• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO 3. Animais, Plantas ou Animais-Planta? Os estudos de Abraham Trembley

3.1. Abraham Trembley (1710-1784)

3.1.1. Trembley e os pólipos de água doce

Os anos em que Trembley passou atuando como tutor particular permitiram-no conquistar bastante experiência e apreço pela tarefa de educar. Fato que pode ser evidenciado por meio da obra que publicaria 40 anos mais tarde, intitulada Instructions d'un père à ses enfans sur la nature et sur la religion (Instruções de um pai a seus filhos sobre a natureza e sobre a religião) (TREMBLEY, 1779).

Trembley preparava os objetos para o estudo dos seus pupilos utilizando-se de métodos variados na elaboração de lições de escrita e pronuncia em francês, inglês e em latim simples. Sem negligenciar, claro, o conhecimento das obras do Criador por meio da observação de suas criaturas – o estudo da história natural. Para isso, ele estimulava o interesse e a curiosidade dos meninos passando boa parte do tempo ao ar livre. A observação a olho nu de uma comunidade de insetos, sementes em germinação, ou o arranjo de uma colmeia, a observação ao microscópio e mensurações com termômetros eram algumas das técnicas adaptadas para trabalhar conceitos de lógica, matemática, religião e história natural (STOTT, 2012, p. 88).

44Pelos registros descritos por Trembley, o inseto observado seria a espécie Attagenus pellio, (Linnaeus, 1758) (BAKER, 1752,

p. 17). Popularmente conhecido como besouro do carpete, esse inseto possui distribuição cosmopolita. Em seu estágio larval alimenta-se de lã, pele seca, restos de insetos e outros materiais de origem animal (PEACOCK, 1993, p.53).

69 Desse modo, a história natural formou parte essencial dos ensinamentos que Trembley ofereceu aos seus dois jovens pupilos. A sua preocupação também abrangia a instrução religiosa e a formação de caráter. Portanto, o aperfeiçoamento dos poderes de observação por meio de estudos da intricada arte da natureza forneceria evidências sólidas da mão de um Criador. O estudo da história natural, assim, tornava-se um antídoto contra qualquer ideia ateísta que seus estudantes pudessem formar (DAWSON, 1991, p. 312).

Como muitos eruditos amadores que se cativaram pelos estudos de Réaumur em história natural, Trembley não se restringiu apenas às suas leituras, mas também à observação e a experimentação com insetos, ainda que de modo simples.

A partir dessa inclinação pessoal, no início do verão de 1740 Trembley e seus jovens alunos estavam nos jardins da residência em busca de insetos aquáticos nas valas e lagoas artificiais. Tudo aquilo que lhes parecia interessante foi coletado para posteriormente, realizarem uma investigação mais cautelosa. Em seu gabinete pessoal no interior da mansão dos Bentinck, havia sobre o peitoril da janela, muitos recipientes de vidro onde Trembley mantinha os espécimes capturados.

Eu notei diversos animais pequenos sobre as plantas que tinha retirado de um fosso; eu coloquei algumas dessas plantas dentro de um grande recipiente de vidro e guardei sobre o peitoril da janela; em seguida eu me ocupei em observar aqueles insetos confinados. Logo percebi um grande número deles, muitos eram comuns, mas a maioria deles eram desconhecidos para mim. Um espetáculo novo, oferecido por aqueles pequenos animais acabou por excitar a minha curiosidade (TREMBLEY, 1744, p. 7).

Ao observar com mais atenção todos aqueles pequenos organismos com o auxílio de uma lupa, ele encontrou diminutos seres que se assemelhavam a vegetais. “ Na primeira vez que eu observei esses pequenos objetos, eu os tomei por plantas parasitas, que crescem sobre outras plantas. [...] Foi a forma desses pólipos, sua cor verde e sua imobilidade que me fizeram assim” (TREMBLEY, 1744, pp 8-9).

Mas ao tomar o recipiente e sacudi-lo suavemente, ele viu os organismos se contraírem, aparecendo nada além de pequenos pontos verdes e ao olhar novamente com uma lupa, percebeu que aqueles pontos começaram a se estender até tomarem o seu formato inicial, evento que aguçou ainda mais a sua curiosidade de observá-los acuidade. Com constância de observações, Trembley conseguiu perceber também que aqueles estranhos organismos verdes aparentemente tinham um tipo movimento voluntário que era independente do fluxo da água no interior do vaso de vidro, fato que o levou a pensar na possibilidade de serem animais, não plantas (DAWSON, 1987, p. 98).

70 Essas contrações e todos os outros movimentos que os vi fazer, revelaram fortemente em mim a ideia de um animal. Eu pude compará- los aos caracóis e outros "insetos" que têm a capacidade de se contrair e estender. [...], no entanto, eu não decidi absolutamente nada a favor da natureza animal desses seres. [Uma vez que] a sua forma e cor verde ainda me impressionavam (TREMBLEY, 1744, p.10).

Passados alguns dias, Trembley notou outra característica que reforçou a sua suspeita da natureza dessas criaturas – a capacidade de locomoção semelhante a alguns vermes – de “ponta-cabeça” (figura 11). Esse fator decretou a sua opinião acerca daqueles organismos. Para ele, os organismos verdes eram, de fato, animais.

