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CAPÍTULO 2 DIREITOS HUMANOS

2.3 OS DIREITOS HUMANOS NA IDADE MODERNA

A Idade Moderna, localizada entre os anos de 1453 e 1789, trouxe consigo uma grande crise da consciência europeia, o que viera a resultar, em todas as áreas do conhecimento humano, o Renascimento.

Como não poderia deixar de ser, o direito sofreu influências diretas deste novo modo de pensar, sendo que os privilégios medievais vieram a ser superados e os direitos humanos começaram a ser localizados acima do poder ou de qualquer estrato social.

Indispensável para este processo foram as Declarações Inglesas deste período, cujas quais eram verdadeiros textos legais, vindo a limitar o poder dos governantes e, consequentemente, garantir mais direitos à população. Ainda, formaram, definitivamente, o embrião da democracia, essencial para a construção e efetivação dos direitos humanos. Segundo os dizeres de Vladmir Oliveira da Silveira:

Uma das novidades mais importantes das declarações inglesas é a ampliação da titularidade dos direitos, consagrados agora aos homens livres e não mais apenas à nobreza, como na Idade Média. Assim emergem na cena política os primeiros vestígios de democracia, de poder representativo e de garantias institucionais, no momento que o poder real e todos os demais poderes se submetem à lei emanada pelo Parlamento.

As declarações insulares também se destacam por algumas características peculiares, em grande medida relacionadas à origem e estrutura do seu direito. Elas foram concebidas como textos legais – isto é, normas jurídico- positivas que podiam ser exigidas pelos cidadãos diante dos tribunais – e não como meras declarações em sentido estrito.128

O primeiro dos documentos fora a Petição de Direitos (Petition of Right), de 1628, imposta pelo Parlamento, requerendo, de maneira expressa, o reconhecimento de direitos e liberdades para os súditos do Rei.

Em 1688, então, prolatou-se o documento de maior importância para o período, sendo ele a Declaração de Direitos (Bill of Rights). Esta Declaração definiu e fortaleceu as atribuições legislativas do Parlamento, além de proclamar a liberdade de escolha

de seus membros. Ainda, consagrou algumas garantias individuais ao povo e "a partir do Bill of Rights britânico, a ideia de um governo representativo, ainda que não a todo povo, mas pelo menos de suas camadas superiores, começa a firmar-se como uma garantia institucional indispensável das liberdades civis"129.

Além de tais documentos, ainda houve outros instrumentos legais ingleses que contribuíram para as limitações dos poderes soberanos e para a evolução dos direitos humanos no âmbito inglês, sendo eles: Act of Settlement (1707) e Habeas Corpus Amendment Act (1769).

Passando-se, neste momento, às declarações norte-americanas, datadas do século XVIII – mais especificamente dos anos de 1776, 1787 e 1791 –, precisa-se que fora neste período histórico que se deu, segundo o entendimento majoritário da doutrina, a real delineação do conceito moderno de direitos humanos. Também se consolidaram, de melhor maneira – e sem os vícios dos documentos europeus –, a democracia essencial para a efetivação de tais direitos, como bem explica tal passagem:

Pode-se considerar as declarações anglo-americanas como as primeiras formulações modernas dos direitos humanos, evidenciando um significativo avanço teórico na concretização do Estado democrático. [...] Inspirados nas declarações inglesas, esses documentos do Novo Mundo souberam, no entanto, evitar antigos problemas europeus – um deles o que envolvia a liberdade religiosa, expressão concreta do livre-arbítrio individual e uma das liberdades mais importantes, ao lado da igualdade e da tolerância.

Em síntese, nas declarações norte-americanas se expressa o modelo liberal no sentido moderno, influenciado pelo jusnaturalismo racionalista, o qual pressupõe a afirmação da autonomia individual e dos direitos naturais, bem como limites ao poder político do Estado – o que se justifica pela teoria** contratualista do pacto entre governantes e governados.130

O primeiro grande documento norte-americano, de 1776, fora, a Declaração de Direitos do Bom Povo da Virgínia, cujo qual, de fato, em seu artigo primeiro131,

constitui o registro do nascimento dos direitos humanos, como tal hoje se concebe, na histórica da humanidade, reconhecendo, teoricamente, a condição de igualdade entre os seres humanos.

129COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos, p.37.

130SILVEIRA, Vladmir Oliveira da; ROCASOLANO, Maria Mendez. Direitos humanos..., p.135-136. 131Segundo os preceitos do art. I da referida Declaração: "Todos os homens nascem igualmente

livres e independentes, têm direitos certos, essenciais e naturais dos quais não podem, por nenhum contrato, privar nem despojar sua posterioridade: tais são os direitos de gozar a vida e a liberdade com os meios de adquirir e possuir propriedades, de procurar obter felicidade e segurança".

Alguns anos mais tarde, em 1787, na Filadélfia, há a promulgação da Constituição Americana que, na verdade, não continha uma declaração de direitos. Só após uma votação, em 1789, pelos estados norte-americanos é que foi incorporada, explicitamente, em 1791, uma declaração de direitos, formulada por James Madison, trazendo as primeiras dez emendas à Constituição, vindo a formar, então, o Bill of Rights norte-americano.

Nesta mesma época, do outro lado do Atlântico, emergiram, na França, diversas declarações que vieram a tratar sobre os direitos humanos. Atina-se ao fato de que tais declarações foram resultado de um processo revolucionário que lá estava a ocorrer, entre os anos de 1789 e 1799: a revolução burguesa, a Primeira República (Ditadura Jacobina), o Diretório e, em 1799, o golpe de Estado de Napoleão.

De tal forma, cabe apontar como o primeiro documento relevante aos direitos humanos, resultante dessa época, a Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão. A Declaração fora resultado de toda a referida conjuntura, como bem sintetiza a seguinte passagem:

Na primeira etapa, o Terceiro Estado – representado por grande parte da sociedade, inclusiva a burguesia, sendo o Primeiro Estado a nobreza e o Segundo Estado o clero – declarou-se em Assembléia Nacional Constituinte e debateu sobre a oportunidade de elaborar uma declaração de direitos ou uma Constituição. A Assembleia decidiu elaborar o documento, daí se originando a célebre Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, que, a exemplo da Declaração da Virgínia, destacou-se pela solenidade e pela retórica em seus 17 artigos e preâmbulo [...].132

Como referido acima, a Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, promulgada em solos franceses, veio a sofrer influências do que fora emanado nos Bill of Rights norte-americanos, servindo estes de modelo para tal Declaração. Além disso, o documento francês guarda peculiaridades no que se refere ao direito humano de liberdade. Para melhores entendimentos, transcreve-se:

Os Bills of Rights americanos serviram de modelo para a Declaração francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão. A Declaração francesa – promulgada no dia 26 de agosto de 1789 e incluída como preâmbulo na Constituição de 1791 – baseia-se também na convicção de que a liberdade é uma qualidade

pré-política do homem, uma liberdade que é inerente à natureza humana e inalienável dela. Também na concepção francesa, os direitos de liberdade têm, ao que parece, a função negativa de direitos de defesa contra o próprio Estado.133

Correlacionada, ainda, às Declarações norte-americanas, afirma-se que a referida Declaração francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão traz à tona, novamente, em seu artigo primeiro134, a igualdade entre os homens.

Advindo dos preceitos de tal Declaração francesa, surge o entendimento que o Estado deve, primordialmente, respeitar e garantir os direitos humanos. De maneira mais concreta, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão é convertida, em 1791, no preâmbulo da Constituição francesa, tornando ainda mais intensas as obrigações estatais frente aos direitos humanos.

Como se pode perceber, imperavam, nas Declarações até aqui estudadas, as garantias de liberdades individuais dos seres humanos. Ou seja, haviam as chamadas liberdades públicas, requerendo uma posição negativa do Estado, onde o indivíduo desfruta de tais direitos sem a necessidade de uma ação estatal.

Tais direitos, até então, focavam o âmbito político e civil do indivíduo e, por isso mesmo, são classificados, didaticamente, como direitos de primeira geração135.

