• Nenhum resultado encontrado

APÊNDICE I: ENTREVISTA ESCOLA LILÁS (23.10.2012 PORTUGAL) Elaborei este protocolo com base nas hipóteses e questões de pesquisa, descritas na seção 1

RF 09 FOTO 01-15.06.2012 Fonte: a pesquisa.

5.4 Reunião sobre pareceres descritivos (25.11.2012)

Na escola VERDE, em 25 de novembro de 2012, final do ano letivo, participei de uma reunião sobre parecer prescritivo, como observador. Ressalvo que VERDE não é escola inclusiva, mas uma escola de surdos. No que tange a avaliação, um mecanismo inclusivo operava em seu interior: a prescritividade. Exames, provas, testes, trabalhos, enfim, como avaliar surdos? Como o professor pode elaborar os instrumentos empregados para analisar o rendimento de surdos? Como eu mesmo avaliei os alunos durante minha docência na escola VERDE? Estas foram algumas questões que me perseguiram desde 2003 até 2012.

Presenciei nestes anos todos entre os professores, gestores, e demais funcionários, a discursividade das Dificuldades de Aprendizagem, abreviadas por DA. Estavam falando nesta reunião sobre elas. DA faz parte do discurso clínico-patológico (THOMA, 2006), que expliquei no capítulo 2. Diagnósticos e padrões de normalidade são esperados dos alunos para caracterizá-los como aprendentes ou não-aprendentes.

Observei na reunião que os professores falavam a respeito dos seus alunos. Por que não atingiam a média, alunos hiperativos, alunos com DA, mau comportamento, alunos que não sabiam ler, escrever, tinham dificuldades em Matemática, Português, dentre outras qualidades atribuídas para justificar os fracassos dos alunos. Busco na história contextos que permitam afirmar que documentos transformaram-se em monumentos (FOUCAULT, 2008c),

verdades de verdades, para poder elucidar os elementos que colocaram em circulação este saber-poder. Não há outra forma, necessito truncar o pensamento anterior.

Foi o relatório de Warnock (WARNOCK et al., 1978) que deslocou a deficiência para a concepção da Necessidade Educativa Especial (NEE). Este conceito em contexto mundial ganhou força com a Declaração de Salamanca (UNESCO, 1994), que impulsionou a discursividade da inclusão. No Brasil, foi movida pelo Documento Subsidiário da Inclusão (PAULON; FREITAS; PINHO, 2005). A inclusão veicula um regime de verdade, está presente em seus ditames, as Dificuldades de Aprendizagem. As DA focam-se sobre o rendimento dos alunos. Podem ser compreendidas sob a ótica de Garcia (1998, p. 31) como um “grupo heterogêneo de transtornos que se manifestam por dificuldades significativas na aquisição e uso da escuta, fala, leitura, escrita, raciocínio ou habilidades matemáticas”. Em Matemática, esta invenção é conhecida por discalculia.

Aquele aluno que não atinge o rendimento é visto como alguém a recuperar, a reforçar, a normalizar, a educar em um atendimento educacional especializado. A norma é a média, um ponto ótimo. É pelo exame que se “normaliza” os sujeitos (FOUCAULT, 2010a, p. 176). Este índice é empregado para comparar, diferenciar, homogenizar, hierarquizar, enfim posicionar sujeitos. Não atingindo a média são tratados como desvios à normalidade. Nesse sentido que se insere o atendimento especializado (BRASIL, 2011).

Avaliar é um ritual de poder, como menciona Foucault. “O exame supõe um mecanismo que liga um certo tipo de formação de saber a uma certa forma de exercício do poder” (FOUCAULT, 2010a, p. 179). Sob esse aspecto, podem os professores decidir o que é considerado apropriado para educar surdos, bem como qualificar aqueles que não atenderem aos quesitos que ele julgar apropriados. Que fatores, que elementos levaram os professores a escolher determinados conteúdos em detrimento a outros é problemática que os EC (SILVA, 1996) propõem-se a analisar. A inclusão não relaciona as variáveis que se relacionam ao ensino: domínio de conteúdo pelo professor, nível de língua que sabe sinalizar, conhecimentos de sinais específicos da Libras para o ensino da Matemática, dentre outros elementos. Foca-se sobre os aprendentes.

