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para escolha dos responsáveis pelo projeto: intervenções na cracolândia e

especulações do mercado a todo vapor

No dia 1º de julho de 2009 foi aberto para consulta pública, durante o prazo de dois meses, o edital de licitação Nº 01/2009SMDU, Processo Nº 2009-0.209.264-9, para contratação da empresa respon- sável por desenvolver o projeto urbanístico da área da Nova Luz, que também incluía o Plano De Urbanização da ZEIS, Estudo de Viabilidade Econômica e Financeira, Estudo de Impacto Ambiental (EIA-RIMA) e um Plano de Comunicação. O edital de licitação, disponível no site da SMDU, de mo- dalidade técnica e preço, apresentou como diretriz um plano urbanístico com previsão para atender seis mil moradores além dos 12 mil existentes, incluindo a ampliação das áreas públicas, alargamento de calçadas, preservação de patrimônio histórico e o estímulo às atividades econômicas. O edital apresentou uma ampliação de quase duas vezes o perímetro do Projeto Nova Luz original apresen- tado pela Emurb em 2005, estando agora circunscrito entre as Avenidas Casper Líbero, Ipiranga, São João, Duque de Caxias e Rua Mauá. A ampliação direcionou a intervenção para Oeste, aumentando a oferta de áreas a serem destinadas à população de maior renda na aplicação da Concessão Urba- nística, já que grande parte da face Leste estaria comprometida com a construção de habitações de interesse social, devido a demarcação da ZEIS 3.

Entre o período da consulta pública até o lançamento da licitação para a contratação da empresa responsável pelo projeto se passaram pouco mais de cinco meses. Um período marcado por ações na cracolândia, tentativas de ressigniicação do lugar pelo poder público e especulações do mercado sobre o destino da área e suas possibilidades de investimento.

No dia 22 de julho de 2009 entrou em ação uma grande operação denominada Ações Integradas Centro Legal, envolvendo mais de 20 órgãos da Prefeitura Municipal e do Governo do Estado, cujo objetivo era diminuir os índices de criminalidade e um problema social da área: o consumo de crack. Os diversos jornais que publicaram a operação apontaram os números do primeiro dia de aborda- gem: 71 agentes da Polícia Civil e 250 policiais militares foram colocados nas ruas; 126 agentes de saúde e de assistência social foram elencados para atender a população em situação de rua; três trai- cantes foram presos pela Polícia Militar; quantidade não divulgada de substâncias ilícitas (maconha, cocaína e crack) foram apreendidas; foram cumpridos 22 mandados de prisão, busca e apreensão; 20 cortiços foram interditados por alegação de falta de segurança e usuários de droga foram abordados e “convidados” a se dirigir para uma unidade de saúde da região.

Como resultado deste primeiro dia de operação não só o sistema carcerário municipal recebeu um acréscimo de “usuários”, mas também as ruas do centro da cidade. Famílias residentes dos cortiços interditados foram despejadas de suas moradias, já que não aceitaram ser encaminhadas para os centros de acolhida. A grande maioria dos dependentes químicos da área ali permaneceram depois de recusarem o encaminhamento para as unidades de saúde e posteriormente para as clínicas de tratamento. Contudo, o programa persistiu. “Nós vamos conseguir botar ordem neste setor da Nova

2.3

Perímetro Original do Projeto Nova Luz Perímetro Ampliado do Projeto Nova Luz Perímetro da ZEIS 3C 016 (Sé)

Luz através da persistência” (Portal G1, 22 de julho de 2009)10, airmou o delegado Aldo Galeano,

comandante da operação. Dois dias após o início da operação foi divulgado o número de 12 depen- dentes encaminhados para internação e 66 encaminhamentos médicos, após 332 abordagens. Contudo, três meses depois do início da operação, a cracolândia permanecia visível, com usuários de drogas ocupando as ruas e espaços públicos não somente da região da Luz e da Santa Iigênia, mas também de Campos Elíseos, Santa Cecília, Barra Funda, República e arredores. O jornal O Estado de São Paulo noticiou que 90% dos abordados recusaram auxílio. O fechamento dos hotéis e a interdi- ção dos cortiços, totalizando quase 30 imóveis, tornaria a região ainda mais desabitada, ampliando o número de moradores nas ruas, já que os imóveis anteriormente ocupados pelas famílias de baixa renda permaneciam vazios, abandonados, sem moradores.