Acontece que, já na referida Constituição francesa de 1791, tal situação é alargada, quando outros direitos humanos, de cunho social, econômico e cultural, são inseridos em seu âmbito. Tais direitos acabaram por serem classificados como direitos de segunda geração e, desta forma,

a declaração de direitos da Constituição de 1791 destaca-se por seu pioneirismo na identificação dos reclames sociais, abrindo porta – pode-se dizer – para a segunda geração de direitos humanos, muito embora os direitos civis e políticos continuassem a preponderar.136

133MALUSCHKE, Günther. Desenvolvimento histórico dos direitos humanos. Themis: Revista da

ESMEC, Fortaleza, v.2, n.1, p.88, 1998.

134De acordo com os termos do artigo I da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão: "Os homens

nascem e permanecem livres e iguais em direitos".

135Adota-se, neste estudo, o termo "gerações" para designar as diversas etapas de consolidação

dos direitos humanos. Para tanto, concorda e segue-se o entendimento de Vladmir Oliveira da Silveira.

Por fim, em solos franceses, desenvolveram-se, ainda, duas outras declarações. A primeira delas, em 1793, significou uma declaração mais elaborada que a de 1789, contando com 35 artigos; e a segunda, de 1795, prevendo os direitos sociais, a soberania popular e a supressão do direito de resistência à opressão.

O que se pode perceber, neste momento histórico, tanto no contexto norte- americano, como no contexto europeu, é que a democracia alterou-se de sentindo, vindo a privilegiar determinadas classes sociais. Mesmo que dessa forma, esse regime demonstrava-se, ainda, o mais plausível para o desenvolvimento dos direitos humanos e veio, numa época de reivindicações e revoltas, a reinventar-se para tornar possível sua manutenção e a abertura e desenvolvimento da gama de direitos humanos que a sociedade, no momento histórico, reivindicava. Nas palavras de Fábio Konder Comparato:

Em sentindo contrário, a democracia moderna, reinventada quase ao mesmo tempo na América do Norte e na França, foi a fórmula política encontrada pela burguesia para extinguir os antigos privilégios dos dois principais estamentos do ancien regime – o clero e a nobreza – e tornar o governo responsável perante a classe burguesa. O espírito original da democracia moderna não foi, portanto, a defesa do povo pobre contra a minoria rica, mas sim a defesa dos proprietários ricos contra um regime de privilégios estamentais e de governo irresponsável.

De qualquer modo, esse feito notável de geração dos primeiros direitos humanos e de reinstituição da legitimidade democrática foi obra de duas "revoluções", ocorridas no espaço de um lustro, em dois continentes.137

Conclusivamente, pode-se dizer que, ao final deste momento histórico, qual seja, a Idade Moderna, constatou-se, a partir das Constituições norte-americana e francesa, um movimento crescente de constitucionalização dos direitos humanos, quando então deixam o seu aspecto universal e tornam-se direitos fundamentais138,

subjetivados de acordo com as normas estatais, além dos interesses e das reivindicações da sociedade em que serão aplicados. Segundo os ensinamentos de Vladmir Oliveira da Silveira:

137COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos, p.39-40.

138Consideram-se como direitos fundamentais os direitos humanos que, uma vez internalizados por

intermédio das constituições estatais, ganham nova nomenclatura – de direitos humanos, passam a ser fundamentais – e novos contornos para sua efetivação, no interior de um Estado.

A história dos direitos fundamentais se liga de forma inequívoca ao surgimento do constitucionalismo no final do século XVIII – o qual herdou da Idade Média a ideia de contenção do poder do Estado em favor do cidadão enquanto construção social e política resultante de lutas sociais.

Após a Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão iniciou-se um processo de concretização ou de positivação constitucional de direitos. Com origem nos direitos naturais, os direitos humanos foram perdendo a característica universal e genérica, passando a ser positivados como direitos subjetivos estatais – e particularizados, portanto, sob a ótica de cada Estado.139

Sintetizando o estudo da Idade Moderna, pode-se dizer que foi nela que os direitos de primeira geração, quais sejam, os direitos civis e políticos, tornaram-se uma realidade aos povos ocidentais, além de terem surgido as primeiras Declarações de direitos humanos, considerando conceitos que até hoje são aplicados.