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CAPÍTULO 3. Animais, Plantas ou Animais-Planta? Os estudos de Abraham Trembley

3.1. Abraham Trembley (1710-1784)

3.1.3. Um animal que brota? A forma “incomum” de reprodução dos pólipos

As observações e experiências realizadas com os pólipos possibilitaram que Trembley identificasse a capacidade de regeneração completa desses seres. Fenômeno, no mínimo, intrigante, posto que tal ocorrência era de conhecimento apenas em espécies do reino vegetal.

Entretanto, o jovem naturalista admitiu que esse evento de multiplicação por cortes seria uma forma “artificial” de reprodução. Até o momento, ainda que mediante contínuas e atentas observações, ele ainda não havia notado algo que pudesse sinalizar sobre a sua forma natural de reprodução.

Contudo, de dezembro de 1740 a fevereiro de 1741 Trembley direcionou especial atenção para tentar encontrar a maneira natural de reprodução desses organismos. Mas não obteve êxito. Nada do de comum que poderia reconhecer como reprodução havia acontecido

75 entre os seus pequenos organismos. Ao final de fevereiro de 1741, a sua paciente conduta foi, finalmente, “agraciada” com algo que valeria a pena investigar.

Em um dos recipientes nos quais armazenava espécimes ele observou, na parede de um dos frascos, um indivíduo que possuía uma pequena excrescência, um ponto verde escuro, quase imperceptível a olho nu, na lateral da extensão do seu corpo.

Essa excrescência, embora pequena, atraiu toda a minha atenção, pois eu nunca havia notado isso em nenhum outro pólipo, embora já tivesse observado muitos deles. (…) A fim de evitar confundi-lo com outros no mesmo recipiente, eu o coletei e isolei outro pode de vidro. Por sorte, ele se prendeu na lateral do vidro, de forma que pudesse observá-lo bem com uma lupa. (…). Após ter observado diversas vezes, eu pude notar uma similaridade entre o ponto verde-escuro e o organismo no qual estava anexado (…) assim, eu comecei a suspeitar que essa excrescência poderia, talvez, se tornar um pólipo (TREMBLEY apud BAKER, 1952, p, 79).

Trembley acompanhou continuamente esse fenômeno. Munido com uma “forte lupa”, ele procurou detalhar todos os eventos que seu “pólipo-broto” realizava. A quantidade de crescimento diário; numerava a quantidade de “braços” nascidos; os movimentos produzidos. Então, passados quase vinte dias desde que tinha observado a excrescência, “eu o vi se separar do corpo da sua mãe, entre às 10 e 11 da manhã, do dia 18 de março de 1741” (TREMBLEY 1744, apud BAKER, 1952, p. 80).

A demasiada atenção dada a esse curioso fenômeno, reside no fato de que Trembley, apesar de já observar esses seres desde julho de 1740, ele nunca havia visto “uns sobre outros”. A despeito de ter admitido que havia percebido indivíduos com vários outros anexados a eles. Contudo, para se assegurar se eles realizavam (ou não) algum tipo de acasalamento, “eu confinei diversos espécimes em pequenos espaços para ver se eles se posicionavam uns sobre outros. Eu nunca vi isso” (DAWSON, 1989, p, 105).

Estaria Trembley testemunhando outro organismo que excede à regra geral da reprodução sexuada?47 Ou esses corpos organizados seriam vegetais, afinal? Uma vez que nascimento por brotos era considerado característica de plantas.

Mais uma vez, Trembley decide submeter outros espécimes, junto com o relato dessa sua primeira observação a Réaumur, que já havia admitido em cartas anteriores a natureza animal dos pólipos. Todavia, essa nova característica da reprodução por brotos, trouxe novas dúvidas (ao menos para Trembley) acerca dessas criaturas.

Diferentemente do evento reportado sobre a regeneração dos pólipos, Réaumur não pareceu se convencer dos relatos enviados por Trembley sobre a perpetuação por brotamento:

47 Nesse momento Trembley já estava ciente das evidências experimentais obtidas pelo seu primo, Charles Bonnet, sobre a perpetuação sem acasalamento em pulgões, em junho de 1740. Posto que ambos se comunicavam frequentemente acerca das suas investigações conduzidas.

