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CAPÍTULO 3. Animais, Plantas ou Animais-Planta? Os estudos de Abraham Trembley

3.1. Abraham Trembley (1710-1784)

3.1.4. Pólipos de água doce: dos aspectos anatômicos e fisiológicos da digestão

Depois de coletar e cultivar as espécies recém encontradas, ainda em maio de 1741, ao observar um indivíduo da segunda espécie, ele suspeitou que pudesse estar testemunhando o processo de alimentação: “Eu não sabia o que pensar estar vendo: não ousei decidir se o pólipo devorava a centopeia ou se a ela se inseria voluntariamente nos intestinos do pólipo para alimentar-se, ou para alojar os seus ovos, ou suas crias” (TREMBLEY, 1744, p.81).

Ao analisar fenômeno pouco tempo depois, devido à transparência do corpo dos pólipos, Trembley percebeu que a centopeia que havia entrado no interior do organismo havia se tornado nada mais do que uma massa matéria amorfa. Ao empreender o mesmo rigor metodológico de suas observações anteriores, ele coletou indivíduos da mesma espécie, isolou em pequenos pratos de vidro, junto com centopeias para servir de alimento. Trembley foi apto a observar detalhadamente o processo de ingestão das centopeias pelos pólipos.

Se restava a Trembley, alguma incógnita com relação à “animalidade” desses organismos, pode-se dizer que esse novo evento a afastou significativamente. No contínuo se seus expedientes, Trembley foi levado a admitir que: “não tinha mais razões para duvidar que os pólipos eram animais vorazes” (TREMBLEY, 1744, p.82).

Contudo, Trembley seguiu investigando todos os aspectos que envolviam o fato recém identificado. Ele isolou quantidades expressivas de ambas as espécies e foi capaz de perceber a

80 forma como os pólipos conduzem às presas para o interior do “estômago”. Observou a maneira pela qual os indivíduos estendem os seus “braços” em direção ao alimento.

Identificou a maneira pela qual os pólipos abriam uma extremidade, na parte interior aos tentáculos, que lhe serve de boca, como era capaz de dilatar o “tubo” que Trembley denominou ser o estômago e como fazia para caberem ali as presas de tamanho significativamente maiores. “Se um pólipo estiver com fome, e se tiver um bom tamanho, pode engolir facilmente uma dúzia de pulgões [...] quando totalmente pleno, pode-se verificar que a sua base estará alargada, devido à quantidade de pulgões ingerido” (TREMBLEY, 1744, p, 95).

Além disso, apesar do tamanho diminuto daquele animal, após vê-lo alimentando-se tantas e tão variadas vezes, pode reconhecer algumas funções anatômicas das espécies observadas (PRESTES; MARTINS, 2014, p. 356).

Nesse momento, Trembley já havia investido longos períodos em suas pesquisas com pólipos, e após certificar-se (ao menos momentaneamente) da natureza animal dos pólipos e perceber a necessidade de alimentação, ele desenvolveu mecanismos de captura e cultivo de animais para servir como fonte de alimento para os pólipos.

Ciente que com a proximidade do inverno, a quantidade de pulgões iria naturalmente reduzir, Trembley iniciou a busca por outros animais que servissem de alimento para seus pólipos.

Descobri, no fundo da água diversos vermes [...]. Assim que os vi, apressei-me em usá-los para alimentar meus pólipos, e assim, substituir os pulgões que já possuía em pequenas quantidades e as centopeias, que tinha encontrado apenas em pequena quantidade e com muito sacrifício. Eu peguei alguns desses vermes e os entreguei aos pólipos, que os comeram (TREMBLEY, 1744, p, 98).

Seguro de que teria como nutrir seus pólipos, Trembley coletou, cultivou e seguiu conduzindo testes com diversos pequenos organismos que encontrava, a fim de prover a viabilidade e manutenção dos seus estudos. Entre os suprimentos fornecidos para seus pólipos, Trembley utilizou larvas de libélulas e de moscas, além de partes diminutas de animais maiores, como lesmas, peixes, partes de carnes bovina e de carneiro (TREMBLEY, 1744, p, 101).

Todavia, o ato de observar a alimentação desses pequenos organismos suscitou em Trembley outras questões referentes ao seu comportamento. Ao refletir sobre o fato de como esses animais agiriam na natureza, Trembley questionou: “Os pólipos saberiam como escolher os lugares mais populosos ou direcionam seus passos para o lado e apenas por sorte? ” (TREMBLEY, 1744, p. 109).

