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CAPÍTULO II – O MOVIMENTO CTS E O ENSINO

2.1 O MOVIMENTO CTS

Num contexto de insatisfação produzida nos países capitalistas do hemisfério norte, sobre os avanços econômicos, científicos e tecnológicos ocorridos no século XX, sem maiores preocupações com a qualidade de vida da sociedade, emerge o movimento CTS (GARCIA et al., 1996; CEREZO, 1998; AULER; BAZZO, 2001).

O movimento CTS, com base em correntes de pesquisa empírica, na filosofia e sociologia, manifesta-se como resposta crítica às concepções clássicas, essencialistas e triunfalistas, no que diz respeito aos conceitos tradicionais da ciência, como responsável por produzir e acumular o conhecimento objetivo em relação ao mundo, e da tecnologia, associada à mera construção dos artefatos tecnológicos, sem se preocupar com as consequências sociais e ambientais (PINHEIRO; SILVEIRA; BAZZO, 2007).

Em sua consolidação histórica, o movimento CTS se caracteriza cronologicamente, em três períodos, considerando as relações entre a ciência, a tecnologia e a sociedade. O primeiro período se estabelece pós-guerra, pelo otimismo do progresso atribuído à ciência e à tecnologia. O segundo período, denominado de alerta, surge entre os anos de 1950 e 1968, em resposta crítica dos movimentos sociais e políticos aos primeiros desastres produzidos por uma tecnologia fora do

controle, contra a guerra do Vietnam e ao primeiro acidente nuclear grave. Na sequência, o terceiro período se estabelece a partir de 1969, como resposta social aos problemas decorrentes do progresso científico-tecnológico (GARCIA et al., 1996). Com isso, os estudos CTS surgem nas décadas de 1960 e 1970, com o propósito de apresentar a ciência e a tecnologia não como um processo ou atividade autônoma, que segue uma lógica interna de desenvolvimento em seu funcionamento, mas como um processo ou produto inerentemente social, em que os elementos não técnicos desempenham um papel decisivo em sua gênese e consolidação (CEREZO, 1998).

Bazzo, Pereira e Bazzo (2014) relatam que na década de 1980, apesar dos poucos estudos e das grandes inquietações conceituais, os estudiosos do enfoque CTS apontaram três amplos campos de atuação: o da investigação com base teórica; das políticas, na facilitação da participação pública sobre as questões de CT; e o campo educacional, objetivando a alfabetização científica e tecnológica com viés holístico.

Nesse sentido, Cerezo (2002, p. 9-10) descreve que os estudos CTS assumem três direções:

1) No campo da pesquisa, os estudos CTS foram se adiantando como uma alternativa à reflexão tradicional em filosofia e sociologia da ciência, promovendo uma nova visão não essencialista e contextualizada da atividade científica como processo social.

2) No campo das políticas públicas, os estudos CTS têm defendido a regulamentação pública da ciência e tecnologia, promovendo a criação de diversos mecanismos democráticos que facilitem a abertura dos processos de tomada de decisão em questões concernentes a políticas científico- tecnológicas.

3) No campo da educação, esta nova imagem da ciência e da tecnologia na sociedade se cristaliza no aparecimento, em numerosos países, de programas e materiais CTS em ensino secundário e universitário.

Sendo assim, a ciência e a tecnologia são deslocadas do espaço da suposta neutralidade para o campo do debate político e social (AULER, 2011). O movimento CTS emerge como crítica à suposta superioridade das atividades científico- tecnológicas e postula uma leitura crítica sobre as transformações no mundo contemporâneo, refletindo sobre as interações da ciência e da tecnologia na dinâmica social.

Os estudos CTS constituem a resposta por parte da comunidade acadêmica à crescente insatisfação com a concepção tradicional da ciência e tecnologia, aos problemas políticos e econômicos relacionados com o desenvolvimento científico-tecnológico, e aos movimentos sociais de protesto que surgiram nos anos sessenta e setenta.