Todavia, ao final de setembro de 1740, enquanto Trembley e os meninos realizavam a inspeção nos frascos sobre o peitoril, ele percebeu que em um deles a maioria das criaturas verdes estavam agrupadas no lado iluminado pela luz do sol. Mais uma vez a sua curiosidade foi aguçada e ele se questionou se tal fato seria apenas mero acaso ou esses organismos teriam algum tipo de propensão pela área iluminada (TREMBLEY, 1744, p. 11). Se assim o fosse, orientação em direção à luz é outra característica de plantas. Com essa nova dúvida em mente, Trembley voltou a pensar na natureza vegetal desses organismos.

Figura 11. Da direita para a esquerda (Fig. 1 a 4; e Fig. 6 a 9), ilustrações representando a forma de locomoção dos pólipos. De ponta-cabeça e por cambalhotas, respectivamente

Fonte: Trembley (1744, prancha 3)

A fim de averiguar se as criaturas possuíam algum tipo de propensão à luz, Trembley tomou uma simples ação: girou o recipiente de vidro, mantendo os organismos agrupados à sombra. No dia seguinte, ele notou que criaturas migraram de volta para o lado iluminado pela luz solar! Isso o deixou bastante intrigado, mas não foi suficiente para convencê-lo. Então, ele

71 elaborou um experimento um pouco mais sofisticado para apurar se, de fato, era a luz solar que atraía aqueles organismos.

Para isso, tomou um dos frascos de vidro, acrescentou alguns espécimes e envolveu o recipiente com uma cobertura de papelão, tendo apenas um orifício que permitia a passagem de luz. Durante o dia, em intervalo de tempos, Trembley girava a cobertura de papelão e percebia que os organismos “buscavam” sempre a parte do orifício que permitir a luz entrar, concluindo, portanto, que esses organismos possuíam, sim, algum tipo de sensibilidade à luz solar (TREMBLEY, 1744, pp. 66-67).

Frente a esse fato novo, ele decidiu se aprofundar no estudo dessas estranhas criaturas, que hora se comportavam como animais, hora como plantas.

Conforme as observações se tornavam mais contínuas e precisas, não levou muito tempo até perceber que entre os espécimes, havia diferenças na forma e número de “braços” desses organismos. Trembley pensou que esse número desigual de “braços” poderia estar, de alguma forma, relacionado aos galhos e raízes das plantas.

Eu percebi que nem todos indivíduos das espécies que eu observei tinham números iguais de “braços”. Eu tinha razão para acreditar que nada havia de anormal nessas diferenças. Embora eu não tivesse encontrado qualquer dificuldade em aceitar essas diferenças entre os organismos de uma única espécie de animais, eu comparei esses “braços” aos galhos e raízes de plantas e pensei que esses corpos organizados pudessem ser plantas sensitivas (TREMBLEY, 1744, p.13).

Induzido por essa nova característica sobre a natureza vegetal desses organismos, Trembley realizou outro experimento: cortar um desses organismos ao meio, transversalmente (figura 12).

Eu pensei que se duas partes do mesmo organismo vivessem após serem separadas, tornando-se cada, um organismo perfeito, era óbvio que esses corpos organizados seriam plantas. Contudo, como eu estava mais inclinado a acreditar que eram animais, eu não esperei obter muito sucesso com esse experimento, eu esperei a morte das criaturas (TREMBLEY, 1744, P.13).

Figura 12. Pólipo seccionado transversalmente em três partes a fim de verificar o evento de regeneração

72 Então, no dia 25 de novembro de 1740, Trembley procedeu o experimento de cortar um daqueles diminutos seres ao meio.

Após cortá-lo, ele separou cada metade num pequeno prato de vidro contendo uma mínima quantidade de água, de forma que pudesse observar com o uso de uma lupa. Instantes após o procedimento de corte, ambas as partes se contraíram, parecendo nada além de dois grãos verdes. Porém, no mesmo dia, os pedaços começaram a se estender e foram facilmente distinguíveis, uma continha os “braços” e a outra apenas a parte do “corpo”. Com o passar dos dias, Trembley notou que as partes começaram a não apenas se estender, mas também realizavam vários tipos de movimentos que pareciam ser voluntários.

No dia 04 de dezembro de 1740, nove dias após ele ter cortado, o resultado dessa experiência o deixou ainda mais confuso. Ambas as partes cortadas se transformaram em dois seres perfeitos, sendo impossível diferenciá-los!

Minha experiência foi mais bem-sucedida do que eu esperava. Mas, após ver esses resultados eu pude concluir positivamente que esses organismos eram plantas. E plantas que nascem por brotamento. Porém, eu tinha observado os movimentos que aqueles seres inteiros, e até mesmo as suas partes que se reproduziram faziam, e isso reforçou em mim a ideia de serem animais. Esses movimentos pareciam muito espontâneos, bem diferentes de plantas e comuns a uma infinidade de animais que conhecemos (TREMBLEY, 1744, p. 16).

Um assunto que começou como uma simples lição de história natural para os pupilos de Trembley, tornou-se um dilema no qual ele se debruçou para tentar solucionar e desvendar - a natureza desses organismos: planta ou animal?

Trembley não era um estudioso em história natural, era mais um amador esclarecido e suas experiências foram frutos de atenção e criatividade, acima de tudo. Entretanto, ciente de que não tinha conhecimento erudito sobre o assunto e diante desse aparente dilema encontrado apresentado pelos resultados das suas observações, ele não sabia mais para onde seguir. Assim, ele decidiu procurar ajuda de alguém que pudesse lançar luz ao seu problema - quando resolveu escrever a Réaumur.