Ao inal das intervenções policiais, em dezembro de 2009, seis meses depois do início da operação Centro Legal, 37.900 abordagens haviam sido realizadas aos moradores de ruas e viciados, que leva- ram a 2.111 casos de encaminhamentos pelos técnicos da saúde, e que por sua vez resultaram em 155 internações para resolver problemas básicos de saúde, como desnutrição, fraturas e intoxicação por 10 Matéria publicada no Portal G1 em 22 de julho de 2009. Disponível em: <http://g1.globo.com/Noticias/SaoPau- lo/0,,MUL1239401-5605,00-OPERACAO+NA+CRACOLANDIA+TIRA+DAS+RUAS+E+INTERNA+CINCO+PESSO- AS.html>. Acessado em dezembro de 2009.

Mapa 2.04: Projeto Nova Luz: perímetro original e perímetro ampliado

Fonte: Elaboração própria a partir dos mapas divulgados pela PMSP. Base cartográfica: Mapa Digital da Cidade, 2004.

Rua Sant a Ifig ênia Av Casper Líber o Av Duque de Caxias Rua Mauá Av Rio Br anc o Av São Jo ão Av Ipir anga 0 100 200 300 m N

126 127 drogas, mas não para tratar a dependência química. Ao im das rondas policiais, a rotina dos depen-

dentes químicos e a ocupação dos arredores da Rua Helvétia já haviam sido retomadas.

Uma nova ação da polícia civil, descolada da Operação Centro Legal, foi realizada no dia 25 de feve- reiro de 2010, considerada pela imprensa na época a maior ação feita na cracolândia. Foram apreen- didas 500 pedras de crack e presas 33 pessoas acusadas de tráico de drogas. Essa operação policial deteve ainda cerca de 300 usuários de drogas, que foram humilhantemente colocados em ila indiana e coninados na base da ação Centro Legal, sem qualquer conhecimento dos agentes de saúde. O então Secretário Municipal de Saúde, Januario Montone, emitiu nota de repúdio ao espetáculo piro- técnico realizado pela polícia civil: “Foi uma ação de total e inteira responsabilidade das autoridades policiais, sem qualquer planejamento conjunto ou conhecimento e preparação da área da saúde” (O Estado de São Paulo, 26 de fevereiro de 2010, C8, Cidades/Metrópole). No dia seguinte, o então secretário nacional de Segurança Pública, Ricardo Balestreri, anunciou uma força-tarefa federal para combater o crack, airmando que “[...] a polícia brasileira, com toda a boa intenção, não tem know how para o combate ao crack” (O Estado de São Paulo, 27 de fevereiro de 2010, C8, Cidades/Metró- pole). Na mesma ocasião, o prefeito Gilberto Kassab admitiu falta de integração com o Governo do Estado em operação policial na Luz, se remetendo à operação realizada no dia anterior.