Esse movimento trouxe para a discussão a importância social da ciência e da tecnologia, apontando a necessidade de promover avaliações críticas e análises reflexivas sobre os impactos da ciência e da tecnologia no contexto social. Nos currículos de ciências as mudanças ocorreram, inicialmente, com a imersão de disciplinas nas áreas das ciências sociais e humanas, entre elas a filosofia, história da ciência e economia (PINHEIRO; SILVEIRA; BAZZO, 2007).

Considerando suas origens, os estudos CTS distinguem-se em duas tradições: a europeia, que de acordo com Cerezo (1998), se origina no “programa forte” da sociologia do conhecimento científico, enfatizando a dimensão social antecedente ao desenvolvimento científico-tecnológico com foco nas ciências sociais, sendo uma tradição de investigação acadêmica, mais que educativa ou de divulgação; e a norte- americana, que, segundo Silveira (2007), apresenta como pontos fortes as discussões sobre as questões sociais, políticas e a ênfase dada à prática e às interferências ambientais, mediante a renovação da educação, a avaliação de tecnologias e da política científico-tecnológica.

De acordo com Bazzo, Pereira e Bazzo (2014, p. 63),

A tradição norte-americana, mais pragmática, buscou suas origens na institucionalização administrativa e acadêmica. Sua ênfase é centrada nas consequências sociais da ciência e da tecnologia. Ao contrário da tradição europeia, manteve a atenção voltada à tecnologia e, secundariamente, à ciência, destacando um caráter prático e valorativo. Seu marco de avaliação se prende, por exemplo, à ética e à teoria da educação.

As tradições ampliaram, em esfera global, os debates políticos sobre a insatisfação com os rumos do desenvolvimento científico, tecnológico e econômico, que não se preocupavam com bem-estar social. A neutralidade e linearidade das atividades da ciência e da tecnologia passaram a ser questionadas e avaliadas no contexto social.

No que diz respeito à dimensão social das duas tradições, Garcia et al. (1996) citam que a europeia entende que os fatores sociais condicionantes contribuem na gênese e consolidação dos debates sobre as questões científico-tecnológicas. Na

vertente norte-americana, as discussões focam a forma com que os produtos da ciência e tecnologia incidem na vida das pessoas e na organização social.

A figura 2 apresenta as principais diferenças entre as duas tradições que, em suas características, estabelecem críticas às interferências sociais da tecnociência.

Figura 2 – Diferenças entre as duas tradições CTS

Fonte: Bazzo, Pereira e Bazzo (2014, p. 64)

As tradições direcionam seus objetivos conforme as implicações da C e T no contexto histórico e social local, mas ambas apontam sua insatisfação com o desenvolvimento científico e tecnológico.

Bazzo, Pereira e Bazzo (2014. p. 64) salientam que as tradições europeia e norte-americana trazem como objetivos comuns: “a crítica à concepção herdada da ciência como uma atividade pura e neutra; o rechaço da concepção de tecnologia simplesmente como ciência aplicada de forma descomprometida dos valores sociais; e a promoção da participação pública nas tomadas de decisão no comportamento”.

No contexto da integração das dimensões ambientais nas relações CTS, o Aikenhead (1994; 2005) difundiu os debates sobre o tema, principalmente, quando em outubro 1997, coordenou o desenvolvimento dos parâmetros nacionais para a educação em Ciências no Canadá, contemplando todos os níveis de escolaridade. Os avanços de seus trabalhos desencadearam maiores discussões sobre as relações CTS, ampliando o foco para as relações ciência-tecnologia-sociedade-ambiente (CTSA), na proposta da alfabetização científica e ambiental.

