• Nenhum resultado encontrado

O olhar dos familiares contra o idoso e o do cuidador agressor

2 O IDOSO E O CONTEXTO CONTEMPORÂNEO DO

2.7 A cultura da violência contra o idoso: o idoso definido pelo olhar do outro

2.7.1 O olhar dos familiares contra o idoso e o do cuidador agressor

A família, como já ponderado no decorrer do presente capítulo, é o espaço social e legal de vinculação do idoso; daí sua importância para a manutenção do pertencimento social pelos laços afetivos e por sua valorização. Sob a concepção hegeliana, segundo Axel Honneth os laços afetivos entre dois seres e entre pais e filhos representam a primeira etapa do reconhecimento recíproco, porque em sua efetivação “os sujeitos se confirmam, mutuamente na natureza concreta de suas carências” (2003, p. 159-160).

Entretanto, em alguns lares isso não acontece. O idoso, mesmo que seja a fonte de rendimento de toda a família, passa a “morar” em um dos cômodos da casa, sem contato com os demais e excluído de qualquer lazer. Geralmente esse quadro de abandono evolui para os maus tratos e desencadeia inúmeras sequelas como a depressão.

Nessa circunstância, a convivência familiar em relação ao idoso já não representa um reconhecimento de um ser cidadão e digno, detentor de direitos. O olhar representa mais uma situação de desprezo pelo que já não serve mais, pelo “velho imprestável”, xingamentos comuns relatados por muitos dos idosos que denunciam violência, como o que será evidenciado no estudo de caso.

Sob outra perspectiva, em se tratando de casos em que o cuidador informal passa a cuidar sozinho do idoso, mantendo a priori, o reconhecimento recíproco, mas que, pelo desgaste físico e emocional agride de alguma forma sua vítima, o olhar dos familiares contra

o cuidador agressor é de revolta, de condenação, sem preocupação com os motivos determinantes que ocasionaram a violência.

Nessa situação, os familiares que estavam de há muito afastados, aparecem não para retomar os cuidados com o parente idoso, mas para estigmatizar o cuidador como “monstro agressor” e reivindicar do Estado providências e a condenação cabíveis. O desejo se expressa somente ao binômio penal: delito-pena, ou seja, ao delito praticado deve o agressor responder com a pena que lhe é cabível.

Nos casos em que o cuidador informal agride o idoso, citam-se os fatores psíquicos (estresse, uso de drogas e de álcool e isolamento social) que desenvolvidos no sujeito ativo (cuidador) o fazem esquecer os laços afetivos que o ligam com a vítima (idoso).

Em relatos de filhas ou netas que praticaram agressão contra idosas, são comuns os desabafos de frases como “não sei onde estava com a cabeça”, “estou arrependida” (FALEIROS; BRITO, 2009, p. 12-13).

No momento da agressão, rompem-se os laços afetivos (embora momentaneamente) e a agressora passa a desconhecer na vítima uma pessoa pela qual nutre sentimentos.

Também se pode perceber que o reconhecimento do direito à integridade física do idoso, à sua dignidade foram inobservados por parte do cuidador agressor.

No que diz respeito ao olhar da sociedade contra o cuidador agressor, pode-se notar que diante da veiculação de notícias sobre maus tratos contra idosos, geralmente existe a condenação social do agressor, não se importando com o indivíduo em si mesmo, também sujeito de direitos.

Para a sociedade, portanto, basta a imposição da pena. Uma das razões do desconhecimento individual diante do coletivo é o total fracasso da regra de ressocialização penal.

Ademais, no que se refere ao olhar da sociedade em relação ao idoso, via de regra não se tem valorado a categoria, que ao contrário, às vezes sofre indiferença e repulsa, numa expressão de tratamento diferenciado de ser humano.