O que possibilitou desnaturalizar esta racionalidade, a lógica que engendra as DA e os pareceres descritivos, documento que mantém a manutenção da inclusão escolar, foi minha aproximação como disse em momentos anteriores, com o pensamento de Michel Foucault, os ECV. Nestes contextos entendo que os indivíduos podem ser construídos “dentro de um aparato de poder que contém, nos dois sentidos da palavra, um “outro” saber – um saber que é

retido e fetichista e circula através do discurso colonial” (BHABHA, 2001, p. 120), que Bhabha chama de estereótipo. Presenciei muitos estereótipos sendo ditos pelos professores quando estavam elaborando os pareceres dos alunos. A inclusão como um dispositivo faz veicular uma série de saberes técnicos. Emergiram muitas invenções com esta racionalidade para justificar os desvios. Muitos estereótipos se inventaram.

As DA associadas ao Sistema Nervoso Central receberam o nome de transtornos de aprendizagem. Hiperatividade, paralisia cerebral, tiques, deficiência intelectual, bipolaridade, dentre outras manifestações passaram a ser diagnosticadas não apenas por profissionais da saúde, mas também por profissionais da Educação. Grande parte dos transtornos pode ser tratada com medicação. Àqueles comportamentos voltados para o indivíduo, são ditos condutas típicas (BRASIL, 2002b). Cito a impulsividade, a timidez, o alheamento, os distúrbios de atenção, as recusas de verbalização, os gritos, as fobias, dentre outras.

Desde 2003 tenho ouvido este saber. Professores surdos e professores ouvintes falavam sobre o rendimento ou sobre transtornos e condutas típicas dos seus alunos, enfim, sobre as DA, conduzindo suas condutas com base nestas verdades. Está tão polida a engrenagem das DA que ela funciona em qualquer maquinaria escolar. Capturou todos na escola. Dificuldades de aprendizagem fazem parte do dispositivo da inclusão. Não basta apenas a média escolar. Alguns professores para expressar a avaliação passaram a empregar além do exame, uma inovação. Retomando o capítulo dos artefatos, a cada época se inventavam novos dispositivos para controlar o corpo dos surdos, o receptáculo da Ciência (GOMES, 2010). As DA conseguiram invadir até o ambiente natural dos surdos, as escolas de surdos, sequestraram seus alunos e professores.

Visando justificar os rendimentos não satisfatórios, passaram os educadores a materializar informações sobre as aprendizagens dos conteúdos, atitudes, relacionamento entre colegas e professores, dentre outros aspectos, em fichas chamadas pareceres descritivos (WANDERER; GUIMARÃES, 2010). Não apenas descrevem alunos, mas os prescrevem. Este instrumento coloca em circulação verdades sobre os alunos, sobre a escola, e classificam os sujeitos. Lembrando que o Estado necessita de dados, cada vez mais prescritivos e estatísticos para controlar a população dos indivíduos e divulgar medidas a adotar para manter este risco sob controle (LOPES et al., 2010).

Nesta seção, disse que opera a prescritividade no interior das escolas de surdos, movida pelo dispositivo inclusivo. Um de meus alunos de sexto ano estava tomando ritalina, uma medicação para hiperatividade. Presenciei não só a discursividade do dispositivo da

inclusão, mas também o controle do risco sobre os corpos surdos. Perguntei, durante o intervalo na sala de professores, para a vice-diretora, professora PATRÍCIA por que o aluno CARLOS estava tomando esta medicação? A gestora mencionou que estava prescrito em seu parecer a hiperatividade. Logo, receitado por médico era proposto para CARLOS ingerir a medicação para tratar a hiperatividade. Além disso, me foi solicitado perguntar para o aluno em suas manifestações, se havia tomado o remédio em casa, bem como para corrigir com flexibilidade os testes do discente no período das avaliações. Além das atividades docentes que já ocupam os docentes, percebo que estão sendo transferidas incumbências médicas aos professores.

