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CAPÍTULO 2 DIREITOS HUMANOS

2.5 O PROCESSO DE INTERNACIONALIZAÇÃO DOS DIREITOS

2.5.2 O processo de internacionalização dos direitos humanos no pós-guerra

Fora no contexto histórico pós-2.a Guerra Mundial que, definitivamente, ocorrera

a internacionalização dos direitos humanos.

Lembra-se que ali ocorreram as maiores atrocidades contra a pessoa humana, uma vez que milhões de indivíduos foram assassinados de forma cruel, configurando, de maneira explícita, o desrespeito ao direito mais primordial de todos os direitos, o direito à vida.

Deparando-se com esta situação caótica, e não possuindo, de fato, meios eficazes de proteção aos direitos humanos, viu-se necessário o desenvolvimento, no plano internacional, de uma ação que fosse capaz de assegurar tais direitos, avaliando-se como indispensável todo o processo de internacionalização dos direitos humanos, tendo já sido demonstrados ineficazes os métodos de proteção nacional, como bem propõe a seguinte passagem:

A internacionalização dos direitos humanos constitui, assim, um movimento extremamente recente na história, que surgiu a partir do pós-guerra, como resposta às atrocidades e horrores cometidos durante o nazismo. Apresentado o Estado como grande violador de direitos humanos, a Era Hitler foi marcada pela lógica da destruição e da descartabilidade da pessoa humana, o que resultou no extermínio de onze milhões de pessoas.

[...] Nesse contexto, desenha-se o esforço de reconstrução dos direitos humanos, como paradigma e referencial ético a orientar a ordem internacional contemporânea. Se a Segunda Guerra significou a ruptura com os direitos humanos, o pós-guerra deveria significar sua reconstrução.

A necessidade de uma ação internacional mais eficaz para a proteção dos direitos humanos impulsionou o processo de internacionalização desses direitos, culminando na criação da sistemática normativa de proteção internacional, que faz possível a responsabilização do Estado no domínio internacional quando as instituições nacionais se mostram falhas ou omissas na tarefa de proteger os direitos humanos.150

Nesse mesmo contexto, por se demonstrar incabível, para a continuidade da espécie humana, uma nova guerra, nos parâmetros da que acabara de ocorrer, surgiu, também nesta época, a Organização das Nações Unidas (ONU), vindo a delimitar, definitivamente, uma nova ordem internacional, com um novo modelo nas relações internacionais, pautado na manutenção da paz e na segurança internacional, além de socorrer-se da cooperação internacional em todos os âmbitos que afetem o desenrolar da humanidade.

A Carta das Nações Unidas, datada de 1945, consolida não apenas o próprio movimento de internacionalização dos direitos humanos, mas, também, uma nova geração de tais direitos, pautados, especificamente, na cooperação e na solidariedade entre os povos. Esses novos direitos, surgidos no contexto pós-guerra, ficariam conhecidos como direitos humanos de terceira geração.151

150PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional, p.117-119. 151Com a ascensão dos direitos humanos de terceira geração, conclui-se a associação dos direitos

humanos aos ideais da Revolução Francesa, completando o tríplice ideal revolucionário, qual seja: liberdade, igualdade e fraternidade/solidariedade.

Os direitos humanos de terceira geração consolidam, ainda mais, aqueles de primeira e segunda geração, além de se fundarem numa nova ordem internacional, surgida a partir do advento da ONU, tal como explica Vladmir Oliveira da Silveira:

Mais do que isso, a terceira geração sintetiza os direitos de primeira e da segunda geração sob o viés de solidariedade, adensando-os numa perspectiva de equilíbrio de poder – inclusive ideológico – em favor do ser humano [...].

O fundamento dos direitos de solidariedade está numa nova concepção de Estado, de ordem internacional e de relacionamento entre os povos, mas também – e principalmente – na realização efetiva dos direitos anteriores, a que se somam novos direitos não mais individuais ou coletivos, mas difusos. Nesta ótica, o respeito à soberania de um Estado deve compatibilizar-se com seu dever de cooperar com os demais, o que implica admitir como válidos direitos reconhecidos pela comunidade internacional – leia-se, pela consciência humana.152

Precisa-se, também, que esses direitos caracterizam-se, especialmente, por três fatores, quais sejam: são reclamáveis frente ao Estado, mas, igualmente, a titularidade de tais pode ser estatal; tais direitos requerem prestações positivas e negativas de toda a comunidade internacional, tendo em vista seu principal aspecto, qual seja, a solidariedade; e são direitos que reclamam à paz não somente como ausência da guerra, mas sim como a possibilidade de uma paz integral ao ser humano, que possibilite o seu pleno desenvolvimento.153

Somada a esses novos direitos, a ONU contribui de maneira única para o desenvolvimento dos direitos humanos, quando então veio a criar, como órgão subsidiário à Assembleia Geral, o Conselho de Direitos Humanos154, visando dar

prioridade máxima ao tema de direitos humanos no interior da organização.