Mas o reconhecimento social trata-se de uma via dupla: de um lado, os idosos precisam ser valorados pela sociedade como categoria integrante da mesma e, com isso, os idosos, tem a oportunidade de sentir-se valorizados para reconquista da autoestima enquanto

ainda cidadãos dotados de dignidade. É o olhar do outro que torna o idoso valorado e pode contribuir para o envelhecimento saudável.

Todas as pessoas, inclusive as pessoas idosas precisam participar ativamente da sociedade para dispor de uma condição humana sem perder a cidadania e a dignidade. E é essa condição humana que “representa o conjunto das atividades que permitem ao homem a luta por reconhecimento e a visibilidade pública” (CARVALHO, 2014, p. 31-32).

No contexto do direito, o reconhecimento para Friedrich Hegel (1990) diz respeito à compreensão e obrigações que o sujeito deve ter em relação ao outro, reconhecendo o outro como cidadão e “pessoa de direito” (HONNETH, 2003, p. 179). Trata-se, portanto, do reconhecimento do idoso enquanto cidadão e sujeito de direitos, e a observância desses direitos através da obrigação, numa relação do reconhecimento mútuo entre familiares e o idoso.

O reconhecimento é fundamental na formação e conformação da identidade, considerando que a mesma não se forma apenas pelo individuo, mas a partir da experiência das relações sociais vividas. Daí é que, de algum modo, a pessoa também é o que diz e pensa sobre si mesma. A visão que a sociedade e os meios de comunicação afirmam sobre o idoso forma uma identidade sobre os mesmos: uma espécie de polo passivo sem autonomia, vítima de violência, como afirma Mônica Campedelli:

É difícil falar de identidade sem fazer referências as suas raízes relacionais e sociais, portanto, a identidade define a nossa capacidade de agir e de falar, diferenciando-nos e nos igualando uns aos outros. A construção da identidade se produz e se mantêm na possibilidade de auto-identificação, encontra-se apoiada no grupo ao qual pertencemos e nos situa de acordo com o sistema de relações que vamos produzindo e efetivando ao longo do tempo. [...] portanto, a identidade é, em cada caso, uma relação que compreende nossa capacidade de nos reconhecermos e na possibilidade de sermos reconhecidos pelos outros (2009, p. 15).

Muitos aspectos da identidade estigmatizada da pessoa idosa evidenciados pelos meios de comunicação, ou por pessoas que convivem com o idoso, tornam-se referência seja para assimilar a identidade depreciada ou para se contrapor à mesma.

Dessa forma, a assimilação da identidade do idoso pela reprodução de uma imagem negativa corrobora processos depressivos e negativos, numa ausência de referente positivo para a autossignificação, portanto, numa imagem estigmatizada de sujeito velho e incapaz, como afirma Elisabeth Mercadante:

A existência de uma identidade construída, a partir de um modelo estigmatizador de velho e a verificação de fuga desse modelo pelos próprios idosos que, como indivíduos, como seres singulares, não se sentem incluídos nele, aponta para o fundamento mesmo, próprio da construção de uma identidade social paradoxal: o velho não sou ”eu”, mas é o “outro”. É no levantamento desse fundamento, que contrasta e realça, que as diferenças pessoais surgem e imediatamente se contrapõem à categoria genérica de velho. Assim, se por um lado, o levantamento das diferenças, das particularidades exibidas individualmente remetem para a negação do modelo geral, por outro lado, essas mesmas e tantas outras novas particularidades podem ser trabalhadas pelos indivíduos para a produção de um novo sujeito velho. Assim, esse novo sujeito se produz, não se produz na contraposição de uma “alteridade jovem”, mas sim a partir da produção de uma “subjetividade” negadora da identidade estigma (1997, p. 32).

Seja de um modo, pela assimilação, seja do outro pela contraposição, o processo não colabora para o fortalecimento de uma identidade digna e cidadã da pessoa idosa, haja vista a imagem estigmatizada criada pelo contexto de violência contra o idoso.

3 DIREITOS HUMANOS, DIREITOS FUNDAMENTAIS E DIGNIDADE HUMANA