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A presença da arte: o desenho e a música

A arte, na forma da construção de desenhos livres e da música, se fez presente em nossas práticas, que se mostraram ricas fontes de expressividade e aprendizagem.

3 Registro das bolsistas.

Se as instituições educativas e seus profissionais compreendessem os trabalhos da criança e sua capacidade expressiva como criação/recriação de sua realidade estariam não só valorizando a produção, mas contribuindo para o fortalecimento da luta pela expressividade, pela legitimação de uma cultura. (LEITE, 2003, p. 91)

O desenho mostrou-se um recurso rico em informações para o entendimento do universo das crianças e como mais uma maneira de revelarem conteúdos psíquicos, após as brincadeiras vividas. Por meio do desenho, a criança fala de si e do mundo. O desenho também se revela em seu potencial socializador, na medida em que a criança nunca desenha sozinha e sim para o outro e com o outro. Essa forma de expressão ganhou espaço significativo nas nossas práticas, por ter se mostrado um interlocutor entre nós e as crianças, uma vez que constata- mos maior desenvoltura na oralidade delas, quando tinham o desenho como “suporte” das falas, que registrávamos, desempenhando o papel de escribas.

De acordo com Araújo (2002), quando a criança desenha, cria um modo simbólico bas- tante expressivo de manifestar seus pensamentos, uma vez que sua produção está repleta de sentido e significado.

O desenho proporciona ainda a expressão, a criatividade, o desenvolvimento da coorde- nação motora fina, as capacidades de atenção e concentração. Segundo Lacerda (1995), ele também contribui para o desenvolvimento da linguagem oral, ao oportunizar a construção de narrativas importantes para sua estruturação.

A integração entre os aspectos sensíveis, afetivos, estéticos e cognitivos, bem como a promoção da interação e da comunicação social, conferem caráter significativo à linguagem musical. Assim como o desenho, é mais uma importante forma de expressão humana, o que por si só já justificaria sua presença no contexto da escola, e particularmente na educação infantil. (BRASIL, 1998)

A música foi um elemento que permeou nossas práticas. Já no nosso primeiro encontro, ficamos surpresos com o poder que a música revelou, quando um dos alunos disse que que- ria cantar uma canção do grupo de palhaços Patati Patatá, foi um momento extremamente contagioso de emoção, alegria e união entre as crianças que, naquele momento, estavam na mesma sintonia. Outros alunos também exteriorizaram o gosto pela música.

Em uma de nossas intervenções, já cientes do gosto particular das crianças pela música, resolvemos fazer um círculo e cada um teria a oportunidade de cantar uma canção. Dentre os artistas escolhidos pelas crianças, estavam Ivete Sangalo, alguns grupos do pagode baiano e Patati Patatá. Para estimular a linguagem musical e atrelá-la ao trabalho, fizemos um resgate de músicas infantis, algumas envolvendo a temática dos direitos da criança e outras cantigas de roda, de conhecimento das crianças, como “baratinha” e “alecrim”.

Nas atividades envolvendo desenho, ambientamos o espaço com música, num volume mais baixo, de modo a criar uma atmosfera mais tranquila e propícia à criação. Sempre que podiam, lá estavam eles, próximos ao som, cantando, dançando e desenhando.

Assim, fica o aprendizado da necessidade da escola e dos educadores de explorar o potencial criativo das crianças, estimulando o movimento, a partir de diversos gêneros musi- cais, que extrapolem os presentes em suas culturas, como uma forma de proporcionar acesso também aos clássicos. Do mesmo modo, estimular o desenho livre, em lugar de um desenho pronto, pobre em recursos imagéticos e baseado em padrões adultos, que limita o potencial expressivo da criança, fazendo até mesmo com que esta crie um bloqueio ao desenho, para não correr o risco de frustrar as expectativas do adulto. Adulto este que, na maioria das ve- zes, espera que o desenho da criança se aproxime dos padrões reais, quando sabemos que o desenho é, para a criança, a porta de entrada em um mundo de sonhos, do possível e do impossível – o mundo das possibilidades.

Considerações finais

O movimento de ação-reflexão esteve a todo tempo atrelado à essência do nosso traba- lho. Por isso, antes da ação, num primeiro momento, sentimos a necessidade de conhecer um pouco mais a realidade dos sujeitos com quem iríamos compartilhar saberes, de modo que nossas práticas os tocassem. Num segundo momento, de posse de algumas informações, fomos conduzindo nossas práticas, sem deixar a reflexão de lado, replanejando sempre que necessário. E daí em diante seguimos nesse movimento de refletir, planejar, agir, replanejar, enriquecendo nossa ação e estreitando os laços com as crianças.

Tendo o ECA como suporte, pudemos trabalhar temas como identidade, os direitos e os deveres da criança, violência e abuso sexual de crianças e adolescentes, trabalho infantil. Porém, o que consideramos de mais relevante foi privilegiar a possibilidade das crianças vi- venciarem sua condição de ser criança. Nos nossos encontros, priorizamos a voz das crianças, as opiniões, seus movimentos, suas brincadeiras, sem deixar de trabalhar a construção de limites, porém sem opressão.

Esbarramos, em muitos momentos, com a desfavorável estrutura física e espacial das escolas, sem área de lazer para as crianças, salas de aula pequenas e mobiliário inadequado, confirmando que esse espaço continua sendo um lugar que secundariza a brincadeira, as práticas corporais, a possibilidade das crianças se relacionarem com seu próprio corpo, com o outro e com o mundo.

