 782.

119 SB, 1: 800-1.

120 O sistema do Ano do Jubileu, do Velho Testamento não funcionava muito bem.

Não por causa da lei de Deus, mas pelo egoísmo e avareza do homem. Os profetas do Velho Testamento pregavam a justiça, baseados, constantemente na lei. Veja-se A. H. Leitch, “Righteousness”, em ZPEB, 5:108.

Aplicação

Em nossa sociedade temos, às vezes, enfatizada a misericórdia, em detrimento da justiça. A preocupação exageradamente escrupulosa para com os “direitos” do criminoso tem alcançado extensão tal que os direitos do ofendido acabam por ser completamente ignorados. As Escrituras não ensinam que a misericórdia anula a justiça; nem ensinam que a justiça elimina a misericórdia. As duas normas são igualmente válidas.

Como Jesus mostrou a Pedro que ele devia perdoar o seu próximo, vezes sem fim? Ele contou a história de um homem cujo débito era esmagadoramente grande e que implorou piedade quando a justiça foi aplicada. Seu senhor cancelou a dívida e mostrou infinita misericórdia. O homem foi posto em liberdade e pôde conservar sua mulher, filhos e tudo quanto possuía122. Estava isento de sua dívida.

Jesus não contou a história de um homem que, várias vezes, dia após dia, vinha diante de seu senhor para implorar perdão pelos pecados que repetidamente cometia. Em vez disso, para realçar o nosso débito para com Deus, ele ensina a história de um homem que tinha uma enorme dívida com o seu senhor. “Se observares, SENHOR, iniqüidades, quem, SENHOR, subsistirá? Contigo, porém, está o perdão, para que te temam” (SI 130.3,4). A desesperança do homem se revela quando ele está diante de Deus123.Seu pecado é esmagador

porque ele transgrediu a lei de Deus. Merece a morte. Mas ele sabe que Deus é um Deus de misericórdia. Quando Davi tinha desobedecido a Deus, levantando o censo de Israel e Judá, ao fazer cumprir a justiça, Deus deu a ele três escolhas: três anos de fome, três meses de perseguição, ou três dias de peste. Davi respondeu: “Caiamos nas mãos do SENHOR, porque muitas são as suas misericórdias...” (2 Sm 24.14; 1 Cr 21.13). Deus revelou a Davi o seu pecado, deu-lhe o veredicto e mostrou misericórdia.

No segundo ato da história, Jesus mostra que o homem perdoado deve refletir a misericórdia e a compaixão de Deus. Se Jesus não tivesse descrito o servidor público, de joelhos, implorando misericórdia, e tivesse contado apenas a segunda metade da história, com o homem forçando seu companheiro a pagar-lhe a dívida, poderíamos dizer que prevaleceu a justiça mesmo que rigorosa124. Mas 122 “A lei judaica apenas permitia a venda de um israelita cm caso de roubo, se o

ladrão não pudesse devolver o que tinha roubado; a venda da esposa era terminantemente proibida sob a jurisdição dos judeus; conseqüentemente, o rei e seus ‘servos’ representam os gentios”. Jeremias, Parables, p. 211. Ver, também, SB, 1: 798. Mas a parábola não se refere ao povo judeu, e, portanto, a lei judaica não se aplica. Veja-se Derrett, Law in the New Testament, p. 38.

123 R. S. Wallace, Many Things in Parables (New York: Harper and Brothers, 1955), p.

171.

o homem tinha sido perdoado de uma dívida enorme, e agora encontrava um companheiro que, devendo-lhe uma ninharia, pedia misericórdia. Ele perdoaria?

Corrie ten Boom, conhecida oradora e autora, esteve prisioneira, durante a II Grande Guerra, em um campo de concentração alemão, sofrendo muito nas mãos de um dos guardas alemães. Anos mais tarde, um dia, testificou sua alegria no Senhor, numa reunião na Alemanha do após guerra. Depois do encontro, enquanto algumas pessoas conversavam com ela, aquele mesmo guarda alemão aproximou-se de Corrie e lhe pediu que o perdoasse. Num clarão de reconhecimento, ela se lembrou da dor e da angústia sofrida na prisão, por causa daquele guarda. Agora, ele ali estava, à sua frente, pedindo-lhe misericórdia. E aquele que não merecia, recebeu o perdão. Triunfou a misericórdia!

O servidor público retratado na parábola não perdoaria. Aplicaria o princípio da justiça sem misericórdia. Em vez de deixar triunfar a misericórdia, escolheu a vitória da justiça. Esse foi seu erro. Tiago escreve que “o juízo é sem misericórdia para com aquele que não usou de misericórdia” (2.13). O servo se recusou a refletir a compaixão que seu mestre lhe mostrara. Porque não mostrou piedade por seu companheiro, mas exigiu justiça, teve que enfrentar, uma vez mais, seu senhor, o rei. Exigindo justiça se afastou de seu mestre e de seu companheiro125.

No último ato desse drama, o servo incompassivo reencontra, face a face, o seu irado senhor. O que o servo fizera a seu devedor, o senhor faz agora a ele: a justiça é administrada sem misericórdia. O servo lançou a si próprio na miséria, para sempre.

Deus não pode relevar que alguém se recuse a mostrar misericórdia, pois isto contraria sua natureza, sua Palavra e seu testemunho. Deus perde aceitando o pecador como se este não tivera pecado jamais. Deus perdoa dívida do pecador e recomenda que não peque mais (Sl 103.12 e Jr 31.34). Deus espera que o pecador perdoado faça o mesmo. Ele se torna o representante de Deus quando mostra a característica divina da graça misericordiosa.

A conclusão da parábola é expressa em palavras que nos são familiares Quando Jesus ensinou o Pai Nosso, continuou, dizendo: “Porque se perdoardes aos homens as suas ofensas, também vosso Pai celeste vos perdoará; se porém, não perdoardes aos homens (as suas ofensas), tão pouco vosso Pai vos perdoará as vossas ofensas” (Mt 6.14,15)126.

125 D. O. Via, Jr., The Parables (Philadelphia: Fortress Press, 1967), p. 142. 126 Veja-se, também, Marcos 11.25 e Colossenses 3.13.

No documento Parabolas de Jesus Completo Kistemaker (páginas 64-71)