81 Trembley já havia percebido que, de alguma forma, os pólipos tinham alguma propensão a buscar os lados mais iluminados dos vasos de vidro, nos quais eram mantidos em isolamento. Dessa forma, ele também especulou que, talvez, esses animais pudessem “sentir” e localizar as suas presas.

Deve-se ressaltar que com o avanço das suas pesquisas, Trembley também havia se perguntado se esses organismos teriam algum tipo de órgão similar aos olhos de animais mais complexos. Sem negligenciar qualquer parte dos pólipos, ele investigou usando lupas e microscópicos e não observou nada que pudesse ser comparado com olhos (TREMBLEY, 1744, p. 111).

As suas seguidas séries de observações acerca da alimentação dos pólipos, levaram-no a perceber diversos comportamentos, e a partir daí, levantar a seguinte questão: “quando os pólipos estão afixados em algum lugar, eles não têm outro recurso a não ser estender os seus “braços”, e esperar que um animal se depare com ele; ou então, teriam eles a sensação de ver sua presa, e ao vê-la estariam direcionando seus braços para onde elas estão? ” (TREMBLEY, 1744, p. 109).

Devido à anatomia dos muitos braços da terceira espécie identificada por Trembley, ele a elegeu para conduzir um novo experimento a fim de tentar responder a sua pergunta de investigação. Para tal, ele isolou alguns indivíduos e desenvolveu um expediente diferente dos sistemas anteriormente apropriados.

Ele elaborou um procedimento para manter um espécime em suspensão e com corpo posicionado de forma invertida, para baixo na água. Para isso, ele conseguiu enlaçar o organismo a um barbante preso ao topo do recipiente de vidro. Desse modo, o fio servia como substrato para fixação do pólipo (figura 16). Dessa forma, o corpo do pólipo estava imobilizado, mas seus braços eram livres e desenovelados e aptos a capturar as presas (TREMBLEY, 1744, p. 111).

Essa experiência, repetida de forma seriada, forneceu evidências empíricas para que Trembley pudesse compreender que, de alguma maneira, esses pequenos organismos possuíam algum tipo de sensibilidade e atração com relação às presas. No entanto, não foi capaz de avançar além desse ponto.

As observações sobre o processo de captura e ingestão pelos pólipos permitiram Trembley identificar, também, os movimentos de peristaltismo e visualizar como as matérias digeridas por essas criaturas se espalhavam por toda a extensão do “estômago”, bem como para os braços desses animais. “Parecia que cada braço era formado por um tubo, havendo algum tipo de comunicação entre esses braços e o estômago do pólipo” (TREMBLEY, 1744, p. 125).

82 Os tipos de organismos utilizados como fonte de alimento para os pólipos, como pedaços de lesmas e “vermes chatos” facilitaram a visualização do percurso da matéria no interior dos corpos dos pólipos. Trembley observou que a matéria avermelhada existente nos intestinos dos “vermes chatos” era sugada pelo estômago dos pólipos e espalhada por todo o seu corpo.

Figura 16. Ilustração de um pólipo da terceira espécie observada por Trembley (Pelmatohydra oligactis). Na parte superior, um fio de barbante servindo como substrato para o espécime. Os fios mais finos e compridos representam os “braços” do pólipo. As três imagens menores, entrelaçadas aos “braços” representam as presas

capturadas pelo pólipo.

Fonte: Trembley (1744, p 189)

Contudo, até esse momento, as observações de Trembley focaram no âmbito anatômico dos pólipos. De fato, Trembley especulou que a matéria que se distribuía pelas conexões por meio dos “tubos” formados pelo corpo dos pólipos poderia ser sua fonte de nutrição. Entretanto, “De que modo esse suco nutritivo atravessa a pele que serve como barreira desses tubos? Como se espalha para todas as partes? E como isso contribui para a nutrição e crescimento dos pólipos? ” (TREMBLEY, 1744, p. 125).

Nota-se, portanto, que Trembley estava preocupado em compreender, em profundidade, o comportamento fisiológico desses organismos. Afinal, em coro com Réaumur, ele também estava fortemente inclinado a admitir a natureza animal dessas criaturas. Mas, para afastar-se da esfera especulativa, Trembley armou-se do maior número de procedimentos experimentais e observacionais que conseguiu realizar.

