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2.2 HUMANIZAÇÃO E VÍNCULO NO ATENDIMENTO EM SAÚDE

2.2.1 O processo de cuidado em saúde

De acordo com Merhy (2002), no âmbito da saúde o objetivo principal não é a cura, nem mesmo a promoção e a proteção da saúde; o objeto primordial é a produção do cuidado, que traz como conseqüência estes aspectos. Muito embora, ressalta o autor, ao vivenciar um contato mínimo com os serviços de saúde, sejam eles quais forem, se pode afirmar que esta finalidade nem sempre é desempenhada de modo adequado.

A construção do cuidado em saúde perpassa por condutas do profissional e do sujeito envolvidos nesse processo. Merhy (2002) afirma que no encontro entre um trabalhador de saúde e um usuário, em que a condução é dada pela produção dos atos de cuidar, é estabelecido entre eles um espaço interseçor, que passará a existir em cada encontro no qual seja este o propósito. O espaço interseçor pode ser imaginado como o espaço comum que se dá na interseção de dois conjuntos. O autor aponta que na análise de um processo de trabalho onde houver o encontro entre profissional e usuário, se faz importante verificar o tipo de interseção que foi constituído e os diferentes motivos que se produziram no seu interior. Nos trabalhos em saúde, nos quais os atos realizados são de assistência ao usuário, acontece uma interseção partilhada, segundo Merhy (2002).

De acordo com Pessini (2004, apud BARBOSA; SILVA, 2007) para que exista um cuidado de modo humanizado, o profissional de saúde deve desenvolver a capacidade de compreender a si próprio e ao outro, de forma que venha a aplicar esse conhecimento nas suas ações, se conscientizando dos valores e princípios que as respaldam. No processo de trabalho em saúde acontece um encontro entre o agente produtor, o qual está munido com seus conhecimentos e equipamentos no geral, e o agente consumidor. Este, de certo modo, torna-se objeto do produtor, mas sem perder o lugar de agente, que também coloca suas intencionalidades, conhecimentos e representações e os expressa na forma de sentir e elaborar suas carências em saúde. O agente consumidor, ou seja, o usuário, vai em busca de um produto ou finalidade que é a saúde, a qual é recebida pelo sujeito com um valor de uso, uma vez que, é utilizada e vista como algo que o permite estar no mundo e poder contemplá-lo. (MERHY, 2002).

Segundo Merhy (2002), a totalidade das ações em saúde, representadas pelos procedimentos, acolhimentos e responsabilizações, produzem os atos de saúde que podem intervir de forma cuidadora sobre os problemas de saúde dos usuários. Com a produção do

cuidado os problemas enfrentados sofrem uma alteração, podendo resultar em cura, promoção ou proteção da saúde e deste modo, gerar a satisfação das necessidades dos usuários (MERHY, 1998). O ato cuidador dos profissionais, expresso pela aproximação aos usuários e suas dificuldades em saúde apresentadas, promove uma intervenção ativa capaz de se tornar um agente transformador para a promoção e prevenção em saúde. O exercício da vinculação entre trabalhadores em saúde e usuários pode desempenhar um papel importante no processo de gestão do cuidado entre ambos.

Franco e Merhy (2006, p. 3) explicam que existem dois tipos de trabalho. O trabalho vivo em ato, que se concretiza e é utilizado concomitantemente ao momento da sua execução e o trabalho morto, aquele que é realizado anteriormente e apenas se contempla o seu produto. Os autores afirmam que na produção em saúde, ocorre o trabalho vivo em ato, ou seja, “o trabalho humano no exato momento em que é executado e que determina a produção do cuidado”. O trabalho vivo se relaciona a todo o momento com instrumentos, normas e máquinas, resultando em um processo de trabalho que interage com diferentes tecnologias e assim, atribui sentido para a produção do cuidado. O trabalho em saúde é mediado por tecnologias e a maneira como elas são ajustadas pode determinar se serão caracterizados processos mais criativos, os baseados nas relações ou em processos amarrados nos instrumentos.

