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3.1 BELEZA E FEIURA

3.1.3 O ser feio: o processo de formação da feiura pelas emoções

Dezembro de 1939. A revista Anuário das Senhoras lançava mais uma de suas edições anuais. Seu quinto volume, como nos anteriores, saiu repleto de orientações sobre moda, culinária, cuidados infantis e, principalmente, para a beleza feminina. Foi sobre esta última temática, e mais precisamente na trigésima terceira página da revista, que a publicidade das pílulas de rejuvenescimento W5 trouxe a seguinte imagem:

160 DELPHY, Christine. Patriarcado (teorias do). In: HIRATA, Helena; Et. Al, (orgs.). Dicionário crítico do feminismo. São Paulo: Editora UNESP, 2009, P. 178.

161 BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Rio de Janeiro: BestBolso, 5° ed., 2017, p. 41-42.

Figura 9 - Figura 9: comparação da beleza feminina na publicidade das drágeas W5. Fonte: Revista Anuário das Senhoras, Rio de Janeiro: S.A. O Malho, ano VI, 1939, p. 33. (Biblioteca Nacional)

O anúncio que tinha por título “A belleza feminina”, aparentemente fazia apenas uma comparação entre belezas femininas de culturas distintas, fundamentando-se numa dualidade de imagens que remetia às representações do estereótipo africano e europeu. Colocou-se, portanto, a aparência ideal de mulher, europeizada, em contraste com o ideal de beleza feminina africana, salientando a primeira comoo que é considerado bello entre os indígenas da África”

e a segunda como uma beleza“nos paizes civilisados [...] cuja concepção é immutavel; ninguém lhe restringe a significação”162.

Nada mais relativo neste mundo do que a belleza da mulher. O que constitue encanto para uns, é detestável para outros, o que este acha lindo, é considerado feio por aquelle. Dá-se esse phenonemo em toda parte, entre povos de todas as castas.

Vejamos, por exemplo, o que é considerado bello entre os indígenas da Africa. De si, já de feições que nos brancos consideramos grosseiras, os pretos d'aquella região exageram com artificio ainda mais e brutalmente os traços duros com que a natureza

162 A BELLEZA... Anuário das Senhoras, Rio de Janeiro: Sociedade anônima “O malho”, ano VI, 1939, p. 33.

lhes dotou. A mulher preta de certas tribus, para attender o gosto de seus patricios, para tornar-se linda aos seus olhos, e forçada a imprimir a mais monstruosa saliência nos seus lábios. É um exotico que mete medo e, entre nós, prestar-se-hia ao ridículo;

mas... é uma belleza na Africa! Nos paizes civilisados, entretanto, há um bello cuja concepção é immutavel; ninguém lhe restringe a significação: — e a cutis da mulher.

Em toda parte, são, com effeito, apreciadas como belleza do mais alto gráu, a finura e o leve colorido da pelle feminina. Uma pelle boa, sem poros abertos, é objecto de inveja até entre as próprias mulheres. Pois bem, esse apreciado dom do coração terão, hoje, todas as senhoras que o desejarem. Com as drageas W-5, usadas por via interna e que tèm o poder de fortalecer a vida da epiderme, esta fica lisa, livre de sulcos ou rugas, tornando-se, enfim, rejuvenescida não só no rosto, mas em toda a superfície do corpo.163

É evidente a superficialidade da análise num contexto marcado pela discussão em torno da superioridade étnica, na qual todo o continente africano é emblematizado por um único tipo, o que é uma demonstração de plena desqualificação do outro. Mas, nota-se que para efeito do consumo, alguns trechos que acompanharam a imagem buscavam reforçar uma noção de incivilidade e de “beleza específica” ao contexto da mulher africana que beira a feiura. De outro modo, a sensação transmitida pela imagem e texto referente ao foco de beleza da segunda mulher remete a um respaldo de civilidade e universalidade. Mais que um detalhe, tornou-se uma obrigação de cuidado. Mas afinal, como o conceito de civilização pode ser incorporado ao estudo das noções de feiura? De que forma essa relativização de belezas atinge o aspecto das emoções? E, como na estrutura do “processo civilizador” pode-se fomentar na sociedade moderna uma variação das emoções e dos afetos?

Para responder a estas perguntas é preciso reforçar que neste ponto da pesquisa utilizou-se especialmente as obras O Processo Civilizador e A sociedade de corte, nas quais são observadas as mudanças na história dos costumes a partir das regras sociais e da percepção dos indivíduos sobre elas, transformando os comportamentos e emoções. A partir dele é possível entender o modo como os fatores emocionais e externos influenciam em determinadas ações do sujeito e o afetam. Nesse sentido, as considerações de Norbert Elias oferecem mais uma possibilidade de análise para esse estudo: a visão dos afetos por meio da violência, ou seja, a afetação do sujeito ou conjunto social pela imposição física ou moral.

