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O padrão de interação entre os atores

O controle social tem como objeto o Sistema Único de Saúde como todo. Entretanto, os Conselhos Mu- nicipais freqüentemente privilegiam questões ligadas à atenção médico-hospitalar prestada às pessoas. Ou- tros temas, tais como a vigilância sanitária, raramente entram em pauta, a não ser em caso de escândalos.

A relativa marginalidade da vigilância sanitária não é de estranhar. Relaciona-se com a especificidade do seu objeto que produz um padrão distinto de interação entre os atores, em que os supostos benefi- ciários e razão de ser da Vigilância Sanitária, os usuários dos serviços de saúde, tendem a estar quase ausentes como se fosse um elo perdido .

Tendo como objeto a proteção e defesa da saúde individual e coletiva, a Vigilância Sanitária basica- mente intervém nas relações sociais de produção e consumo para prevenir, diminuir ou eliminar riscos e danos à saúde relacionados com objetos (mercadorias e serviços) historicamente definidos como de interesse da saúde, tendo como objetivo final a melhoria crescente da qualidade da vida (veja Costa, 1999: 65). Estas relações são marcadas por contradições e conflitos, onde bens e serviços produzidos atendem a necessidades distintas: de um lado, a realização de mais-valia e a maximização do lucro e, de outro lado, a satisfação das necessidades das pessoas. Entretanto, dentro da lógica da economia capita- lista, os interesses dominantes são os dos produtores. Esta dominância é reforçada pelo fato de que as necessidades das pessoas são socialmente produzidas e intermediadas por uma ideologia de consumo que opera no sentido de minimizar a contradição entre a capacidade ilimitada de produzir e a capaci- dade limitada de consumir pela intensificação dos atos de consumo (Giovanni, 1980:46).

Intervindo em relações de produção e consumo marcadas por contradições e conflitos, a Vigilância Sanitária deixa de ser apenas uma atividade técnica. Torna-se também uma atividade política que, a des- peito do fato de que a produção de bens e serviços nocivos à saúde dos indivíduos e da coletividade ameaçar a “harmonia” das relações entre produção e consumo, freqüentemente privilegia interesses eco- nômicos hegemônicos em detrimento das necessidades de saúde. São interesses de uma variedade de atores econômicos que não se situam todos dentro da área específica de saúde, tais como: produtores, importadores e distribuidores de alimentos, de fármacos, de equipamentos, instrumentos, aparelhos, acessórios e instrumentos utilizados em medicina e atividades afins), de cosméticos e produtos de hi- giene pessoal, de saneantes domissanitiários, de agrotóxicos e outros produtos nocivos; prestadores de serviços relacionados com a saúde, etc. Estes atores tem se tornado atores políticos ao se associarem em entidades representativas nacionais e estaduais, tais como a Associação Brasileira das Indústrias da Ali- mentação – ABI, a Associação Brasileira das Indústrias Farmacêuticas – ABIFARMA, as Federações e Con- federação Nacional da Agricultura, as Federações e Confederação Nacional da Indústria, as Federações e Confederação Nacional do Comércio etc.

As associações de produtores de bens e serviços não raramente se articulam diretamente com Minis- térios e outros setores burocráticos do governo com maior peso do que os da saúde. Em vista desta ar- ticulação, não é de estranhar que historicamente a Vigilância Sanitária tem sido esquecida quanto à sua importância para a saúde dos indivíduos e da coletividade e tem sido pouco instrumentalizada para suas atividades. É verdade que não faltou uma ação normativa principalmente em momentos de crise aguda, mas quase sempre houve uma renitente omissão do Estado em cumprir e fazer cumprir disposições le- gais, mesmo quando estas visavam a proteção e defesa da saúde das pessoas e da coletividade.

A omissão em favor de interesses econômicos dominantes, tem sido favorecida pela fragmentação da organização administrativa da Vigilância Sanitária, não apenas resultado da diversidade de objetos abran- gidos pela Vigilância Sanitária, mas também da distribuição de poder político dentre da burocracia esta- tal. Esta fragmentação facilita, o que Claus Offe chama, uma seletividade estrutural, que faz com que as instituições do Estado selecionam somente aqueles interesses compatíveis com os “interesses globais do capital” (Offe,1984: 149)

O técnicos da Vigilância Sanitária, mesmo representando o poder de intervenção do Estado, ocu- pam um lugar subordinado. Sua atuação é circunscrita pelas relações de força no nível da Sociedade Civil que colocam os consumidores, a população alvo da Vigilância Sanitária, numa posição subordi- nada. Desta forma, a despeito dos compromissos sociais dos técnicos, muitas atividades da Vigilância Sanitária acabam submetidas aos interesses econômicos hegemônicos. O lugar subordinado dos técni- cos dentro da estrutura burocrática estatal se evidencia pela facilidade com que ao longo da história os responsáveis por diversos setores da Vigilância Sanitária foram substituídos ou foram reestrutura- dos arranjos administrativos.