Toda essa operação de guerra contra a “degradação” veio acompanhada de tentativas do poder públi- co de ressigniicação do que antes era chamado por eles mesmos de “cracolândia”, a im de organizar o território e atrair o mercado para os investimentos que então se sucederiam, como o início do desenvolvimento do projeto urbanístico e a licitação da Concessão Urbanística. Logo após o início do programa Centro Legal, quando as ruas da Santa Iigênia foram tomadas por policiais e funcio- nários da saúde pública e assistência social, a Prefeitura Municipal em parceria com o Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB) promoveu uma caminhada pelos limites do projeto com urbanistas in- ternacionais membros da União Internacional de Arquitetos (UIA), como parte da programação do Fórum Urbano Internacional, criado para discutir o projeto de revitalização da Nova Luz. Estiveram presentes na caminhada arquitetos da China, Coreia do Sul, Marrocos, Austrália e Estados Unidos, entre outros. “Uma cracolândia sem crack, uma Luz sem prostitutas, um centro sem assaltos e ruas sem lixo. Foi essa a São Paulo que o grupo de urbanistas estrangeiros conheceu ontem”, (Folha de São Paulo, 27 de julho de 2009, C8, Caderno Cidades), foi a notícia veiculada. Após uma visita à Sala São Paulo, o grupo, escoltado pela Guarda Civil Metropolitana, foi levado para percorrer as ruas inseridas no perímetro do projeto, porém “poupados” de adentrar as ruas Guaianases e Vitória, onde a con- centração de usuários de drogas era mais visível. Fizeram uma visita apenas perimetral, contornando a área do projeto. “A vizinhança precisa ser limpa. Tem muito problema social. Quero voltar daqui a 10 anos e ver como icou.” (Folha de São Paulo, 27 de julho de 2009, C8, Caderno Cidades), disse o cingapuriano Chong Chia Goh.

Este acontecimento isolado, às vésperas do processo licitatório para escolher a empresa responsável para elaborar o Projeto Nova Luz, seria um prenúncio da visão limitada não somente dos urbanistas estrangeiros sobre a região, mas dos gestores do projeto. A análise pelas bordas, perimetral e superi- cial, aliada ao desejo do novo e da “limpeza” social, estaria presente no desenho urbanístico apresen- tado posteriormente e na forma de conduta das etapas sequenciais do Projeto.

Enquanto a Prefeitura se esforçava em “limpar” a área do projeto e apresentar seus potenciais aos urbanistas estrangeiros, prováveis candidatos ao processo licitatório, o mercado fazia suas apostas e especulações sobre o futuro incerto de um possível investimento. A ZEIS 3 inserida no perímetro, que apontava a obrigatoriedade da construção de moradias populares, era vista com resistência pelos possíveis investidores. Notícias como “O mercado imobiliário abandona Nova Luz” veiculadas no

jornal O Estado de São Paulo, no dia 29 de outubro de 2009, passaram a ser recorrentes na imprensa, evidenciando a desconiança das construtoras em fazer daquele território um “produto” lucrativo, já que a ZEIS possibilitaria a formação de “guetos de pobreza” e afastaria o interesse da classe média em morara na região. “O modelo que está proposto não interessa ao mercado. O nosso projeto foi feito pelo Jaime Lerner, que não vai mais participar da concorrência” (O Estado de São Paulo, 29 de ou- tubro de 2009, C8, Caderno Cidades), airmou Cláudio Bernardes, vice-presidente do Secovi. Como resposta, a prefeitura insistia na diversidade social possibilitada pela ZEIS, já que 40% das habitações seriam destinadas para a população com até 16 salários mínimos. Segundo a prefeitura, a cota para a classe média subsidiaria as moradias populares.

Outro acontecimento signiicativo que marcou o período do processo de licitação dos projetos foi a revisão do tombamento dos imóveis da Santa Iigênia pelo Condephaat, que preservava 99 imóveis, 48 deles integralmente. As mudanças foram publicadas no Diário Oicial do Estado na primeira quinzena de fevereiro de 2010. Com as alterações apenas três permaneceram preservados integral- mente: a Igreja de Santa Iigênia, a Igreja Luterana, localizada na Av. Rio Branco, o Viaduto Santa Iigênia e 88 imóveis icaram sujeitos a Grau de Preservação 2, onde é necessário manter intacto apenas fachadas, coberturas e alguns elementos arquitetônicos. A mudança no grau de tombamento liberou muitos imóveis para ser objeto de intervenção no Projeto Nova Luz: 13 imóveis foram “des- tombados”, o que signiica que poderiam ser desapropriados pela iniciativa privada e demolidos para a construção de novos prédios. A revisão dos tombamentos do bairro foi feita a pedido da prefeitura no início da gestão de José Serra (PSDB), em 2007, assim que João Sayad assumiu a Secretaria da Cultura. O argumento utilizado foi que a preservação dos imóveis poderia inviabilizar o projeto de revitalização, a ser feito pela iniciativa privada, conforme noticiou o jornal Folha de São Paulo, em 19 de fevereiro de 2010.

