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2 ESTUDOS CULTURAIS E VISUAIS EM MATEMÁTICA PARA SURDOS

2.4 Proficiência para o ensino da Matemática para surdos

Tem sido crescente a formação de surdos nos cursos de licenciatura em Matemática nesta década. Isso pode ser verificado mediante o aumento do número de inscrições de surdos nas instituições de ensino superior, como a Universidade Federal do Rio Grande do Sul e a Universidade Federal de Santa Catarina, que têm promovido o curso Letras-Libras, nesta década, responsável por aumentar a escolarização dos surdos em nível superior. Assim, antes de criar-se um sinal, não convém saber primeiro se ele não existe? Se ele já não foi alvo de discussão de algum surdo, de algum professor de Matemática surdo?

Não é só na problemática da ausência do léxico que o professor pode esbarrar. Existem também as suas condutas perante as abordagens que hoje imperam, a citar a inclusão escolar e o bilinguismo das escolas de surdos. Condutas impostas por artefatos como a legislação, as adaptações curriculares, os livros, os referenciais para o ensino de surdos, as diretrizes escolares, dentre outros. No Brasil, mostro que os surdos defendem a ideia das

escolas de surdos e as EMEBS como melhores opções para o ensino dos surdos e refutam as escolas inclusivas. Já em Portugal, país que reestruturou escolas em um contexto de crise europeia, as EREBAS, escolas inclusivas por excelência, têm sido aceitas tanto pelas comunidades surdas como pelas associações de surdos.

Portanto, a emancipação de sinais da Libras e gestos da LGP acabam inevitavelmente por esbarrarem também nessas variáveis. Professores necessitam não só criar o léxico, mas também enfrentar barreiras de ordem administrativa, política ou cultural. Assim, Arnoldo Junior, Geller e Fernandes (2013) sugerem que, para ser proficiente em Matemática e educação de surdos, ou seja, ter as competências mínimas requeríveis para ensinar Matemática para surdos, compete ao professor observar alguns quesitos mínimos: 1) o processo de neologismo dos sinais e gestos da LGP, que será explicado no próximo capítulo; 2) que o professor domine o bilinguismo e o biculturalismo, ou seja, que saiba não só empregar duas línguas no contexto escolar, mas que saiba respeitar os aspectos inerentes às culturas surdas; 3) que o professor apreenda a pedagogia visual, ou seja, que o professor saiba que os recursos visuais não são uma forma de subjugar a capacidade dos surdos; 4) que surdos pensam por sinais/configurações de mãos, no caso do Brasil, e por gestos/configurações de mãos, no caso de Portugal, e ouvintes por palavras/fonemas. Isso pressupõe a existência de uma etnomatemática surda; 5) trabalhar de forma multicultural, entendendo que existem diferentes alunos, diferentes sujeitos, que há não uma diversidade de deficiências, mas de riquezas culturais; 6) que o professor empregue efetivamente as tecnologias, como as calculadoras, os tablets, a internet, dentre outros aparelhos, pois os sujeitos se comportam de outras formas e reinventam soluções empregando tais artefatos. A ousadia dos autores incluiu a proposição de que se pensasse em um currículo destinado ao ensino de surdos, um currículo surdo, um PCN – Parâmetro Curricular Nacional Surdo, como novas tensões, novas sugestões.

Para que esta abordagem não seja somente um recorte de um texto já trabalhado, dialogo estas perspectivas com outros autores da contemporaneidade. Convém salientar que Borges e Nogueira (2013) e Viana e Barreto (2014), autores que elenquei para esta triangulação, fazem parte de um rol que eu empreguei para uma análise a posteriori, ou seja, foram elencados após os dados coletados do campo. Lembro que este capítulo, ou categoria textual, decorre de uma das etapas da Análise Textual Discursiva (MORAES; GALIAZZI, 2007), a interpretação, que será explicada no capítulo “Conduzindo minhas condutas”.

Borges e Nogueira (2013) observaram quinze aulas de Matemática ministradas por uma ouvinte não usuária da Libras, numa escola de inclusão, onde estudam duas alunas surdas, que eram acompanhadas por intérprete de Libras. A turma era de 9º ano do Ensino Fundamental, composta por trinta alunos, sendo os demais ouvintes. Neste estudo, os autores analisaram o papel do intérprete nas interações, a forma como a professora conduzia os encontros e como os alunos respondiam às solicitações.