Sociedade Âmbitos cognitivos e valorativos Tecnociência Transformação social Construção social do conhecimento Tradição CTS norte-americana Baixo clero

- Ênfase nas consequências sociais - Atenção na tecnologia, e secundariamente na ciência

- Caráter prático e valorativo

- Marco evolutivo: ética, teoria da evolução

Tradição CTS europeia

Alto clero

- Ênfase nos valores antecedentes - Atenção na ciência, e secundariamente na tecnologia

- Caráter teórico e descritivo

- Marco explicativo: sociologia, psicologia, antropologia

Nesse sentido, Aikenhead (2005) com base nos seus estudos, aponta que o ensino de CTS em ciências, originalmente, foi inspirado pelo ambientalismo e pela a sociologia da ciência, com foco na responsabilidade social e de valores. Dessa forma, ocorreu a integração de duas áreas acadêmicas: a primeira que tratava das interações da ciência de cientistas com questões sociais e instituições externas à comunidade científica; e a segunda referente às interações sociais entre cientistas, sua comunidade, epistêmica, e os valores ontológicos internos à esta comunidade (AIKENHEAD, 2005).

Na América Latina, tais tradições impulsionaram a origem do Pensamento Latino Americano de Ciência-Tecnologia-Sociedade (PLACTS), instituído, inicialmente, por pesquisadores argentinos, em uma tentativa de propor uma abordagem mais aderente à realidade dos países latino-americanos (DIAS, DAGNINO, 2007; DAGNINO, 2008; AULER, 2011).

Apesar de não fazerem parte de uma comunidade, explicitamente, CTS, o movimento latino-americano concentra sua reflexão sobre a ciência e a tecnologia como uma competência das políticas públicas (VACCAREZZA, 1998). Assim, o PLACTS abordava “a ciência e tecnologia como processos sociais com características específicas e dependentes do contexto onde são introduzidas, compartilhando, portanto, a perspectiva CTS de não-neutralidade e não-universalidade” (VON LINSINGEN, 2007, p. 7).

Dias e Dagnino (2007, p. 92), esclarecem que,

O PLACTS representa uma corrente de pensamento autônoma e original da América Latina e que, apesar de remeter às décadas de 1960 e 1970, ainda se mostra bastante atual. Reconhece a existência de obstáculos estruturais, determinados historicamente, ao desenvolvimento da América Latina, e destaca a importância de elementos como a constituição de projetos nacionais e a identificação de demandas cognitivas como orientação para as atividades científicas e tecnológicas.

A ênfase desse pensamento centra suas discussões sobre a política científica e tecnológica que se abstrai da responsabilidade social sobre o desenvolvimento econômico (a política industrial, sobretudo), considerando que a ciência e a tecnologia se tornem significativas e funcionais tendo em vista as especificidades de cada local. Os movimentos CTS americano, o europeu e o PLACTS na América Latina, trazem o enfoque crítico sobre as visões da neutralidade da ciência e do determinismo tecnológico, desmistificando suas concepções de essencialidade, salvacionismo e

autonomia sobre o contexto social e questionam a efetividade do modelo linear de desenvolvimento (VON LINSINGEN, 2007).

Garcia et al. (1996) consideram que as tradições dos estudos CTS se diferenciam em seus pontos de partida e interesses, mas coincidem ao ressaltar a dimensão social da ciência e da tecnologia, opondo a visão anacrônica sobre a natureza da ciência, como forma autônoma de conhecimento e da tecnologia, como ciência aplicada, contribuindo para desmistificar suas imagens tradicionais. O objetivo dos estudos CTS se centra então, na reivindicação de uma maior participação pública nas decisões políticas sobre a ciência e a tecnologia.

No seu caminhar, o movimento CTS ganhou repercussão na esfera global, ampliando seu foco de reflexão em diferentes setores da sociedade, com maior destaque para o campo educacional, em que significativos estudos discutem os propósitos da educação científica (SANTOS, SCHNETZLER, 2003; SILVEIRA, 2007; PINHEIRO, SILVEIRA, BAZZO, 2007; SANTOS, AULER, 2011; NIEZER, 2012).

No foco dessa pesquisa, as discussões CTS estão embasadas nos pontos comuns das tradições, admitindo o PLACTS como pensamento local com maior interferência sobre nosso país, o Brasil. Dessa forma, o enfoque CTS no ensino de química, apresenta-se como pertinente para discussão, tendo em vista suas contribuições para a reflexão crítica sobre os temas sóciocientíficos.