PATRÍCIA agiu com normalidade frente a minha pergunta. Pensei que sob algum aspecto se mobilizasse com relação a minha conduta. Não foi o que ocorreu. Nada mudou. Depois da resposta da gestora, pensei comigo mesmo, o que é corrigir com flexibilidade? E tomar ritalina, será que é necessário mesmo? Havia dias que este aluno brincava com os colegas, em outros estava cabisbaixo, era perceptível quando vinha para as aulas sob o efeito de medicação. O remédio continha a impulsividade do aluno, diminuía seus movimentos físicos, mas afetava, e muito, o seu bem-estar nas aulas. Muitas vezes, CARLOS dormia. Ponho em tensão social uma prática que, para muitos, parece uma conduta natural, pois entendo que não é competência do professor saber quando o aluno deve ingerir medicação. Este caso é um dos exemplos que podem se instaurar como regime de verdade, que se perpetua com a inclusão.

No caso dos surdos, a problemática pode ter sido agravada pelo fato de a inclusão concebê-los sob a perspectiva da necessidade educativa especial, do atendimento especializado (BRASIL, 2011). Quanto tempo mais precisaremos medicar o aluno CARLOS? Quem terá coragem de dizer que ele agora está normal? Quem dirá que ele está sadio? Quem dirá que ele ainda está hiperativo? O professor, o médico, os pais, o psicólogo, o psicopedagogo, enfim, qual especialista?

Avaliei os meus discentes da mesma forma como avaliaria um ouvinte. Não há adaptações a fazer. Existem adequações, mas também não nos garantem a aprendizagem. Não eliciam poder de ouvintes bilíngues. Não colaborei nesta reunião. Nada disse sobre meus alunos. Como estagiário, pude agir a partir desta contraconduta. Penso como é com os professores efetivos esta relação? O desconforto de si com a inclusão que aí lhe foi imposta? Sabe-se que a inclusão está operando há vinte anos. No Brasil não tem dado respostas educativas para grande parte dos sujeitos surdos, mas seus agentes corroboram para que a

maquinaria continue funcionando. É imperativa a inclusão (PAULON; FREITAS; PINHO, 2005). Não há nada que possamos fazer? Algo posso afirmar. Professores são convocados a preencher pareceres. O processo educacional vigente é prescritivo.

Nesse sentido, não há como analisar diários sem remetê-los ao contexto histórico em que passou a pesquisa. Lembro o capítulo 3, que a educação de surdos no Brasil sempre tentou acompanhar as tendências mundiais: Oralismo (1911-1970), Comunicação Total (CT) (1970-1980), Bilinguismo (1980-1993, não se encerrou) e, paralelamente, a Inclusão Escolar (1993-atual). Os Estudos Culturais (EC) tiveram gênese no Brasil pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), por ensaios de Tomaz Tadeu da Silva (1995a, 1995b), voltados para a análise do saber-poder, principalmente por meio dos artefatos, nos discursos produzidos na contemporaneidade. Um deles, como se viu, a inclusão escolar.

Ingressamos em um dos terrenos mais tensos entre comunidades. Bhabha (2001) propõe-nos analisar o interstício. Neste caso, entre comunidade ouvinte e surda. Um governo hegemônico ouvintista que, por estratégias de governamento, (VEIGA-NETO; LOPES, 2007a) define a maneira como deve ser a educação de surdos. Exercer o poder pode decorrer de uma ação sobre ação (FOUCAULT, 1995). Houve interesse pelo corpo dócil surdo quando houve necessidade de convocar estes sujeitos para as redes de consumo: gerar arrecadação e impostos. “É dócil um corpo que pode ser submetido, que pode ser utilizado, que pode ser transformado e aperfeiçoado” (FOUCAULT, 2010a, p. 132). O corpo como objeto de poder, que se pode manipular, modelar, treinar, obedecer e responder, dentre outros.

Para ouvir a meia verdade de todos, o que cada um sente na relação com o outro, neste campo de tensões, é que procedo na seção a seguir a uma investigação breve sobre as políticas assistenciais do Governo, às quais todos nós estamos convocados, sejamos surdos ou ouvintes. Depois, remeto-me a uma análise das lutas surdas em prol do reconhecimento das suas comunidades nesse espaço de tensões.

5.5 Análise da entrevista de um surdo recém-formado pela escola de inclusão