76 O que você observou é extremamente curioso, mas pode-se suspeitar que você não tenha notado todas as minúcias. Se o filhote, ou ovo no qual o pólipo acabou de produzir, se anexou por si, assim como as lagostas escondem seus ovos sobre a cauda, isso [o ovo] poderia ser visto unido ao corpo da mãe, e quando começasse a crescer, seria notado, da mesma maneira como acontece em plantas. Talvez o próprio corpo da mãe-pólipo possa fornecer nutrientes para o recém-nascido. Essas são dúvidas dignas de serem investigadas (RÉAUMUR apud DAWSON, 1987, pp, 107-108).

Há alguns fatores relevantes que fundamentaram a ressalva de Réaumur com relação às observações de Trembley sobre essa ideia de reprodução por brotos. A primeira é que, mesmo com as fortes evidências empíricas a favor da multiplicação sem acasalamento, em pulgões, obtida por Bonnet, o assunto ainda era tratado com cautela entre os naturalistas, pois mais observações e experimentos ainda estavam sendo conduzidos por outros estudiosos, a fim de verificar e estender o fenômeno.

Além disso, pode-se especular que o ceticismo de Réaumur sobre esse fenômeno, bem como sua sugestão pela presença de um ovo, tenha sido proveniente de sua posição preformista.

A exemplo de muitos naturalistas do século XVIII, Réaumur aderiu aos conceitos provenientes da teoria da pré-formação. Entretanto, como um experiente observador da natureza, sua forma de aceitar os pressupostos teóricos estava longe de ser simplista ou ausente de empirismo. Mesmo admitindo a universalidade da herança por meio da geração sexuada (ABOU-NEMEH, 2014, p. 158), Réaumur desconsiderava que os seres vivos seriam fruto da simples ideia de encaixamento (emboîtement).

Ele acreditava, portanto, haver uma forma mais sofisticada da pré-formação, principalmente após seus experimentos sobre a regeneração de patas de crustáceos e reiterada pela regeneração completa dos pólipos de água doce (DINSMORE, 1991, p. 94). Ou seja, como partidário da pré-formação, ele estava fortemente inclinado a esperar que, essas criaturas, sendo animais, deveriam se perpetuar por meio de algum mecanismo de acasalamento.

Todavia, ao contrário de Réaumur e de Bonnet, Trembley não parecia estar preocupado com os vieses filosóficos resultantes de suas observações. Seu lado pragmático aparentava ser sustentado apenas por aquilo que ele parecia ver. De modo que ele não encontrou razões para desacreditar no fenômeno de brotamento dos pólipos. Contudo, talvez pelo fato de estar isolado dos centros acadêmicos, isso tenha motivado a descrever todos os detalhes técnicos de seus experimentos para permitir que outros repetissem e corroborassem suas observações (BUSCAGLIA; DUBOULE, 2002, p. 7).

77 Desse modo, a fim de responder às dúvidas de Réaumur sobre o brotamento dos pólipos, Trembley novamente faz uso do procedimento de isolar o organismo para observação. Então, ao final de fevereiro de 1741, ele inicia novas séries de observações:

Eu observei com uma lupa um pólipo verde fixo na lateral do vaso onde eu mantinha outros que eu não estava empregando em nenhuma experiência particular. Eu percebi, sobre seu corpo, uma pequena excrescência de um verde escuro. Por menor que fosse, essa excrescência chamou minha atenção porque eu não havia visto nada semelhante antes sobre qualquer pólipo, ainda que já tivesse observado um grande número deles [...]. Com receio de confundi-lo com os diversos outros, eu o tirei e o coloquei à parte, em outro vaso. [...] Comecei a supor que essa excrescência devia ser um pólipo. [...] Foi isso, sobretudo, que me fez pensar que a excrescência que eu observei, era um pólipo jovem que teria sido originado de um outro (TREMBLEY et al., 1744, p. 151–152). Desde então, Trembley manteve-se atento à cada detalhe dessa excrescência e cerca de quase três semanas após, ele testemunhou o momento em que o jovem pólipo se destacou da mãe (figura 13). “O pólipo está pronto para se separar de sua mãe, estava ligado a ela somente por um ponto. É muito fácil imaginar como essa separação é feita (TREMBLEY et al., 1744, p. 156).