Dito isto, pode-se compreender as obras de Elias numa definição teórica mais ampla.

Segundo Thomas Scheff, o termo “processo civilizador” trabalhado por Elias remete a uma concepção técnica que “não pretende conter um valor: se refere ao processo de formação das sociedades modernas, sem julgar tal processo como positivo ou negativo”.164 Parecendo

163 A BELLEZA... Anuário das Senhoras, Rio de Janeiro: Sociedade anônima “O malho”, ano VI, 1939, p. 33.

164 SCHEFF, Thomas. In: KOURY, Mauro Guilherme Pinheiro; BARBOSA, Raoni Borges (orgs. e trad.). A vergonha no Self e na sociedade: a sociologia e a antropologia das emoções de Thomas Scheff. Recife: Bagaço, 2016, p. 113.

problemático caracterizar o termo como um conceito, Scheff elenca três conceitos principais que foram possíveis de se destacar nas obras de Elias: “1. psicologização e avanço da identificação mútua; [...]; 3. avanço do limiar da vergonha e do embaraço; um quarto é o aumento do autocontrole”.165 Uma definição desse primeiro conceito pode ser entendida como a formação de uma consciência individual a partir da identificação com o todo, compilada por Schieff como “interdependência”, por dizer respeito a uma relação “Eu-nós”, como pode-se observar abaixo:

O conceito técnico de interdependência está também fortemente relacionado ao aumento da capacidade de antecipação da modernização, aumento da psicologização e identificação mútua. Psicologização é um movimento para fora da natureza engolfada (dependente) dos relacionamentos em uma sociedade tradicional. Está profundamente correlacionado ao desenvolvimento do individualismo das sociedades modernas urbanas e industriais. [...] Finalmente, interdependência também abarca a ideia de identificação mútua. Para formar a balança Nós, para integrar o Eu-Próprio e Nós-Eu-Próprio, se faz necessário não apenas se identificar com os outros, mas ser capaz de assumir seus papeis. Assim como o Eu-Próprio tem parcamente em conta a identidade e o ponto de vista do outro, e o Nós-Próprio tem de forma exagerada, interdependência balanceia ambos ao tomar de conta dos igualitariamente.166

Tanto no Processo Civilizador quanto na Sociedade de Corte, as mudanças estudadas por Norbert Elias giram em torno desses conceitos principais através do estudo e da introdução das normas de etiqueta e de comportamento que provocaram uma relação indivíduo-sociedade de adequação: formou-se uma mentalidade do indivíduo ao entrar em contato com as regras estabelecidas socialmente por meio da imposição dos limites da vergonha, construindo, dessa forma, um autocontrole de si por medo do embaraço da transgressão, ao mesmo tempo em que se mantinha uma vigilância do comportamento do outro. Assim, a sociedade moderna se formou a partir da assimilação do autocontrole pela vergonha e embaraço individual e coletivo, num

“aumento do esforço de escondê-la”.167

Utilizando-se desses conceitos para observação da publicidade anteriormente mostrada, pode-se detectar um elo: os elementos “modernos” por ela assimilados se propõem em detrimento do que se caracterizava como uma beleza “atrasada” ou “incivilizada” de uma outra cultura. Desse modo, a caracterização da beleza africana, posta em tom depreciativo e conotação de feiura sugere um autocontrole da aparência feminina por vergonha ou medo de assemelhar-se a esse outro. Para Scheff:

165 KOURY, Mauro Guilherme Pinheiro; BARBOSA, Raoni Borges (orgs. e trad.). A vergonha no Self e na sociedade: a sociologia e a antropologia das emoções de Thomas Scheff. Recife: Bagaço, 2016, p. 115.

166 Ibidem, p. 117-119.

167 KOURY, Mauro Guilherme Pinheiro; BARBOSA, Raoni Borges. op. cit., p. 123.

Os sinais de vergonha servem não somente para nos ajudar a manter a distância correta em relação aos outros, mas também para estabelecer um direcionamento moral com relação ao nosso comportamento. O que é chamado de “consciência” é formado não apenas pela cognição, mas também pelas emoções. Sentimentos ou antecipações de vergonha ao considerar uma ação servem como um giroscópio moral automático, algo independentemente de reflexões morais sobre as consequências da ação.168

Ou seja, além do sentimento de vergonha gerar uma sensação de contenção e permanência no espaço socialmente designado, ela também serve para dizer o que é certo e errado, bem como para prever as consequências de cada ação a ser tomada. Nesse sentido, fazer manutenção da aparência considerada bonita se tornou mais cômodo, mais assertiva e de maior previsibilidade dos efeitos causados ao sair desses padrões, nutrindo-se como uma espécie de habitus.