A criação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária - ANVISA em 1999, como autarquia especial do- tada de autonomia financeira e administrativa, parece favorecer uma intervenção mais forte nas relações sociais de produção e consumo em prol da proteção e defesa da saúde. Entretanto, se não houver um forte controle da sociedade sobre a atuação da ANVISA em prol dos interesses da saúde dos indivíduos e da coletividade, é altamente provável que a dinâmica de suas atividades continue sendo regida mais pelas demandas do segmentos produtores do que pelas necessidades de saúde da população.

Mesmo se a atuação da ANVISA se orientar pelos interesses da população consumidora de produtos e serviços, há de se considerar que ações de fiscalização e controle apenas por parte do Estado não são capazes de assegurar produtos e serviços de qualidade. Isto pressupõe uma nova harmonia das relações sociais de produção-consumo com forte presença de autoregulação por parte de produtores de bens e serviços, induzida a partir da expansão da noção de cidadania e do crescente reconhecimento dos di- reitos dos consumidores.

A ausência da população consumidora como referência principal nas atividades da Vigilância Sanitá- ria reflete a hegemonia do elo produtor nas relações de produção e consumo, mas também a natureza dos benefícios produzidos pela Vigilância Sanitária.

A produção de benefícios pela Vigilância Sanitária implica a cooperação da população ou seja a acei- tação de certas interações ‘produtivas’, pois a qualidade e menor nocividade conferidas a produtos e ser- viços somente se realizam quando as pessoas consumirem estes produtos. Nesta perspectiva os cidadãos tornam-se o órgão último e decisivo da Vigilância Sanitária e terão possibilidade de controle.

Entretanto, em contraste com os cuidados de saúde prestadas às pessoas, os benefícios das ativida- des da Vigilância Sanitária não são somente individualmente apropriados pelas pessoas. A Vigilância Sa- nitária. produz bens coletivos, não sendo nem exclusivos nem competitivos no consumo. Não são com- petitivos, pois o consumo destes benefícios por uma pessoa não diminui a quantidade disponível para outra pessoa. Não são exclusivos, pois é impossível ou oneroso produzir estes benefícios somente para determinados grupos.

Tratando-se de benefícios coletivos, os usuários muitas vezes se comportam como free-riders, gente que pega carona, esperando que outros farão os esforços necessários para a produção destes benefícios. Como a teoria clássica de Olson (1971) sobre ação coletiva aponta, interesses coletivos por si só não produzem uma ação coletiva. Esta surgirá somente sob coação ou quando as pessoas puderem obter vantagens pessoais ou ainda quando perceberem claramente que a sua própria contribuição é impor- tante para assegurar a oferta dos benefícios. Entretanto, uma mobilização coletiva emergirá também, quando as pessoas se sentirem parte de uma coletividade, como apontam diversos autores sobre movi- mentos sociais (Morris & Mueller,1992). Desta forma, o sentimento de pertencer a uma coletividade com direito a serviços e a produtos de qualidade que não são nocivos à saúde, poderá mobilizar as pessoas, principalmente quando este sentimento for acompanhado por indignação com o evidente desrespeito de consumidores por grande parte de produtores de bens e serviços. Tanto o reconhecimento da cidadania como o dos direitos de consumidor parecem favorecer a emergência desta identidade coletiva

Há autores, entre os quais Mancuso1 citado por Costa (1999: 96), que apontam que a demanda por Vigilância Sanitária se enquadra em necessidades não sentidas pela população, pela falta de conheci- mento sobre a atividade governamental e quanto ao papel que desempenha essa ação na melhoria da saúde dos indivíduos e da coletividade. Ainda que a ausência da demanda decorra também da falta de ação ou mobilização coletiva, certamente existe também uma assimetria de informação. Neste caso, a as- simetria não resulta de “segredos profissionais” cultivados pelos técnicos da Vigilância Sanitária, e nem apenas do fato de que medidas para proteger e defender saúde crescentemente exigem pesquisa cien- tífica .Resulta muitas vezes da ‘desinformação’ produzida por produtores de bens e serviços, que mani- pulam ou ocultam informações para promover o consumo. Por este motivo, a informação e educação sanitária são instrumentos importantes para a criação de uma consciência sanitária – necessária à repro- dução de uma vida com melhor qualidade – e de instrumentação para o controle social da Vigilância Sa- nitária e das empresas que produzem bens e serviços relacionados com a saúde.