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culo XIX: um estudo sobre família, poder e economia Dissertação de Mestrado (História Social da Amazô-

POR SEXO T OTAL ESCRAVO ( A ) FORRO ( A ) LIVRE

H OM E N S E S C R A V OS N Santana (1827-1848) 62 15 13 90 167 Sé (1840-1870) 87 14 21 122 221 Santana e Sé (1827-1870) 149 29 34 212 388 % Santana (1827-1848) 68,9 16,7 14,4 53,9 100,0 Sé (1840-1870) 71,3 11,5 17,2 55,2 100,0 Santana e Sé (1827-1870) 70,3 13,6 16,1 54,6 100,0 M U L HERES E S C R A V A S N Santana (1827-1848) 62 05 10 77 167 Sé (1840-1870) 87 06 06 99 221 Santana e Sé (1827-1870) 149 11 16 176 388 % Santana (1827-1848) 80,5 6,5 13,0 46,1 100,0 Sé (1840-1870) 87,8 6,1 6,1 44,8 100,0 Santana e Sé (1827-1870) 84,7 6,3 9,0 45,4 100,0 OBS:Os percentuais foram calculados tendo como denominador o número de escravos por sexo que se casaram

em cada freguesia. O TOTAL POR SEXO considera a o peso relativo dos homens e mulheres cativos, em relação ao conjunto de escravos de ambos os sexos que se casaram (TOTAL).

FONTE:Cúria Metropolitana de Belém (CMB). Livro I de Registros Paroquiais de Casamento da Freguesia de

Santana e Livros I e II de Registros Paroquiais de Casamento da Freguesia da Sé

Os dados da TABELA 4.8 corroboram o comportamento endógamo dos escravos do nú- cleo urbano central de Belém: tanto na freguesia da Sé, quanto na freguesia de Santana, os ca- tivos contraíam casamento, via de regra, com companheiros de cativeiro. Não obstante tal pa- drão geral, podemos verificar, no que respeita aos enlaces exógamos, um comportamento ma- trimonial essencialmente diferenciado conforme o sexo: não somente se casaram mais homens do que mulheres em condição cativa como aqueles apresentaram um maior indicativo de exo- gamia. Isso, no contexto de uma população escrava, em que a participação relativa das mulhe- res cativas esteve longe de ser inexpressiva (caso consideremos apenas os escravos com 15 ou mais anos de idade, as escravas perfizeram 50,7% dos escravos de nossa amostra entre 1810 e 1850, 52,4% entre 1851 e 1871 e 61,0% entre 1872 e 1888). Em outras palavras, a maior inci- dência da exogamia entre os cativos homens não pode ser justificada por um porventura redu- zido pool de cativas disponíveis no mercado matrimonial do núcleo urbano central de Belém.

Nos arranjos matrimoniais dos cativos do núcleo urbano central de Belém, assim como destacamos, no parágrafo anterior, o elemento determinante não era a freguesia à qual perten-

ciam os cativos pertenciam, mas o seu sexo. O mercado matrimonial do núcleo urbano central de Belém assumia, desse modo, contornos distintos para os homens escravos e para as mulhe- res cativas: enquanto no caso daqueles o estoque de esposas potenciais era mais amplo, no ca- so das cativas, o estoque de maridos potenciais revelou-se decerto mais restrito, evidenciando, nos termos das suas possibilidades matrimoniais, uma abertura menor em relação aos segmen- tos livres da população – incluindo, aqui, os potenciais cônjuges egressos do cativeiro. O qua- dro demográfico da escravidão no núcleo urbano central de Belém, ao longo do século 19, nos situa diante da seguinte questão: havendo equilíbrio na distribuição da população cativa adulta segundo o sexo até pelo menos o limiar dos anos de 1870, o que explicaria: 1) a baixa nupcia- lidade e 2) as preferências matrimoniais diferenciadas dos cativos de acordo com o sexo ?