Ao examinar instancia por instancia os conselhos de como portar-se a mesa, as funções corporais, a sexualidade, a raiva, ele sugeriu que um aspecto central da modernidade envolvia uma verdadeira explosão de vergonha. Elias argumenta que o avanço do limiar da vergonha quando da dissolução das comunidades morais, e o recuo do reconhecimento da vergonha, teve consequências poderosas para os níveis de consciências e autocontrole. [...] Compreender a dinâmica da vergonha não reconhecida, deste modo, conduzirá exatamente a modelos de repressão, e a métodos precisos e confiáveis de compreender o comportamento que é inconscientemente motivado e compulsivo.169

Evitar passar vergonha e os temas mais embaraçosos passou a se construir também inconscientemente, em que se procura combater o constrangimento sem perceber, alimentando uma repetição contínua. Tudo isso porque “muito embora haja alguma variação pessoal e cultural nos detonantes e as manifestações da vergonha, esta parece apesentar um sinal universal, entre os mamíferos, de ameaça ao vínculo social, e estar associada, como emoção superficial ou intensa, com a possibilidade de rejeição”.170 Além disso, “como emoção instintiva de perigo, sinais de medo à vida e à integridade física, a vergonha também sinaliza uma potencial ameaça à sobrevivência, especialmente para uma criança”.171

A partir disso, podem compreender que a vergonha é uma emoção essencial dos seres humanos e da vida em sociedade, construída desde o berço. Sua função de alerta movimenta o corpo à tomada de ações que evitem o constrangimento social. Nesse sentido, para associá-la aos estudos de feiura, o que uma determinada cultura define como feio, impróprio, ou um

168 KOURY, Mauro Guilherme Pinheiro; BARBOSA, Raoni Borges (orgs. e trad.). A vergonha no Self e na sociedade: a sociologia e a antropologia das emoções de Thomas Scheff. Recife: Bagaço, 2016, p. 124-125.

169 Ibidem, p. 125-126.

170 KOURY, Mauro Guilherme Pinheiro; BARBOSA, Raoni Borges. op. cit., p. 49.

171 KOURY, Mauro Guilherme Pinheiro; BARBOSA, Raoni Borges. op. cit., p. 81.

sinônimo de vergonha que estimula a culpa individual, a reação humana como um sujeito de sociedade tende a desviar-se desse caminho, procurando sempre os parâmetros de beleza. É em vista disso que se pode pensar a vergonha, bem como outras emoções, como fomentadoras de um senso de feiura ou um senso de fuga.

Os estudos de Norbert Elias sobre a sociedade de corte exemplificam bem esse sentido das emoções como construtoras dos princípios e sensibilidade do ser por meio do processo de adaptação do comportamento às normas de etiqueta:

A partir de tais contextos podemos apreender o tipo específico de racionalidade produzido no círculo da sociedade de corte. Como todo tipo de racionalidade, este também se forma paralelamente a determinadas coerções no sentido do autocontrole das emoções. Uma figuração social em cujo seio tem lugar uma frequente transformação das coerções externas em coerções internas constitui uma condição para produzir formas de comportamento cujos traços distintivos são indicados pelo conceito de racionalidade. Os conceitos complementares de "racionalidade" e

"irracionalidade" referem-se, então, à parcela que diz respeito a emoções efêmeras e aos modelos conceituais duradouros da realidade observável nos comportamentos individuais. Quanto maior o peso desses últimos no equilíbrio instável entre as emoções efêmeras e as orientadas pela realidade objetiva, mais "racional" é o comportamento [...]. Contudo, o tipo de modelos conceituais voltados para a realidade que têm influência sobre o comportamento humano difere de acordo com a estrutura da própria realidade social.172

A partir da fala do autor, percebe-se o processo de evolução da racionalidade dentro da sociedade de corte simultaneamente à regulamentação e intimidação dos comportamentos que, nesse contexto, conciliava o planejamento estratégico da competição pelo poder. A formação dessa racionalidade dos indivíduos seria responsável por tecer e distinguir os tipos de comportamentos designados para cada setor da sociedade. Assim, para cada realidade social seria designado um tipo de comportamento “racional”, ou seja, um comportamento adequado e esperado de sua posição. Esses comportamentos racionais seriam condicionados pelo processo coercitivo interno das coerções externas, ou melhor, baseando em cada estrutura da realidade social, os sujeitos incorporariam as regras instauradas pelos modelos designados. A condição para alcançar o comportamento racional seria, portanto, a supressão e o controle das reações emocionais, que acabaria por controlar o comportamento perante situações de tensão, garantindo as oportunidades de ascensão de status e poder.