Já a instalação dos órgãos públicos anunciada sobre os terrenos demolidos ocorreu apenas no terreno de 6.870 m² localizado no quadrilátero entre as ruas Timbiras, Andradas, Aurora e General Couto de Magalhães. Em abril de 2010 foram iniciadas as obras para a construção do Centro Paulo Souza ao custo previsto de 60 milhões de reais, parceria entre os governos estadual e municipal, com conclusão prevista para 2011. O Centro, projetado pelo arquiteto Francisco Spadoni para abrigar 2.500 alunos, foi inaugurado em agosto e 2013 e seria uma das únicas obras concluídas nos terrenos demolidos no perímetro do Projeto Nova Luz. O início da construção do equipamento, identiicado pela imprensa como a “porta de entrada” do projeto de revitalização, trouxe novas expectativas sobre a Nova Luz, anunciada a partir de então pela imprensa como irreversível.

Todos esses acontecimentos sobre a área de intervenção do Projeto Nova Luz acabaram por atingir diferentes responsabilidades do planejamento municipal, como as Secretarias de Segurança, de Saú- de e Assistência Social, os órgãos de patrimônio histórico, e também muitos setores organizados da sociedade, como os institutos de arquitetura e urbanismo e instituições ligadas à construção civil e ao mercado imobiliário, todos unidos em combate contra um processo de degradação historicamente construído. O cenário identiicado em torno do distrito de Santa Iigênia era o de um território ur- bano que sofreu um processo massivo de abandono pelas políticas públicas, apesar das tentativas fra- cassadas de transformação urbana, e que se tornava o centro das atenções pela potencialidade, tam- bém construída, da implantação da idéia do “novo”, que aproveita o belo e destrói o feio, o pobre e o sujo, para se transformar em mercadoria altamente rentável a quem ali depositasse suas expectativas. Em meio às intervenções policiais na cracolândia, as tentativas de ressigniicação do lugar pelo poder público e as oscilações do mercado, o processo de licitação para a contratação do projeto, iniciado no dia 19 de dezembro de 2009, com cinco consórcios classiicados, foi inalizado em 12 de maio de

128 129 2010 no valor de 12 milhões de reais, com a escolha do grupo formado pelas empresas brasileiras

Cia City, Fundação Getúlio Vargas e Concremat e pelo escritório de arquitetura norte-americano AECOM, responsável pelo plano dos Jogos Olímpicos de 2012, em Londres. A escolha da AECOM para desenvolver o plano urbanístico da região, em parceria com o Cia City, já anunciava o peril de projeto e o tipo de leitura de cidade que seriam então desenvolvidos. A AECOM traz no seu currículo experiência de grandes projetos apenas em cidades ricas, como São Francisco, Machester e Londres. Nunca havia trabalhado com situações de vulnerabilidade social e não possui qualquer enraizamento histórico com a realidade brasileira. Já a Cia City traz na bagagem o projeto e a comercialização de bairros jardim, desenhados para a elite paulistana, como Pacaembú, Jardim América, Alto de Pinhei- ros, Butantã, City Lapa e City Boaçava, o que já poderia induzir aos riscos de uma futura gentriica- ção, onde a população pobre da região diicilmente seria incluída no processo, ainda mais quando não existe uma modelagem inanceira que possibilite esta inclusão dentro do modelo proposto. Ao serem entrevistados após vencer a concorrência da licitação, representantes do Consórcio Nova Luz anunciaram seus principais desaios. “Fazer um projeto que seja atraente para a iniciativa privada e para os grandes players da construção civil” ” (Folha de São Paulo, 15 de maio de 2010, Cotidiano), airmou Paulo Coelho, diretor geral da AECOM no Brasil. A diiculdade de viabilizar a intervenção estaria justamente em abarcar a diversidade social. Os principais desaios apresentados pelo grupo foram a situação fundiária da região, a destinação de áreas para habitação popular e a limitação dos imóveis para a classe média.

O projeto urbanístico elaborado pelo

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