A instituição escolar parece ainda carregar as marcas de uma tradição que continua a secundarizar as questões ligadas ao corpo e ao movimento, ignorando sua importância no desenvolvimento infantil. A organização do ambiente escolar reflete uma busca incessante pela disciplina dos corpos, quando da arrumação das salas e o agrupamento de carteiras individualizadas e enfileiradas, além da própria estrutura física e espacial das escolas, que não oferece possibilidades de trabalhos envolvendo o corpo. É difícil acreditar que escolas que têm como público alvo as crianças careçam de espaço e atividades, para o brincar, o descobrir as dimensões do próprio corpo e sua relação com o outro. Contudo, conseguimos possibilitar às crianças a experimentação de alternativas de aprendizagem em sala, cons- truindo outro olhar sobre o movimento no espaço escolar, não como transgressor, mas como uma dimensão múltipla, repleta de sentidos e significados. Buscamos outros modos/formas de nos relacionarmos no espaço, em busca de um ambiente que favorecesse a expressão oral e o exercício da escuta; a elaboração participativa de regras, a construção da autonomia e a definição clara dos direitos e deveres de todos.

A escola é um lugar onde a relação com o conhecimento ocorre de forma diferenciada dos demais. Através de conhecimentos sistematizados, os sujeitos se apropriam de certas habilidades e saberes historicamente construídos. Nesse espaço, a brincadeira normalmente é negada e, quando utilizada, obedece a fins puramente didáticos.

A brincadeira apresenta-se como uma prática completa, na medida em que envolve não só aspectos lúdicos, mas também cognitivos. Pela brincadeira, as crianças usam a imaginação, exercitam o pensar, o falar, socializam com as outras crianças ou até mesmo com adultos, aprendem a lidar com regras, de modo que através da brincadeira constroem sentido para o mundo e suas relações. Por também possuir um caráter simbólico, surgem, no movimento do brincar, as práticas sociais das crianças, desvelando suas histórias nesse universo conflitante das relações sociais.

Foi nesse sentido que investigamos as práticas sociais que faziam parte do cotidiano das crianças, através da promoção das rodas dialógicas e do jogo simbólico (de imaginação ou imitação), cientes de que a criança tende a reproduzir nesses jogos as atitudes e as relações predominantes em seu meio ambiente. Através da conduta lúdica, a criança expressa e integra as experiências já vividas, o que nos permitiu uma aproximação, a construção de vínculos com elas e que se apropriassem dos conceitos que trabalhamos.

Obtivemos grandes vitórias com o trabalho a partir dos princípios do ECA. A democracia só se realiza efetivamente a partir da participação. Portanto, em nossa experiência, aprende- mos e ensinamos a participar, participando, assim pudemos oferecer condições e situações para que todos pudessem opinar, recusar, concordar e propor. A partir dessa experiência de convivência, vimos crianças, que tinham na agressividade a única forma de expressar suas insatisfações e de se relacionar com os outros, direcionarem essa força natural do ser humano a sua face positiva e construírem atitudes de respeito e solidariedade. Observamos, também, a elevação da autoestima, a melhora no convívio do grupo, o entendimento acerca de seus direitos e deveres e o desenvolvimento da capacidade de se expressar, das mais diversas formas, seja por meio do desenho, da música, do teatro, da dança, dando, assim, o primeiro passo para a construção de ações cidadãs.

Estão envolvidos na construção do “eu” infantil, a família e o educador, que, assim como a primeira, acaba sendo um interlocutor da criança, com as suas experiências de mundo, dando a elas sentido e significado. Assim, vimos que, quando nos propomos a valorizar o que a criança traz consigo para a sala de aula, damos significado e valorizamos seus conhe- cimentos. E para que esta construção se efetive e seja cada vez mais frutífera, é preciso que

as partes em questão assumam uma postura de aceitação dos pensamentos, sentimentos e valores pessoais da criança, mantendo boas expectativas em relação ao seu desempenho.

A escola precisa saber quem é o sujeito do conhecimento com quem ela se relaciona e de que lugar este sujeito fala, de modo a não reproduzir, na vida dessas crianças, a lógica dominante e perversa de estigmas, preconceitos e mais violência. Em lugar disso, a escola necessita se aproximar da comunidade, como forma de criar um laço identitário entre sujeito/ comunidade/escola, fortalecendo esta tríade e validando saberes e culturas próprias desses lugares.

“O trabalho do grupo do ECA na Escola Vivaldo da Costa Lima tem sido de grande importância. No decorrer das intervenções, pude observar as contribuições que o trabalho realizado pelas bolsistas deste grupo trouxe aos nossos alunos. As acadêmicas têm trabalhado com valores, cidadania e conscientização, buscando, desta forma, resgatar a autoestima das crianças, por meio de atividades lúdicas e dinâmicas nas quais envolveram e despertaram o interesse de toda a turma. Em opor- tunos momentos, o trabalho dos alunos do 1° ano é apresentado por toda a escola, como forma educativa de conscientização dos direitos e deveres de todas elas. Este trabalho sério, afetivo e profissional das bolsistas do ECA tem ajudado, não só as crianças quanto a todos nós educadores desta unidade escolar, ainda que de forma simples, mas que podemos sentir que as sementes já estão lançadas para o resgate da cidadania”.4

Fica a nossa contribuição, uma semente plantada com bastante amor, dedicação, pesquisa e doação. No intuito de ver um dia a criança ocupar a importância que merece como cidadã, sujeito de direitos, não só no espaço escolar, mas nas outras esferas sociais.

Este texto é nossa contribuição formalizada, para dar suporte à memória e não apagá- -la. Que as reflexões e experiências escritas aqui sejam mais uma fonte de estudo e reflexão sobre a alfabetização da infância, construídas por um grupo de pesquisadores e estudantes bolsistas em iniciação à docência, que estão na prática cotidiana registrando e socializando suas experiências.

Referências

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