Merhy (1998), em seus estudos acerca do trabalho em saúde aponta para três dispositivos tecnológicos que operam no processo de cuidado entre trabalhador e usuário. A inter-relação adequada entre eles constitui um serviço de saúde satisfatório. A noção de tecnologia a qual é referenciada pelo autor vai além do conceito utilizado comumente, pois ultrapassa a idéia de máquinas e equipamentos. Merhy (2002 p. 45) entende por tecnologia “certos saberes que são constituídos para a produção de produtos singulares, e mesmo para organizar as ações humanas nos processos produtivos, até mesmo em sua dimensão inter- humana.” As tecnologias de cuidado que perpassam o contato entre os trabalhadores e os usuários em saúde são as duras, leve- duras e leves.

As tecnologias duras envolvidas no trabalho em saúde são os instrumentos utilizados pelos trabalhadores, dizem respeito ao conjunto de máquinas usadas como as de raios-X, os diferentes aparatos para a realização de exames de laboratórios, instrumentos específicos como pranchetas, termômetro, etc. Esses acessórios se fazem importantes como formas de auxílio na obtenção de diagnósticos e planejamento das ações necessárias para a intervenção sobre os usuários. As tecnologias leve-duras tratam dos saberes bem estruturados que operam especificamente de cada área profissional durante o processo de trabalho,

diferenciando os saberes dos médicos, dos dentistas, dos enfermeiros, dos psicólogos, etc. Merhy (1998, p. 5) as nomeia de leve-duras, pois,

é leve ao ser um saber que as pessoas adquiriram e está inscrita na sua forma de pensar os casos de saúde e na maneira de organizar uma atuação sobre elas, mas é dura na medida que é um saber-fazer bem estruturado, bem organizado, bem protologado, normalizável e normalizado.

E por fim, podem operar no processo de trabalho em saúde as tecnologias leves. No contato entre profissional e usuário ocorre um processo de relações, ou seja, um encontro entre duas pessoas que se influenciam mutuamente. Nesta interação ocorrem momentos de falas e escuta, momentos de acolhimentos ou não das expectativas colocadas pelas pessoas, momentos de cumplicidade que dão origem a vínculos e co-responsabilizações em torno da dificuldade a ser enfrentada. A tecnologia leve opera com base na constituição de relações de vínculo, acolhimento, autonomização e co-responsabilidade que se dão no processo de trabalho. A articulação adequada entre os diferentes tipos de tecnologias de cuidado podem resultar em maior defesa da saúde e da vida do usuário, maior controle das ameaças de adoecimento ou aos agravos do problema e a geração de práticas que possibilitam ao usuário maior grau de autonomia na sua maneira de viver (MERHY, 1998).

Os autores Lacerda e Valla (2004 apud PIMENTA, 2006) concordam ao dizer que o cuidado em saúde deve somar o ato de acolher, o vínculo e a escuta atenta aos usuários, pois ainda que os profissionais se percebam incapazes de solucionar o problema em questão, o ato de cuidar pode ser assertivo na diminuição dos impactos do adoecimento. Pereira e outros (2010) atribuem o cuidado no âmbito da saúde ao respeito à singularidade e dignidade humana, englobando o compromisso e a valorização do ser humano como um ser integral, favorecendo deste modo o vínculo entre o cuidador e o ser cuidado. Pimenta (2006) ressalta que a subjetividade do profissional e o estabelecimento do vínculo com os usuários são aspectos determinantes no processo de cuidar e produzir saúde. A autora aponta ainda, que o usuário é o principal motivo de existência dos serviços de saúde e por isto a responsabilidade de promover um cuidado acolhedor, um cuidado que possibilite vínculo e responsabilização. Priorizar maior interação com o usuário possibilita a ampliação do cuidado e a aproximação da perspectiva de assistência integral ao sujeito. Sendo o cuidado a execução de atos que visem a restauração da saúde, o vínculo entre profissionais e usuários pode provocar maior comprometimento em executar ações que sejam resolutivas, fortalecendo a responsabilização de ambos no processo.