Analogamente, pode-se compreender que a construção das ideias e dos sentidos dos indivíduos sobre o mundo ao seu redor se dá num processo de internalização das regras que lhes são transmitidas. Caracterizando-se muito menos pelo controle do Estado que por um “bom

172 ELIAS, Norbert. A sociedade de corte: investigação sobre a sociologia da realeza e da aristocracia de corte.

Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 2001, p.109.

senso” social, essas normas estabelecidas acabam por moldar a postura de enfrentamento do indivíduo perante determinados aspectos, esperando que se siga o conjunto das normas; do contrário, o não cumprimento acaba por gerar sentimentos de constrangimento, vergonha e, no que condiz a esse estudo, a repugnância. É nesse sentido que se observa o controle do comportamento por meio das emoções:

Não menos característico de um processo civilizador que a “racionalização” é a peculiar modelação da economia das pulsões que conhecemos pelos nomes de

“vergonha” e “repugnância” ou “embaraço”. O forte arranco da racionalização e o não menos (durante algum tempo) forte avanço do patamar da vergonha e repugnância que se tornou, em termos gerais, cada vez mais perceptível na constituição do homem ocidental a partir do século XVI, foram dois lados de uma mesma transformação na estrutura da personalidade social. O sentimento de vergonha é uma exaltação específica, uma espécie de ansiedade que automaticamente se reproduz na pessoa em certas ocasiões, por força do hábito. Considerado superficialmente, é um medo de degradação social ou, em termos mais gerais, de gestos de superioridade de outras pessoas. Mas é uma forma de desagrado ou medo que surge caracteristicamente nas ocasiões em que a pessoa que receia cair em uma situação de inferioridade não pode evitar esse perigo nem por meios físicos diretos nem por qualquer forma de ataque.

[...] Tal como essas restrições, as tensões e medos desse tipo emergem mais claramente a cada arranco do processo civilizador e, finalmente, predominam sobre outras tensões e medos — principalmente, sobre o medo físico a outras pessoas.

Dominam mais na medida em que são pacificadas áreas maiores e aumenta a importância, na modelação da pessoa, das limitações mais comuns que sobem a primeiro plano na sociedade quando os representantes do monopólio da força física passam a exercer regularmente seu controle como se estivessem nos bastidores — na medida, numa palavra, em que progride a civilização da conduta.173

Verifica-se, portanto, que as emoções são capazes de delinear certos comportamentos.

As regras de um “bom senso” social provocam a exclusão de tudo aquilo que se opõe a ele, gerando os sentimentos de aversão. Desse modo, a internalização da repugnância e do nojo a determinadas condutas forjam o olhar do indivíduo, que baseado em um padrão de beleza e em um ideal de perfeição, vê aquilo que não a contém como feio. O mesmo ocorre com relação a um “si mesmo”: Não se enquadrar em certos tipos de beleza desperta sentimentos e emoções de aversão e vergonha, já que:

A vergonha surge quando uma pessoa sente que não conseguiu viver as normas sociais, uma vez que esses padrões de comportamento são, em sua maior parte, realizados em comum com os outros padrões de comportamento significativos na vida de alguém.174

173 ELIAS, Norbert. O Processo Civilizador: formação do Estado e Civilização (Vol. 2). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 1993, p. 278-279.

174 KOURY, Mauro Guilherme Pinheiro; BARBOSA, Raoni Borges (orgs. e trad.). A vergonha no Self e na sociedade: a sociologia e a antropologia das emoções de Thomas Scheff. Recife: Bagaço, 2016, p. 96.

Assim, essas sensações, associadas frequentemente aos sentimentos de raiva e culpa podem levar ao desejo de reparação à transgressão que os fomentou:

Além de ser um classificador para muitos cognatos sociais e variantes, a vergonha combina também com outras emoções em formas de afetações. O ressentimento e a culpa podem ser os dois exemplos mais importantes. O ressentimento parece conter um efeito de vergonha e raiva, com a raiva apontando para fora. [...] Com certeza, a culpa tem uma função social vital, leva alguém a reparar uma transgressão. Mas ao mesmo tempo, muitas vezes, serve para mascarar a vergonha, já que se concentra no comportamento externo: uma ofensa ou transgressão de alguém e as reparações a se fazer.175

Para ir mais além, o desejo de reparação pode estar não somente ligado a outras pessoas mas também a um “si mesmo”, como pode acontecer ao olhar uma estrela de cinema na tv ou mesmo uma dica de artigo e de publicidade de determinados produtos para pele, e desejar reparar em si mesmo uma linha de expressão ou os famosos “pés de galinha”. É nesse sentido, tomando a feiura como uma forma de afetação do sujeito feminino, que se pode avaliar a seguir exemplos de possíveis emoções e motivadores de reparação no Anuário. E como isso tudo se coaduna num processo de dominação masculina.