Como constatação primeira, verificaram que estavam ausentes sinais para denotar muitas das palavras. No caso de criação de sinais por ausência do léxico, como citam os autores, para o termo matemático “unidade”22, havia necessidade de se combinar este sinal previamente entre as alunas e a intérprete. Como muitas vezes os sinais tinham que ser criados nos contextos da tradução simultânea, a intérprete acabava empregando a datilologia, ou ato de soletrar com as mãos, de uma forma mais simplificada para substituir a expressão, neste caso U-N-I23 foi empregado para se referir a “unidade” em Português. Outra barreira foi encontrada quando a intérprete necessitou comunicar “área”. Sua decisão para criar um sinal foi “deslizar os dedos sobre uma região no espaço, como se estivesse preenchendo uma região delimitada por um retângulo” (BORGES; NOGUEIRA, 2013, p. 60).

A professora, chamada pelos autores de P1, disse empregar com turmas que tenham surdos elementos mais visuais, em detrimento a conteúdos explanados somente na forma escrita. P1 empregou em alguns encontros os materiais concretos, como a fita métrica e o material dourado. Corrigia os exercícios oralmente. À intérprete competia reescrever as respostas, que eram corrigidas e ditadas pela professora, nos cadernos,. Os surdos não conseguiam acompanhar as aulas como os ouvintes.

Para os conteúdos escritos no quadro, uma solução advinda da professora foi empregar o papel carbono. Cabia, portanto, a outros alunos copiar os conteúdos para dispor de uma via para as colegas surdas. A intérprete não conseguia sinalizar na mesma velocidade que a professora falava; assim, para alcançar a professora, realizava muitos cortes de tradução. Também havia barreiras no sentido de definir que posição a intérprete deveria ocupar na sala da aula (BORGES; NOGUEIRA, 2013). Em alguns momentos, a intérprete tinha que ir à lousa, para indicar a que elementos do quadro a professora estava se referindo. Elenco algumas constatações dos autores:

22 Os itens lexicais das línguas de sinais são denotados por termos em maiúsculo da língua portuguesa. Já no léxico da Língua Portuguesa, são escritos em minúsculo e entre aspas, para representar a significação.

1) ausência de interações entre ouvintes e surdos, havendo a impressão de que ocorriam duas aulas simultâneas;

2) grande parte dos questionamentos das alunas eram respondidos pela intérprete de Libras, cabendo muitas vezes a função de professor, tendo que conferir cadernos; 3) a fala da professora ouvinte não era pausada para possibilitar tempo para a

tradução;

4) ouvintes podiam copiar, ouvir e corrigir sem prejuízos pela explanação oral da professora, já os surdos perdiam grande parte das informações por estas serem intermediadas por intérprete;

5) flechas, gráficos, círculos eram empregados pela intérprete para ilustrar soluções de grande parte dos exercícios;

6) havia incoerências entre a escrita do quadro, o que a professora falava e o que a intérprete sinalizava, pois as informações orais complementavam muitas vezes a escrita do quadro;

7) a intérprete não conseguia ouvir muitas pessoas ao mesmo tempo e sinalizar todos os discursos que emanavam;

8) a intérprete tinha que tomar decisões em temas muitas vezes desconhecidos por ela;

9) nas atividades de leitura, os alunos desinteressavam-se pelo Português;

10) a existência de uma pseudo-inclusão, pois não há uma verdadeira inclusão neste mesmo ambiente;

11) as atividades desenvolvidas pelos professores privilegiam os aspectos visuais, que atingem todos os demais alunos: tanto alunos surdos como ouvintes podem manifestar barreiras em aprendizagem da Matemática.

Viana e Barreto (2014), buscando compreender a prática pedagógica da Matemática, observaram uma turma de 5º ano composta por alunos surdos e uma professora, ouvinte e pedagoga, não proficiente em Libras, chamada pelos autores de P1. Esta professora sabia alguns sinais da Libras, mas não era proficiente na língua e apoiava-se na oralidade para ensinar Matemática para os discentes. Trabalha em uma escola especial no Paraná, Brasil. Os autores buscaram entender as ações e reações, tanto dos alunos como da professora observada, durante a resolução de exercícios de adição e subtração, constatando que o ensino ficava restrito à resolução de algoritmos, mesmo que empregando imagens auxiliares a enunciados

adaptados para o contexto dos surdos. Os autores propõem para o ensino de Matemática para surdos que:

1) o professor empregue estratégias educativas contextualizadas, desenvolvendo atividades que envolvam o fazer matemático e tenham relação com o cotidiano; 2) a percepção visual não seja desprezada, pois os surdos são seres visuais;

3) os professores desenvolvam atividades em grupo, para desenvolver o saber- comunicar, o saber-pensar, o saber-buscar e o propor-soluções;

4) o ambiente seja rico em imagens visuais, recursos visuais e aspectos lúdicos; 5) sejam empregadas dicas visuais;

6) a aprendizagem não se dê por treino ou cópia de exercícios; 7) o intérprete jamais assuma funções reservadas ao professor;

8) os contextos educativos sejam entendidos como momentos privilegiados de “formação do professor” (VIANA; BARRETO, 2014, p. 123);

9) o professor tenha domínio pleno dos conteúdos a serem ensinados e privilegie situações-problemas e os recursos visuais, mas que levem os alunos a pensar sobre suas respostas e elaborar novos conhecimentos;

10) atividades que provoquem nos alunos aquilo que eles já sabem.

Extraio alguns excertos dos autores sobre depoimentos da professora P1 nesta investigação:24

A) A maior dificuldade do surdo é a leitura. O surdo tem preguiça, não sabe ler; não sei, mas

quando coloco um problema para eles resolverem já fazem logo o sinal: O QUE É?, querem que repassemos a pergunta em Libras. (VIANA, BARRETO, 2014, p. 66)

B) Eu acho que não preciso conhecer profundamente os conteúdos da Matemática. Porque sou

pedagoga. Assim eu teria que conhecer a fundo todas as matérias, já pensou? (VIANA,

BARRETO, 2014, p. 70)

C) A aprendizagem deve partir do concreto. O planejamento acontece, mas na maioria das vezes

é o plano B que funciona; eu tenho tudo à mão, o material dourado, notas de dinheiro, bloco lógico, vou usando, até que eles compreendam. (VIANA, BARRETO, 2014, p. 71)

P1 empregou caixas de fósforos, palitinhos, figurinhas, envelopes, recortes de revistas, bonequinhas de papel, desenhos esquemáticos, dentre outros materiais, para ensinar a adição, a subtração, a multiplicação e a divisão para alunos surdos. Não vou aqui analisar todos os depoimentos, nem todas as situações observadas pelos autores. Extraí algumas pistas que se remetem à minha Tese, de que ouvintes poderiam estar conduzindo condutas surdas. Uma professora ouvinte descrevendo a capacidade do surdo. Subjuga-os, apoiando-se em discursos da ordem clínico-patológica, pedagógica e linguística (THOMA, 2006).

Analisemos uma das questões propostas por P1: “de quantas meias 7 meninas precisam para alcançar os pés” (VIANA; BARRETO, 2014, p. 84). P1, como disseram os autores, distribuiu recortes de sete meninas em papel como apoio para que os alunos resolvessem o problema. Uma das alunas desenhou as bonecas e pediu que P1 corrigisse, pois, para a discente, desenhar as bonecas traria a solução do problema.

A falta de fluência em Libras por parte da professora P1, como observo, estava sendo de alguma forma compensada pelos materiais concretos. São algumas evidências iniciais de que o emprego impertinente ou contínuo dos materiais pode impedir que a língua, a Libras, seja praticada nos contextos interativos, minha Tese. Impede que a Matemática desenvolva- se, impede que o léxico matemático para os surdos amplie-se, já que há uma compensação de ordem sígnica, ou seja, empregar o concreto para substituir a Libras, dentre outros aspectos. Não estou condenando as ações de P1, mas dando visibilidade a outra forma de analisar os dados, tentando olhar sob a ótica do dominado.

Como se pode constatar, as competências mínimas para um professor ensinar matemática para surdos vão além da formação acadêmica de um curso de graduação. Existem outros elementos dos quais os professores devem apropriar-se. São as condutas, as práticas que “[...] podem chegar a engendrar domínios de saber que não só fazem aparecer novos objetos, novos conceitos, novas técnicas, mas também fazer nascer formas totalmente novas de sujeitos do conhecimento” (FOUCAULT, 2002, p. 8). Muitas propostas colocam em circulação discursos que se instituem como verdades, que são assumidos por muitos sujeitos como verdadeiros, passando a conduzir os seus modos de ser e de agir.