As mudanças geradas nas formas de produção de saúde perpassam pelas diferentes ferramentas de produção do cuidado. Entende-se por ferramentas a composição de diversos saberes que são colocados em prática na produção dos atos de saúde. Para os profissionais que se baseiam em tecnologias duras, ou seja, nas máquinas, a evolução ou reestruturação do modo de produzir cuidado é percebida no avanço dos equipamentos, quando se dá a substituição por outros com mais capacidades. Estes profissionais vêem este processo como possibilidade de inovações no processo produtivo. Já os que acreditam que a reestruturação produtiva vai além da tecnologia dura, percebem como fios condutores de mudanças a construção de novas maneiras de construir os saberes clínicos, ocasionando deste modo, novos mecanismos para a produção do cuidado; estes operam sobre as tecnologias leve-duras. Os que vêem reestruturação produtiva de cuidado para além dessas duas formas de tecnologias reconhecem na relação interseçora, que se estabelece no ato de produção de cuidado, um espaço para a ação tecnológica em saúde. Sendo assim, a reestruturação produtiva é ampliada para além do que é visto tecnicamente como parte do ato produtivo, implica em mudanças no modo de gerir e executar o processo de cuidado em saúde (MERHY, 2007).

O contato do profissional com o usuário vai ser estabelecido conforme as concepções que este detém acerca do processo de cuidar. A maior possibilidade de efetivação de um cuidado integral a saúde está, sobretudo, nos que orientam suas práticas nas tecnologias leves, a qual reconhece na relação de vínculo com o sujeito mecanismos que podem ser favorecedores. Para os usuários, estabelecer um contato com os profissionais baseado nas relações, pode parecer também mais propulsor para o desenvolvimento de uma maior atenção a sua saúde, podendo deste modo, estimular uma participação mais efetiva neste processo.

Merhy (1998) enfatiza que todos os trabalhadores que exercem suas funções em ambientes de saúde apresentam potenciais cuidadores, ou seja, todos podem atuar sob a perspectiva das tecnologias leves, sejam os próprios da área da saúde ou aqueles que atuam no apoio a esses espaços, como os vigilantes, cozinheiras, entre outros. Na visão do autor, a produção de cuidado não está atrelada apenas ao diagnóstico, prognóstico ou à cura de uma disfunção biológica. Envolve também um espaço de desenvolvimento de relações e intervenções, que acontece de modo partilhado, no qual existe uma interação entre as necessidades apresentadas e modos tecnológicos de ação. Embora entre os trabalhadores existam ações distintas de trabalho, cada qual com a sua competência, o exercício da tecnologia leve é comum a todos, o qual oportuniza, sem distinção, a execução de acolhimento, produção de momentos de falas e escutas e o desenvolvimento de vínculo.

Quando a prioridade dos profissionais é o estabelecimento de relações com o usuário, aumenta a possibilidade de oferecer um cuidado mais voltado para a integralidade, uma vez que os procedimentos adotados por todos os profissionais passam a centrar no usuário.

Merhy (1998) aponta que para um modelo centrado no usuário e comprometido com a defesa da vida, torna-se necessário um reordenamento das relações estabelecidas entre as tecnologias praticadas na produção de cuidado. Considerando que a tecnologia leve não é específica de nenhuma área profissional, esta deve servir de base para a atuação de todos os trabalhadores em saúde. O autor afirma que independente da função desempenhada, os profissionais enquanto produtores de atos de saúde devem ser considerados sempre como operadores de cuidado e para isso, deveriam ser capacitados de modo a atuar especificamente no âmbito das tecnologias leves, na forma de produzir acolhimentos, responsabilizações e estimular a criação de vínculos.

Na discussão acerca do cuidado perpassa a idéia de manutenção e promoção de saúde e prevenção de agravos que possam vir a comprometê-la. O processo de cuidado, quando operado por profissionais que baseiam suas intervenções nas tecnologias leves, ou seja, que priorizam as relações em ato, parece atingir em algum grau o usuário atendido e mobilizá-lo de modo promover uma diferente maneira de gerenciar sua saúde. Deste modo, torna-se possível pensar em atribuições plausíveis das influências da vinculação com profissionais cuidadores no modo do usuário operar o seu próprio cuidado em saúde.