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CAPÍTULO 3. Animais, Plantas ou Animais-Planta? Os estudos de Abraham Trembley

3.1. Abraham Trembley (1710-1784)

3.1.7. Os pólipos: dos fossos à fama – considerações gerais

Muito antes da divulgação de sua obra, Trembley já havia iniciado uma longa troca de cartas com Réaumur. Desde o final de 1740, quando Trembley identificou a incomum e desconhecida capacidade regenerativa desses organismos, ele solicitou auxílio ao renomado naturalista francês.

Não obstante, longe de exaltar as qualidades do jovem naturalista, é digno de nota mencionar que, uma das suas contribuições de maior impacto para a história natural da época foi o desenvolvimento de um eficiente sistema de envio de organismos vivos para longas distâncias.

Após uma tentativa frustrada de enviar os pólipos de Haia, na Holanda, até Paris, em fevereiro de 1741, Trembley empenhou-se em criar formas mais viáveis para a submissão dos espécimes. Na segunda vez, ele obteve êxito e ao confirmar a propriedade inusitada da regeneração dos pólipos, Réaumur julgou digno de apresentar esse fenômeno à Academia de Ciências de Paris, após permissão de Trembley (VARTANIAN, 1950, p. 262).

Tão logo as primeiras apresentações foram conduzidas na Academia de Paris, bem como nos salões dos nobres eruditos, as notícias sobre a “maravilhosa habilidade” de regeneração dos pólipos se espalharam. Nos anos seguintes à “descoberta” de Trembley, estudiosos e eruditos,

93 dedicados ou não, aos estudos da história natural desejaram conhecer de perto essas criaturas (PRESTES; MARTINS, 2014, p. 362).

Assim, ambos, os pólipos e Trembley se tornaram alvo de fama, mas também de crítica, controvérsias e, certamente, ceticismo. Afinal, um fenômeno de tamanha raridade não seria facilmente aceito na sociedade da época. A alegação de um organismo capaz de se regenerar tantas vezes quanto necessário; que possuía sete, oito cabeças, todas aptas a se alimentar, definitivamente suscitava pensamentos que beiravam mais a ficção do que a realidade (RATCLIFF, 2012, p. 428).

Para tentar convencer e persuadir os que queriam conhecer por si mesmo as habilidades de regeneração dos pólipos, Trembley desenvolveu uma “estratégia de generosidade”. Segundo Ratclif (2004b, p. 556), um dos principais fatores para o sucesso de Trembley foi a sua capacidade de desenvolver meios eficientes para o envio seguro dos pólipos para os grandes centros eruditos da Europa no século XVIII.

Tal “estratégia” consistia no envio de sistemas vivos, os quais eram compostos por três itens: Em garrafas apropriadamente acondicionadas, eram inseridos (1) os pólipos, bem como (2) o ambiente propício, para manutenção da preservação e fornecimento de alimento específico e (3) instruções contendo informações detalhadas, tanto para a conservação do sistema, quanto para a replicação dos experimentos (RATCLIFF, 2004b, p. 565).

Desse modo, ao enviar os espécimes e as instruções para a reprodução experimental, Trembley estava consciente de que a sua atitude permitiria que as “propriedades maravilhosas” dos pólipos poderiam ser acessadas por qualquer pessoa, independentemente do lugar de origem. No entanto, a sua estratégia, aparentemente altruísta, era, do mesmo modo, arriscada.

Antes mesmo da publicação da sua obra, Trembley havia enviado cartas e espécimes, informando das suas descobertas, em 1743, ao então presidente da Royal Society, Sir Martin Folkes (1690-1754). Folkes, então, distribuiu entre os parceiros da sociedade londrina, a fim de que eles replicassem os experimentos.