Dada à particularidade dessa nova circunstância, Trembley se ocupou em observar cada detalhe, antes, durante e após o nascimento de um novo pólipo. Repetiu a mesma observação de forma seriada. Analisou cada movimento dos novos organismos, comparando com os animais adultos. Teve o cuidado e enumerar e comparar a quantidade de “braços” dos pólipos recém destacados com outros mais maduros. Isolou e observou os pólipos jovens e notou que possuíam o mesmo padrão comportamental dos demais.

Figura 13. As imagens representam os estágios de progressão do crescimento do broto observado por Trembley. A “Fig. 1”, à direita, ilustra um pólipo-mãe e dois brotos em estágios distintos (c) e (e). A “Fig. 2”, à esquerda, a representação de um pólipo-mãe e um broto prestes a se destacar. As letras (a) e (b) indicam as estruturas do

broto, cabeça e base, respectivamente.

78 Entretanto, Trembley não se manteve no âmbito das observações. Sua audácia experimental foi além, pois decidiu investigar a fundo as suspeitas de Réaumur sobre a possibilidade de existência de algum tipo de ovo preso à mãe pólipo.

Pode-se alegar, talvez, que os jovens pólipos não saiam realmente dos corpos dos mais velhos; ao contrário, apenas ovos, ou pequenos pólipos, tenham sido depositados e fixados em sua pele, e lá permanecem à medida que crescem. É uma suspeita, que pode naturalmente ser formada por aqueles que não examinaram o organismo por si mesmo, e que também podem entrar na mente daqueles que o examinam pela primeira vez. [...]. Então eu não negligenciei nada, decidi por fazer os experimentos mais decisivos para entender de que forma os jovens estão ligados às mães (TREMBLEY et al., 1744, p. 159–160). Um dos experimentos de Trembley consistiu em coletar um pólipo contendo um broto e conduzir um procedimento cirúrgico. Ele selecionou um espécime cuja excrescência ainda estava bem prematura, e com bastante diligência, ousou seccionar e remover do corpo do pólipo mãe.

Com o intuito de verificar se “estômago” da excrescência tinha comunicação direta com o do pólipo originário, Trembley conduziu uma abertura, de maneira que pudesse observar o caminho entre um e outro, caso houvesse algum entre o estômago do pólipo e sua cria. Com uma tesoura com ponta afiada, ele cortou os dois organismos e “com ajuda de uma lupa”, percebeu que a abertura do corpo do pólipo original se encontrava diretamente com a abertura do corpo do jovem (Figura 14). Como de praxe, Trembley realizou o procedimento várias vezes e obteve o mesmo resultado (TREMBLEY, 1744, p, 162).

Figura 14. “Fig. 5” e “Fig. 6” ilustram um buraco de comunicação entre o broto e o pólipo-mãe, a partir da perspectiva interna e externa. A “Fig. 9” e “Fig. 10”, representam o broto seccionado, em tamanho “real” e

aumentado, respectivamente.

Fonte: Trembley (1744, p. 278. Prancha 8)

Outro aspecto que merece destaque é o fato de que, com as contínuas coletas para suas pesquisas, em abril e maio de 1741, Trembley havia identificado outras duas espécies de pólipos de água doce: Hydra vulgaris e Pelmatohydra oligactis (figura 15) (BAKER, 1952, p.34).

79 Apesar de atualmente ser conhecida a capacidade de endossimbiose nas três espécies encontradas por Trembley, a espécie Hydra viridissima é mais resistente a longos períodos de inanição do que as demais (BOSCH, 2012; ISHIKAWA et al., 2016). Assim, a segunda e terceira espécie realizam a captura e ingestão de alimentos de forma muito mais intensa e frequente.

Figura 15. Da esquerda para a direita: “Fig. 6”, ilustração da espécie Hydra vulgaris, ao lado a fotografia da espécie real. A “Fig. 1”, aglomeração de indivíduos da terceira espécie, Pelmatohydra oligactis, com tentáculos

mais finos e longos. À direita, fotografia espécie real.

Fonte: Trembley, 1744, pp. 278-284. Prancha 8, 9 e 10. Fotografias, fonte: Nature Picture Library, por Kim Tayloe e Jan Hamrsky, respectivamente.