83 A fim de investigar o papel dos “sucos nutritivos” para a nutrição dos pólipos48 , Trembley empreendeu séries contínuas de experimentos, com os mais diversos materiais possuindo variadas tonalidades de coloração, de modo que ele pudesse visualizar mais facilmente a distribuição nos pólipos. Por exemplo, alimentou os pólipos com pedaços de uma aranha aquática, que produzia uma coloração avermelhada, utilizou pulgões verdes que geravam uma coloração sensivelmente esverdeada; realizou infusão composta por pedaços de pétalas de flores de cores distintas.

Todos os resultados indicaram que a coloração dos pólipos estava diretamente relacionada com o tipo de alimento obtido. Entretanto, essas observações não forneceram quaisquer pistas sobre o problema levantado por Trembley: “como esse suco colorido se espalha pela pele dos pólipos? Estariam dentro de vasos e se dispersariam por esses vasos para todo o corpo? ” (TREMBLEY, 1744, p. 131).

Porém, Trembley já havia observado com auxílio de lupa e de um “bom microscópio” toda a estrutura morfológica dos pólipos e não havia notado qualquer presença de algo similar a esses vasos.

A pele que envolve o estômago dos pólipos, que forma esse saco aberto em ambas as extremidades, é a própria pele dos pólipos. Todo o animal configura-se em uma única pele, disposta em forma de um tubo ou de uma tripa [...]. Quando se abrem outros animais, lagartas e diferentes tipos de vermes, encontramos diferentes vasos; mas abrindo os Pólipos, encontramos absolutamente apenas um, enquanto os Pólipos [...] todo esse Animal parece formar apenas um vaso (TREMBLEY, 1744, p. 52). Se por um lado, Trembley não identificou qualquer vaso percorrendo corpo dos pólipos, por outro, ele observou diversos grânulos que estavam preenchidos pela matéria colorida cujos pólipos haviam absorvido e que teriam passado através do estômago.

Tal fato, em vez de lançar respostas, gerou mais dúvidas e Trembley questionou se esses grânulos, os quais denominou de glândulas ou vesículas, possuíam algum tipo de sucção, de forma que serviria como meio de absorção dos sucos coloridos (TREMBLEY, 1744, p. 132).

Durante todo o percurso de suas investigações, Trembley sempre esteve respaldado no conhecimento e na literatura disponível à época. O seu contato com célebres acadêmicos da Universidade de Leiden, as constantes trocas de cartas com Réaumur, Lyonnet, Bonnet e beneficiado pelo sistema comum de patronato (RATCLIFF, 2005; BURNETT, 2014), possibilitaram o recebimento, tanto de livros, quanto de materiais e instrumentos.

48Trembley realizou as experiências de coloração utilizando, principalmente, os pólipos da terceira espécie, com

84 Assim, a fim de tentar elucidar a questão da digestão dos pólipos, Trembley buscou suporte teórico na obra de um naturalista que investigou a história natural de organismos marinhos, o livro intitulado Histoire physique de la mer. Ouvrage enrichi de figures dessinées d'après le naturel (História física do mar. Trabalho enriquecido de figuras desenhadas a partir do natural), publicado em 1725 pelo naturalista italiano Luigi Marsigli (1658-1730).

Marsigli alegava que algumas plantas marinhas possuíam glândulas ou vesículas externas capazes de absorver nutrientes, quando em contato com a água do mar ou em soluções de “sucos nutritivos”. Baseado nessa hipótese, Trembley mergulhou alguns pólipos em uma infusão de suco nutritivo. Pois, conforme ele já presumiu, não observou qualquer mudança significativa (TREMBLEY et al., 1744, p. 254; LENHOFF; LENHOFF, 1986).

A busca pela compreensão do processo de absorção de nutrientes dos pólipos o levou a conduzir um dos seus experimentos mais laboriosos: virar um pólipo do avesso. Inspirada em suas diversas observações, a ideia desse experimento foi fruto da hipótese:

Se ou grânulos ou vesículas que estão na superfície exterior da sua pele estiverem mais próximas do suco nutritivo, então elas se preencheriam primeiro; e talvez o pólipo poderia ser nutrido tão completamente quanto os sucos passarem para as vesículas que povoam a parte interna das paredes do estômago [...]. Ao retornar um pólipo, a superfície externa da sua pelo formaria as paredes do estômago (TREMBLEY, 1744, pp. 254-255).

