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O marco jurídico da redemocratização e a igualdade material

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1.3 Uma abordagem acerca do princípio da igualdade jurídica

1.3.2 O marco jurídico da redemocratização e a igualdade material

A Carta Imperial, de 25 de março de 1824, foi apresentada ao povo brasileiro como a primeira Constituição do Brasil Império. A nação mantinha condição de escrava, porque permanecia subjugada a Portugal. Nem por isso o princípio da igualdade jurídica deixou de lá estar insculpido, uma vez que escravo não era considerado gente, quanto mais um ser igual.

Nas constituições brasileiras que se seguiram foi estabelecido o princípio da igualdade formal, estático e de conteúdo inerte. A CF/1988 nasceu de maneira diferente. Quando promulgada pelo Presidente do Congresso Nacional, Deputado Ulisses Guimarães, ele assim anunciou: “a Constituição nasce do parto de profunda crise que abala as instituições e convulsiona a sociedade” (ROCHA, 1996, p.).

A passagem do conteúdo inerte e formal para um princípio da igualdade substantiva e dinâmica, cuja marca se encontra na estrutura normativa, permitiu a Rocha (2006, p. 288) se referir à crise: “essa convulsão tem, no olho do vulcão, a desigualdade social, econômica, regional, que tem enredado o tecido político brasileiro”.

Ao pretender fazer diferente, não apenas proibir o que sempre se proibiu no campo das desigualdades, o novo texto constitucional compromete-se a instituir, criar ou recriar instituições no plano democrático. A finalidade é assegurar como valor, a essência do Estado Democrático de Direito. De forma mais clara, nas cristalinas palavras da advogada:

O princípio da igualdade resplandece sobre todos os outros acolhidos como pilastras do edifício normativo fundamental alicerçado. É guia não apenas de regras, mas de quase todos os outros princípios que informam e conformam o modelo constitucional positivado, sendo guiado apenas por um, ao qual se dá a servir: o da dignidade da pessoa humana (ROCHA, 1996, p. 289).

O comentário de Rocha é sobre a CF/1988, que tem um preâmbulo14, no qual estão presentes os verbos instituir um Estado Democrático, com vistas a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais.

Na esteira desses propósitos, o art. 1º da Carta Magna vai estabelecer os cinco fundamentos da República, na instituição de um Estado Democrático de Direito, fixando, no inciso III, a dignidade da pessoa humana. Essa dignidade será guia para os objetivos e princípios fundamentais, com a finalidade de construir uma nova sociedade brasileira.

Merece especial atenção o art. 3º do diploma legal que estabelece os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, a começar pela força do inciso I, que assume o desafio de “construir uma sociedade livre, justa e solidária”. Em um olhar mais atento nessa redação, percebe-se uma declaração implícita de que a República Federativa do Brasil não é livre, justa ou solidária.

O plano dos objetivos propostos é definido em termos de obrigação com a transformação do quadro político e social ali retratado, a começar pelo seu primeiro inciso, com vistas a uma construção da igualdade, em uma sociedade a ser reconstruída como democrática, justa e solidária. As palavras de Rocha desvelam a profundidade dessa compreensão, do por que não é livre a nação.

Porque não se organiza segundo a universalidade desse pressuposto fundamental para o exercício dos direitos, pelo que, não dispondo todos de condições para o exercício de sua liberdade, não pode ser justa. Não é justa porque plena de desigualdades antijurídicas e deploráveis para abrigar o mínimo de condições dignas para todos. E não é solidária porque fundada em preconceitos de toda sorte (ROCHA, 1996, p. 289).

Como desdobramento dessa declaração, o texto também carrega consigo a afirmação da inexistência de uma República Democrática. Situação essa que delibera sobre o Direito de organizar o Estado, em que a igualdade jurídica, guiada pelo fundamento da dignidade humana, não se restrinja a uma vedação de tratamentos discriminatórios. Abre-se um horizonte, para que a República se afaste da vedação, transportando-se para uma realidade, material e objetiva, portanto substantiva, com possibilidades na apreciação dessa condição histórica.

14 A palavra preâmbulo deriva de dois termos do latim, o prefixo pré, que significa antes, e o verbo ambulare,

que significa andar, marchar. Sendo assim, o preâmbulo abrange a invocação inicial do documento constitucional, sendo definido como um documento de intenções do diploma, apesar de não configurar uma norma constitucional. Conforme Morais (2005), o preâmbulo deve ser observado como elemento de interpretação e integração dos diversos artigos que lhe seguem.

No art. 3º a norma constitucional prevê a direção da mudança a ser seguida, depois de 21 anos de regime de repressão. Para construir o estabelecido no primeiro inciso, consta o verbo erradicar, tanto a pobreza quanto a marginalização, visando a reduzir as desigualdades sociais e regionais.

O legislador constituinte parece compreender que a pobreza, decorrente da forma de distribuição de riqueza de uma nação, também reflete a face mais visível ou expressão maior das desigualdades que excluem e marginalizam. Esses conceitos estão intricadamente articulados e se constituem em uma totalidade de propósitos, amparados em verbos de ação na sua forma infinitiva.

Estudos desenvolvidos no Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) retratam a evolução temporal da pobreza15 e indigência no Brasil. Nos dados observa-se que a nação que via nascer a redemocratização no país, com a nova Constituição, era formada por 62,6 milhões de pobres, representando 45,3% da população brasileira. O mais surpreendente, porém, é o fato de que praticamente a metade dos pobres (30,6 milhões de brasileiros) era considerada indigente, compondo uma faixa de mais de 22% da população.

Os dados manifestam o desafio que a nação tem a cumprir rumo à igualação social, diante da gritante condição de miséria de quase um em cada quatro brasileiros. Esse expressivo contingente de extrema pobreza, marginalizado pela injustiça social lança ao chão o princípio constitucional maior da República, que se apoia na dignidade da pessoa humana. Esse foi o legado que o longo período de exceção deixou para a redemocratização do Brasil.

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