Como vem demonstrando a historiografia concernente ao tema, um dos fatores que es- tava por trás dessa maior ou menor abertura era o fato de a condição cativa ser transmitida por via uterina, pelo ventre das mulheres cativas. Com o ideal de reprodução biológica fortemente imbricado ao casamento, em tese, dificilmente encontraríamos um grande contingente de ho- mens livres casando-se legitimamente com mulheres cativas cientes de que seus filhos legíti- mos nasceriam em condição cativa.374 Isso se refletia, como sugere a TABELA 4.8, também em espaços com características urbanas como o núcleo central de Belém. Todavia, a interação co- tidiana que os escravos da região mantinham com a população livre pode ter criado condições para que um determinado número de mulheres escravas (12,2% na freguesia da Sé e 19,5% na freguesia de Santana) contraísse casamento com homens livres ou forros. Se, do ponto de vis- ta dos cônjuges forros e livres, poderia ser desvantajoso casar com uma mulher cativa, para os senhores, isso em nada comprometeria as perspectivas de reprodução das suas escravas .

Os casamentos exógamos nos conduzem, quase que inevitavelmente, à discussão acer- ca da autonomia escrava e da ingerência senhorial. Como coloca Robert W Slenes: “se a famí- lia cativa é o resultado de uma luta entre escravos e senhores, como se caracterizam os respec- tivos ‘ganhos’ e ‘perdas’ das partes nessa batalha”?375 Trocando em miúdos, como delimitar a tênue linha entre vontades dos escravos e imposição senhorial na formação da família cativa? Antes de qualquer coisa, devemos ter claro que abordar a família escrava não implica necessa- riamente tratar de casamento. Estudos recentes vêm indicando, a exemplo do que constatamos para o núcleo urbano central de Belém, que boa parte das famílias cativas, se organizava sob a monoparentalidade feminina, e que, mesmo nos casos em que se tratava de famílias nucleares,

374 cf.: GOLDSCHMIDT, Eliana Rea. Casamentos mistos: liberdade e escravidão em São Paulo Colonial. São

Paulo: Annablume, FAPESP, 2004.

não necessariamente havia legitimação pela Igreja.376 Além disso, não podemos perder de vis- ta que embora a legislação outorgasse aos cativos o direito de escolherem os seus cônjuges, na prática, dificilmente seriam legitimadas uniões que não desfrutassem de anuência senhorial.377

Portanto, se, por um lado, os escravos tinham meios para barganhar, primeiro, o acesso ao casamento legítimo, e, segundo, a escolha dos seus respectivos cônjuges, por outro lado, os senhores atuavam como um limitante para a conjugalidade dos cativos, inclusive podendo de- cidir quais e como as uniões de seus escravos seriam, de fato, efetivadas. Embora tais relações de poder, a partir das quais se engendravam as famílias escravas, possam não se evidenciar de maneira tão nítida somente pela leitura dos registros paroquiais de casamento, é difícil imagi- narmos que, em um ambiente marcadamente urbano, como o das freguesias da Sé e de Santa- na, onde havia uma interação constante entre os cativos e os mais diversos estratos da popula- ção livre, não houvesse qualquer tipo de controle sobre os casamentos. Se no caso dos enlaces exógamos, tal postura é menos evidente, nos enlaces endógamos, ela se manifesta claramente.