O paradigma da visualidade, com o uso disseminado dos recursos visuais, em vez de proporcionar avanços, pode constituir-se em barreiras para a aprendizagem (ARNOLDO JUNIOR; RAMOS; THOMA, 2013). Isso foi recorrente em ambos os casos. As professoras empregaram materiais concretos, porém não souberam como trabalhar efetivamente com estes recursos. Enxergo o paradigma, vejo que adaptações, o(a) visual(-idade), eram

discursividades que satisfaziam ouvintes, como uma forma de compensação de sua insegurança frente ao domínio da Libras. Complexidade que não pode ser desprezada, principalmente pelo fato da inclusão como estratégia biopolítica do governo, ter alocado o surdo a ouvintes e pessoas com deficiências ou necessidades educativas especiais, como se o ensino da Matemática fosse universal e homogêneo frente à heterogeneidade de pessoas.

Em Borges e Nogueira (2013), há o entendimento dos autores que os aspectos visuais são positivos tanto para ouvintes como para surdos, ou seja, que os aspectos visuais propostos para o ensino sejam os mesmos empregados para surdos, evitando subjugamentos de capacidades surdas. O que quero dizer com isto? Que muitas vezes professores de Matemática para surdos deixam-se ser conduzidos pelos discursos que aí circulam, que são tomados por eles como verdadeiros, mesmo nunca estes professores tendo experimentado antes como seria lidar sem estes discursos, ou lidar com eles de outras formas. O paradigma da visualidade acaba por conduzir condutas. O professor é seduzido por algumas verdades, assume outro comportamento sob o efeito dessa conduta. Há uma relação colonial, de uma maioria ouvinte frente a uma minoria surda.

Por conseguinte, acredito que não há como o professor (do rol da maioria ouvinte) dar conta de todos estes requisitos, principalmente aquele professor recém-formado. Evitando qualquer generalização, minhas condutas não são no sentido de ir contra as que já estão impostas aos professores de Matemática em suas escolas, mas vão ao sentido de oferecer alguns subsídios para que eles possam querer ser conduzidos de outras formas, refletir sobre suas práticas, ou seja, “escapar da conduta dos outros, que procura definir para cada um a maneira de se conduzir” (FOUCAULT, 2008c, p. 257). Faço algumas pequenas provocações.

Ressalvo que no caso dos alunos (do rol da minoria surda), como veremos, estes indivíduos eram considerados inferiores aos ouvintes e não tinham opções. A eles eram impostas formas de dominação. Quando diferencio em rol de sujeitos, não quero que isso seja compreendido como uma classificação binária, mas que seja entendido que existe um elo de dominação entre duas comunidades diferentes. Infiro que exista, nesta corrente, exercício de poder de ouvintes sobre os surdos. Poder que durou até 1980, quando a escolarização dos surdos

passou a ser pensada a partir da concepção da surdez como uma diferença linguística e cultural, que uma vez reconhecida, tem mobilizado as lutas em prol de uma educação bilíngue, não mais uma educação especial que investe apenas em processos de normalização pelo aprendizado da língua da maioria ouvinte (ARNOLDO JUNIOR; RAMOS; THOMA, 2013, p. 390).

Não estou dizendo com isto que o poder de dominação dos ouvintes tenha acabado. Para entender a produtividade do poder colonial, temos que antes entender como se constituíram os regimes de verdade, antes de submeter suas representações a julgamentos (BHABHA, 2001). No capítulo a seguir, elenco o neologismo dos sinais da Libras e da LGP, processo que está intimamente ligado à história dos surdos e de seus artefatos.

Entender como foi construída a identidade surda ao longo dos anos, como os professores ouvintes e surdos relacionavam-se, que tecnologias eram empregadas para o ensino e a aprendizagem, as competências, os avanços e retrocessos, as tentativas de normalização, que materiais para ensinar Matemática os professores empregavam ao longo das épocas, como os conceitos matemáticos eram comunicados e como são nos dias de hoje, dentre outros aspectos, são abordados. Enfim, uma analogia da emancipação, das condutas, das condutas de condutas que procuro visibilizar com vistas a emergir algumas evidências para que se possa prosseguir com a analogia da emancipação.

3 NEOLOGISMO EM MATEMÁTICA: A GÊNESE DA EMANCIPAÇÃO DE SINAIS