152SILVEIRA, Vladmir Oliveira da; ROCASOLANO, Maria Mendez. Direitos humanos..., p.177. 153PICADO, Sonia. Apuntes sobre los fundamentos filosóficos de los derechos humanos:

antologia básica. Costa Rica: IIDH-CAPEL, 1990. p.45.

154Segundo Flávia Piovesan, cabe a este órgão, exemplificativamente: responder a violações de direitos

humanos, incluindo violações graves e sistemáticas, bem como elaborar recomendações; promover a efetiva coordenação das atividades de direitos humanos na ONU e a incorporação da perspectiva dos direitos humanos em todas as atividades da ONU (mainstreaming of human rights within the

UN system); estabelecer um diálogo transparente e construtivo com as organizações não-

Após três anos do surgimento da ONU, viu-se a necessidade do estabelecimento de uma Declaração que englobasse todos os direitos conquistados ao longo da história recente, além de poder vir a servir como um código moral a ser seguido e internalizado pelas constituições dos Estados integrantes de tais organizações.

Então, de tal forma, viera a surgir, no contexto da ONU, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 10 de dezembro de 1948, contando com uma universalidade e afirmação ética, uma vez que inexiste qualquer reserva, feita pelos Estados, a seus princípios e nem sequer qualquer voto contrário às suas disposições, levando em conta, de maneira única, as diversidades culturais. Empregando o entendimento de Flávia Piovesan:

A Declaração Universal de 1948 objetiva uma ordem pública mundial fundada no respeito à dignidade humana, ao consagrar valores básicos universais. Desde seu preâmbulo, é afirmada a dignidade inerente a toda pessoa humana, titular de direitos iguais e inalienáveis. Vale dizer, para a Declaração Universal a condição de pessoa é o requisito único e exclusivo para a titularidade de direitos. A universalidade dos direitos humanos traduz a absoluta ruptura com o legado nazista, que condicionava a titularidade de direitos à pertinência à determinada raça (a raça pura ariana). A dignidade humana como fundamento dos direitos humanos e valor intrínseco à condição humana é a concepção que, posteriormente, viria ser incorporada por todos os tratados e declarações de direitos humanos, que passaram a integrar o chamado Direito Internacional dos Direitos Humanos.

Além da universalidade dos direitos humanos, a Declaração de 1948 ainda introduz a indivisibilidade desses direitos, ao ineditamente conjugar o catálogo de direitos civis e políticos com o dos direitos econômicos, sociais e culturais.155

Ainda, no tocante à Declaração, pode-se dizer que ela impõe, aos Estados, definitivamente, uma conduta ativa na proteção e efetivação dos direitos humanos, devendo sê-la, internamente, traduzida em preceitos constitucionais e podendo, internacionalmente, influir no surgimento e na elaboração de instrumentos que supervisionem e fiscalizem a conduta dos Estados para com os direitos humanos de seus nacionais. Como detalha Cançado Trindade:

Ademais, a Declaração Universal também se projetou no direito interno dos Estados. Suas normas encontraram expressão nas Constituições nacionais de numerosos Estados, e serviram de modelo a disposições das legislações nacionais visando a proteção dos direitos humanos. A Declaração Universal passou a ser invocada ante os tribunais nacionais de numerosos países de modo a interpretar o direito convencional ou interno atinente aos direitos

humanos e a obter decisões. A Declaração Universal, em suma, tem assim contribuído decisivamente para a incidência da dimensão dos direitos humanos no direito tanto internacional como interno. Os direitos humanos fazem abstração da compartimentalização tradicional entre os ordenamentos jurídicos internacional e interno; no presente domínio de proteção, o direito internacional e o direito interno encontram-se em constante interação, em benefício de todos os seres humanos.156

Nesse sentido, pontua-se que apenas os Estados não mais seriam suficientes para a promoção e proteção dos direitos humanos, sendo necessária, de igual maneira, uma ação internacional ainda mais efetiva, podendo, até mesmo, vir a responsabilizá-los neste mesmo nível internacional, quando suas instituições se demonstrarem falhas ou omissas na proteção e efetivação dos direitos humanos para com seus cidadãos.

Especifica-se, ainda, que fora tal Declaração que possibilitou o conceito contemporâneo de direitos humanos, quando então atribui a tais direitos as características da universalidade, da indivisibilidade e da interdependência. Nos termos de Joaquín Herrera Flores, os redatores do referido documento objetivavam, de maneira resumida, dois pontos:

1) a descolonização dos países e regiões submetidos ao poder e ao saqueio imperialista das grandes metrópoles; e 2) a consolidação de um regime internacional ajustado à nova configuração de poder surgida depois da terrível experiência das duas guerras mundiais [...].157

Ressalta-se, ainda, que os direitos humanos – incorporados ao constitucionalismo contemporâneo – baseiam-se, sempre, no valor da dignidade humana, chamada, de tal forma, como superprincípio158.

Outro ponto bastante importante a ser discorrido é sobre o mundo bipolar que se encontrava na época, onde a Guerra Fria concentrava as duas ideologias dominantes, quais sejam, o capitalismo e o socialismo.

156CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. O direito internacional em um mundo em transformação.

Rio de Janeiro: Renovar, 2002. p.641.

157HERRERA FLORES, Joaquín. A (re)invenção dos direitos humanos. Florianópolis: Fundação

Boiteux, 2009. p.71.

158Como elencado por boa parte da doutrina nesse tema, a dignidade da pessoa humana possui um

Desta maneira, dois Pactos de direitos humanos, surgiram, em 1966, pela Resolução 2200A (XXI) da Assembleia Geral das Nações Unidas, quais sejam: o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (assinado pelos países capitalistas) e o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (assinado pelos países socialistas). Nas palavras de Vladmir Oliveira da Silveira:

Nos anos seguintes, com o desenrolar da Guerra Fria, esta tentativa de consenso sobre os direitos humanos se revelou crescentemente inócua devido à cada vez mais acirrada disputa entre os dois blocos. Sendo assim, quando se decidiu transformar os princípios declarados em normas jurídicas, a ONU formulou dois pactos distintos. Com efeito, parte dos países socialistas não assinou o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, enquanto parte das nações capitalistas não assinou o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais – dentre elas destacamos os EUA, que até hoje não reconhecem estes direitos como tais.159

Apesar dos esforços para a manutenção de um único documento que venha a abranger todos os direitos humanos, fora impossível evitar tal divisão entre os dois Pactos. Mesmo assim sendo, o caráter de indivisibilidade e unidade dos direitos humanos continua existindo e sendo característica básica de tais.

Investigando o Pacto dos Direitos Civis e Políticos, pode-se dizer que este teve sua vigência iniciada em 23 de março de 1976, determinando que os Estados signatários têm o dever de "respeitar e assegurar a todos os indivíduos dentro do seu território e sujeitos a sua jurisdição os direitos" que tal instrumento previa, segundo os termos de seu artigo 1.o, parágrafo 1.o.

Além disso, o Pacto vislumbra um Comitê de Direitos Humanos, cujo qual é, de fato, o mecanismo de implementação de tal documento, por intermédio da análise de relatórios advindos dos seus Estados signatários e da direta comunicação com Conselho Econômico e Social das Nações Únicas (ECOSOC). Visando a melhor compreensão, transcreve-se:

O mecanismo de implementação do Pacto de Direitos Civis e Políticos é o Comitê dos Direitos Humanos, composto por 18 membros eleitos a título pessoal. Os Estados-partes dos Pactos se obrigam a "apresentar relatórios sobre as medidas adotadas para dar efeito aos direitos reconhecidos" no documento

e "sobre os progressos realizados no gozo desses direitos" (Artigo 40, parágrafo 2). O Comitê é incumbido de estudar os relatórios, transmití-los aos Estados-partes com os comentários gerais que considerar apropriados, e de reportar, por sua vez, ao ECOSOC (Artigo 40, parágrafo 4).160

No que concerne ao segundo documento, o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, sublinha-se que este entrara em vigor em 3 de janeiro de 1976, apontando as diretrizes aos seus Estados signatários segundo os termos de seu artigo 2.o, parágrafo 1.o: "individualmente e através da assistência e

cooperação internacionais, especialmente econômicas e técnicas, até o máximo de seus recursos disponíveis, com vistas a alcançarem progressivamente a completa realização dos direitos".

Inicialmente, o Pacto previu que a apresentação de relatórios, advindos de seus Estados signatários, sobre os direitos nele previstos, deveria se dar no Conselho Econômico e Social das Nações Únicas (ECOSOC). Mais tarde em 1987, o ECOSOC

desenvolveu e atribui tal função ao Comitê para os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais.

Finalizando este ponto, debate-se que a Declaração de Viena de 1993 veio comprovar tal conceituação contemporânea dos direitos humanos, quando consagra, em seus preceitos, o alcance universal e o parâmetro indivisível e correlato desses direitos. A Declaração de Viena pode assim ser melhor compreendida:

Com um preâmbulo de 17 parágrafos, uma parte operativa conceitual de 39 artigos e um programa de ação com 100 parágrafos recomendatórios, a Declaração de Viena é o documento mais abrangente adotado consensualmente pela comunidade internacional sobre o tema. E, tendo-se em conta que a Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948 foi adotada por votação (48 a zero com 8 abstenções), quando a Assembleia Geral da ONU contava com apenas 56 membros (a maioria dos Estados atuais tinha ainda status de colônia), é possível dizer que foi a Declaração de Viena que conferiu caráter efetivamente universal aos direitos definidos no primeiro documento.161

Assim, afirma-se, com precisão, que a Declaração de Viena veio, de forma ainda mais necessária, reafirmar os valores universais dos direitos humanos para

160ALVES, José Augusto Lindgren. Os direitos humanos como tema global. 2.ed. São Paulo:

Perspectiva, 2003. p.53.

todos os povos da humanidade, independentemente de crença, religião, etnia, credo, cultura, ideologia, sexo ou qualquer outra distinção possível.