Dos 62 casos pesquisados em que os cativos de Santana casaram-se dentro do seu gru- po social, em nenhum caso ocorreu casamento interplantéis. Por sua vez, dos 87 casos pesqui- sados, em que os cativos da Sé casaram-se dentro do seu grupo social, em tão-somente um ca- so ocorreu casamento interplantéis. No mês de setembro de 1841, os cativos Gonçalo Antônio e Carlota Marcelina contraíram casamento na Catedral da Sé.378 Gonçalo era escravo de Fran- cisca Rosa Cardoso e a Carlota de sua irmã, Antônia Rosa Cardoso. Aparentemente, Francisca e Antônia eram herdeiras de um mesmo espólio – o que pode significar que, um dia, Gonçalo e Carlota Maria, agora separados formalmente em dois plantéis distintos, estiveram sob a pos- se de um mesmo proprietário exercendo atividades comuns e convivendo diariamente. Ou que pelo grau de parentesco de suas senhoras, não se criasse empecilhos à legitimação da união.379

Entretanto, não é somente a imposição do plantel como um limite para os enlaces ho- mógamos que evidencia a intervenção senhorial na conjugalidade dos escravos. Outros fatores que podem evidenciá-la são (1) o maior número de homens escravos que mulheres escravas se casando (ver TABELA 4.8) no núcleo urbano central de Belém, cuja população cativa era cons-

376 Dentre muitos outros, ver principalmente: TEIXEIRA, Heloísa Maria. Família escrava, sua estabilidade e re-

produção em Mariana, op. cit.

377 GOLDSCHMIDT, Eliana Rea. Casamentos mistos, op. cit., p. 113.

378 Cúria Metropolitana de Belém. Livro I de Registros de Casamento do Curato da Sé de Belém, p. 06(v). 379 A partir da análise de um plantel de Apiaí (São Paulo), José Flávio Motta e Agnaldo Valetin analisaram como

após a morte da proprietária, as famílias escravas foram divididas (e repartidas) entre os diversos herdeiros de D. Anna de Oliveira Roza, foram gradualmente se reagrupando, desconfigurando a ruptura causa pela morte da pro- prietária. cf.: MOTTA, José Flávio; VALENTIN, Agnaldo. A estabilidade das famílias em um plantel de escravos de Apiaí (SP). Afro-Ásia, Salvador, n. 27, pp. 161-92, jan.-jun. 2002.

tituída, em grande medida, por mulheres, e (2) a maior endogamia apresentada pelas mulheres cativas, em relação aos homens cativos desse núcleo (ver, novamente, TABELA 4.7). Tais fato- res podem ser sugestivos de que paralelamente ao controle senhorial exercido sobre os matri- mônios – sejam eles endógamos e exógamos –, existiria um controle mais efetivo sobre a con- jugalidade das mulheres escravas, o que seria perfeitamente compreensível haja vista a grande dependência que a escravaria do Grão-Pará possuía da sua reprodução endógena .

Mesmo no âmbito dos matrimônios endógamos e das restrições em termos de mercado matrimonial a eles impostas, não se suprimia por completo a possibilidade de os escravos par- ticiparem ativamente da escolha dos seus respectivos cônjuges. O respeito à endogamia meta- étnica nos raríssimos casos em que encontramos cativos de origem africana se casando no nú- cleo urbano central de Belém, por exemplo, pode evidenciar uma eventual negociação dos es- cravos junto aos seus respectivos senhores, onde as vontades dos cativos foram atendidas. Por outro lado, no âmbito dos casamentos endógamos, sobretudo naqueles que uniam uma mulher escrava e um homem livre (nascido em tal condição ou egresso do cativeiro), uma negociação parece ter sido o ponto de partida para a efetivação do matrimônio, definindo se e delimitando com quem uma determinada união poderia vir a ser legitimada perante a Igreja. Foi tendo co- mo pano de fundo o embate entre escravos e senhores, que se arquitetaram os arranjos matri- moniais examinados.