Contudo, entre esses membros, o naturalista Henri Baker, ao ter acesso as cartas e às informações detalhadas por Trembley, conduziu os seus próprios experimentos e publicou, em novembro de 1743, um diário com seus resultados, intitulado An Attempt towards a Natural History of the Polype (Uma tentativa referente à história natural dos pólipos). Nitidamente, uma tentativa de antecipar os achados de Trembley, configurando-se como um caso clássico de plágio. O que, obviamente não foi bem recebido por Folkes e pelos demais parceiros da Sociedade (LENHOFF; LENHOFF, 1986, p. 6; RATCLIFF, 2012, p. 428).

94 A despeito do incidente, os esforços de Trembley foram internacionalmente reconhecidos e, ainda em novembro de 1743, ele foi condecorado com a Medalha Copley, uma das mais importantes honrarias da ciência na época.

Nós não somos menos sensíveis à sua grande candura, à prontidão e disponibilidade que você tem mostrado, não apenas em transmitir-nos resumos fiéis de seus próprios experimentos, mas também de enviar- nos os próprios Insetos, pelos quais nós temos sido capazes de examinar e ver com nossos próprios olhos a Verdade e os Fatos surpreendentes que você anteriormente identificou e reconheceu (FOLKES, 1743 apud RATCLIF, 2004).

Apesar do conteúdo extenso presente neste capítulo, sem sombra de dúvidas, cobrimos uma parte bastante singela dos estudos de Trembley. De fato, haveria, ainda, muito mais a ser explorado49.

Porém, se almeja nesta tese, aprofundar toda a sua pesquisa. O foco principal foi discutir os elementos que forneceram evidências empíricas e teóricas relativas à construção e apresentação de um novo conceito de perpetuação animal no século XVIII.

Nosso intuito foi desenvolver um estudo histórico detalhado, a fim de apresentar uma narrativa em nosso idioma, bem referenciado, que sirva como suporte contextualizado para abordagens de ensino de conteúdo conceitual sobre modos de reprodução animal. Mas principalmente, que venha a subsidiar o ensino de aspectos de natureza da ciência, amplamente distribuídos ao longo do episódio aqui retratado.

Dos conteúdos conceituais da biologia atual que julgamos importante ensinar na escola básica, o episódio histórico aborda duas modalidades de reprodução assexual animal – reprodução por brotamento e regeneração; Taxonomia – critérios de classificação animal/planta.

Dos elementos de natureza da ciência50 , de maneira geral, pode-se apontar que o trabalho de Trembley permite discutir a natureza e o papel dos experimentos científicos (replicação, variação, controle de variáveis, tamanho amostral, etc.); a relação entre observação e inferência; a observação guiada por teoria; o papel da colaboração entre cientistas; as influências do contexto sociocultural; a fraude e a má conduta em ciência; as motivações pessoais; o papel da criatividade e imaginação; etc.

Além disso, ao se propor uma Sequência Didática orientada por episódios da história da biologia, é fundamental manter o compromisso metodológico de um aprofundamento histórico,

49 No trabalho de Sylvia e Howard Lenhoff (1986, p.14) há uma longa tabela descrevendo as principais contribuições científicas,

encontradas na obra “Memoires” respectivas à cada área ou disciplina. Para citar alguns exemplos das grandes áreas, incluem: Filosofia da ciência, História Natural, Taxonomia, Morfologia, Biologia do desenvolvimento, Biologia comportamental, Ecologia, Fisiologia, etc.

95 a fim de evitar equívocos historiográficos, como a emissão de juízo de valor com base no conhecimento atual; apresentar os estudiosos como heróis, mitificados; tratar a ciência como desconectada do seu contexto sociocultural; supervalorizar a pesquisa empírica em detrimento da teórica, considerar que apenas os estudos experimentais constituem o conhecimento científico.

Por se tratar de uma pesquisa de doutorado, a contribuição deste trabalho, reside na busca pelo equilíbrio, trazendo uma “inovação” que caminhe entre a história da ciência e o ensino de ciências, na tentativa de preencher um nicho de essencial importância, mas tão pouco explorado nos nossos cursos de formação docente – o ensino de como a ciência funciona, ou, em outras palavras, da natureza da ciência.

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PARTE II – A pesquisa empírica