A partir dessa conjectura, Trembley decidiu tentar retornar um pólipo do avesso. “Assim como se faz com uma luva, ou os dedos de uma luva” (LENHOFF; LENHOFF, 1986, p. 154). Contudo, dada a precisão do procedimento, suas primeiras tentativas foram frustradas. Em 1742, porém, ao elaborar um expediente mais simples, Trembley conseguiu realizar o procedimento e assim o descreveu:

Eu comecei fornecendo um verme ao pólipo [...] quando o estômago do pólipo estava bastante inchado, eu iniciei o procedimento. Eu posicionei um pólipo com o estômago bem cheio em uma gota de água na palma da minha mão esquerda. Então, usando pequeno fio de pincel, eu pressionei a parte posterior do pólipo. Dessa forma eu empurrei o verme que estava dentro do estômago contra a boca do pólipo, na qual foi forçada a abrir. Ao pressionar um pouco mais com meu fio de pincel, eu fiz com que o verme emergisse parcialmente da sua boca e ao se estender, eu esvaziei a parte posterior do estômago. A saída do verme através da boca do pólipo faz com que ela se amplie consideravelmente. Com o pólipo nessa condição, eu o guiei para fora da gota de água cuidadosamente, sem fazer com que ele se desarranjasse, forçando o pólipo a se contrair e abrindo a sua boca ainda mais, lembrando que o verme ainda está ocupando o espaço e mantendo sua boca aberta. A seguir, utilizando uma cerda de javali, não demasiadamente pontiaguda, eu segui a pressionar a parte posterior do pólipo, fazendo com que a certa inserisse no estômago, até que ele estivesse completamente do

85 avesso. Ao final, é possível observar que o pólipo encontra-se envelopado pela cerda, de modo que a sua parte interior está totalmente exposta” (TREMBLEY et al., 1744, p. 256–257; LENHOFF; LENHOFF, 1986, p. 156).

Após esse complexo (e quase inacreditável) procedimento, a fim de evitar que o seu pólipo voltasse à posição natural ele enlaçou parcialmente seus braços, sua parte posterior, e à fim de prevenir que tocasse nas paredes do recipiente ele o isolou para observações (figura 17).

Trembley, então passou a observar todos os movimentos do pólipo do avesso. Com relação a sua hipótese sobre o problema da nutrição, descreveu ter observado o pólipo ter capturado e ingerido um verme, dois dias após a operação. “De fato, eles se alimentavam tanto, ou mais, do que aqueles que não haviam sido invertidos” (LENHOFF; LENHOFF, 1986, p. 160).

Figura 17. Ilustração de um pólipo em isolamento após ter sido amarrado e isolado em um recipiente de vidro. As linhas representadas pelas letras (a) e (c) mostram o fio de barbante no qual o pólipo foi amarrado. No centro

da imagem, (a) e (b), ilustram a parte axial e basal do pólipo, respectivamente. (f) e (h) a superfície da água na borda do recipiente de vidro

Fonte: Trembley (1744, p. 385)

Além disso, Trembley desejou que outros certificassem o seu procedimento experimental, “a despeito de sua estranheza” (TREMBLEY et al., 1744, p. 264). Para isso, solicitou que outros naturalistas tentassem replicar a inversão dos pólipos. Além de seu amigo, o holandês Pierre Lyonet, o naturalista Jean-Nicolas-Sébastien Allamand (1713-1787), também naturalista holandês e Bernhard Siegfried Albinus (1697-1770), um anatomista alemão que vivia na Holanda. Todos eles puderam testemunhar, repetir e certificar-se da veracidade da

86 inversão do pólipo conduzida por Trembley (TREMBLEY et al., 1744, p. 265; DAWSON, 1987, p. 124).

Ao que tudo parece indicar, Trembley foi um naturalista demasiado curioso e possuidor de extrema acurácia e perspicácia experimental. Ele desejou conhecer a fundo a natureza desses organismos. As últimas páginas da sua obra original descrevem a sua ânsia em expor, de forma retoricamente e detalhadamente narrada, as minúcias desse intrigante animal.

Não satisfeito em ter cortado os pólipos das mais distintas formas e invertido outros, eu quis explorar se esses mesmos experimentos seriam bem-sucedidos no mesmo pólipo; eu cortei um pólipo transversalmente em dois, e quando ambas as metades se tornaram dois pólipos inteiros, eu os inverti. Eu pude vê-los se alimentar e se multiplicar normalmente. Em outro experimento, eu seccionei dois pólipos invertidos, que foram originados de duas metades de um único pólipo [...] (TREMBLEY et al., 1744, p. 265).