4.2. MECANISMOS DE REPRODUÇÃO DEMOGRÁFICA E FECUNDIDADE ESCRAVA

Como vimos argumentando no decurso do presente e dos últimos capítulos, a reprodu- ção endógena consubstanciou um elemento fundamental da dinâmica demográfica da escravi- dão em determinadas regiões do Pará oitocentista (a exemplo do núcleo urbano central de Be- lém), em grande medida por conta da incapacidade das elites regionais em promoveram a uma efetiva na escravaria provincial através do tráfico. Se, como já argumentamos anteriormente, é verdade que as elites regionais foram por certo eficazes na manutenção da maior parte do con- tingente cativo do Grão-Pará até pelo menos o final da década de 1870, também é verdade que essas mesmas elites não foram eficazes em ampliar a escravaria paraense a partir do trato, es- pecialmente da década de 1820 – quando ocorre uma desaceleração perene dos fluxos de cati- vos destinados à região – em diante.

Por mais que os mecanismos endógenos de reprodução demográfica dos cativos não se cinjam à família, nem muito menos a um único tipo de arranjo familiar, parece-nos evidente, pelo exposto nas últimas páginas, que a família gozou de grande protagonismo e esteve no co-

ração dos mecanismos de reprodução demográfica da população cativa do núcleo urbano cen- tral de Belém, entre os anos de 1810 e 1888. Mais que isso, os dados até aqui apresentados le- vam-nos a crer que grande parte dessa reprodução ocorreu no âmbito de famílias com estrutu- ra monoparental feminina, inclusive nas posses de menor dimensão, embora a grande incidên- cia de plantéis unitários em todos os três períodos em tela (dimensão de plantel que, aliás, en- formou a distribuição bimodal das escravarias no terceiro período observado, juntamente com os plantéis com dois cativos), possa ter criado dificuldades para a reprodução dos escravos em plantéis pequenos – sem, todavia, inviabilizar por completo as perspectivas de reprodução dos cativos dos menores plantéis.

Nesta seção, examinamos os mecanismos de reprodução dos escravos do núcleo urba- no central de Belém entre os anos de 1810 e 1888, focalizando um dos componentes mais im- portantes da dinâmica demográfica: a fecundidade. Tendo em mente a pouca interação que es- sas regiões mantiveram com o tráfico – atlântico e interno – de escravos, acreditamos ser a fe- cundidade, um elemento-chave para a compreensão das formas pelas quais a população cativa do núcleo urbano central de Belém se reproduziu; isso sem desconsiderarmos, naturalmente, o impacto de outros fatores nas suas formas de reprodução. O primeiro indicativo da importân- cia dessa reprodução, parece-nos ser o elevado percentual de crianças escravas e ingênuas en- contrado em nossa amostra. Na TABELA 4.9 proporcionamos esses percentuais, os percentuais de mulheres com 15 ou mais anos de idade e, também, os respectivos valores para a razão cri- anças-mulheres,380 todos aferidos em relação às diferentes faixas de tamanho de plantel consi- deradas e em relação aos três períodos de observação:

380 A razão crianças-mulheres é uma variável proxy da fecundidade das mulheres escravas, bastante usada em es-

tudos sobre a escravidão, que tem como fonte as listas nominativas e os inventários post-mortem. A razão refere- se ao número de mulheres em idade reprodutiva (15-49 anos) existente para o número de crianças (0-9 anos), ve- zes 1.000. As faixas etárias adotadas para as mulheres em idade reprodutiva e para as crianças variam de pesqui- sa para pesquisa. Sobre os limites da utilização dessa variável proxy, para a análise da fecundidade cativa a partir de inventários post-mortem, reproduzimos a crítica de Heloísa Teixeira: “é preciso ressaltar que os índices aferi- dos podem ser considerados uma proxy grosseira da fecundidade [...], já que os inventários post-mortem não nos permitem conhecer as porcentagens de crianças e mulheres férteis que morreram ou migraram antes de sua aber- tura”. cf.: TEIXEIRA, Heloísa Maria. Família escrava, sua estabilidade e reprodução em Mariana (1850-1888), op. cit., p. 181.

TABELA 4.9

DISTRIBUIÇÃO DAS CRIANÇAS ESCRAVAS OU INGÊNUAS E DAS ESCRAVAS ADULTAS SEGUNDO

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