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ora se prouuesse senhor de receberes cantares desta mui pobre peccador no conto e companhia das tuas seruas (213v)

ANÁLISE ESTEMÁTICA

80. ora se prouuesse senhor de receberes cantares desta mui pobre peccador no conto e companhia das tuas seruas (213v)

ora se prouesse senhor de receberes cantares desta muy pobre peccadora, no canto, e companhia de tuas seruas ora se provesse senhor de receberes cantares desta muy pobre pecadora, no canto, e companhia de suas servas Ora se prouvesse senhor de receberdes cantares desta mui pobre pecadora, no canto, e companhia de suas servas 81. escondia todo o seu talanto e a sua vontade (213v)

escondia todo o seu talento e a sua vontade escondia todo o seu talento e a sua vontade escondia todo seu talento, e a sua vontade

82. o padre non lhe ousou mais d’ementar tal cousa (214r) o Padre non lhe ouzou mais d’emental tal couza o padre nom lhe ouzou mais d’emental couza o Padre nom lhe ousou mais de mental couza

83. Dizendo sua ama estas cousas, esta santa virgem ascuitaua bem todo, e asentaua o na arca do seu curação (217r) Dizendo sua Ama estas couzas, esta sancta virgem a escuitaua muito bem, e tudo asentaua na Arca do seu curação dizendo sua ama estas couzas, esta santa virgem a escuitava muito bem, e tudo assentava na arca do seu curação Dizendo sua Ama estas cousas, esta santa virgem a escuitava muito bem, e tudo asentava na arca de seu coração 84. e desi tomou entom a aguoa (221v)

e disse tomou entõ a agoa e disse tomou entom a agoa e disse tomando então a agoa

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Em 80, a variante de EPG2, embora não seja agramatical (sem o confronto com G1 poderia facilmente ser interpretada como sinónimo de “acto de cantar”), tem necessariamente de ser um erro de cópia. Na verdade, essa variante é muito mais fácil de explicar como um desvio da lição genuína do que a de G1. Em primeiro lugar, em termos semânticos, G1 apresenta uma leitura mais adequada ao contexto do episódio narrado: “se a Deus desse prazer receber os cantares da santa na conta e companhia das suas servas”. Além disso, a variante de EPG2 pode perfeitamente ser uma lectio facilior motivada pela semelhança paleográfica entre as figuras minúsculas dos grafemas <a> e <o>, e até por influência do valor semântico do substantivo plural cantares copiado imediatamente antes. Nesse caso, estamos provavelmente perante um erro conjuntivo que prova a existência de α.

Em 81 há um evidente erro conjuntivo de EPG2, além de um erro em G1. Todos os testemunhos dependem do substantivo medieval talante que nenhum dos copistas seiscentistas (nem Mesquita, nem Azevedo) terá entendido. Sublinhe-se que, em Ω, a palavra ocorria numa duplicação redundante (o seu talante e a sua vontade), estrutura retórica muito comum e apreciada na literatura medieval, mas provavelmente pouco familiar a estes copistas. Derivado do latim < TALENTUM, talante significava em português medieval ‘vontade, desejo, gosto’ (cf. Lorenzo 1977) e só mais tarde se desenvolve para a variante culta talento, com significado de “aptidão natural (para)” (cf. Nunes 2005). Em 1606, Duarte Nunes de Leão inclui esta palavra na Origem da Língua Portuguesa como vocábulo antigo português cuja «interpretação» era preciso esclarecer (Leão 1975:302). Daqui é possível concluir que no século XVI o vocábulo já tinha caído em desuso. Os erros cometidos por G1 e α são ambas banalizações, com resultados diferentes. Enquanto o primeiro, mais conservador, como é habitual, se limita a tornar familiar a terminação da palavra (a determinação masculina do artigo e do possessivo antecedentes supõe um substantivo masculino, e a desinência de género masculino mais comum em português é –o), o segundo, mais imaginativo, como sempre, comete uma verdadeira lectio facilior que atribui significado e aparente coerência ao enunciado. Ficam, assim, evidentes, os dois ramos da tradição. Esta variante deve relacionar-se com outro lugar do texto onde G1 se comporta como neste lugar variante (talanto), mas α, que aqui tinha sido mais inovador, é absolutamente conservador e reproduz a lição correcta de Ω (talante), que transmite a G2, enquanto E e P cometem a mesma inovação de G1 (talanto). Isto apenas significa que, no lugar 81, α estava atento à cópia ao ponto de estranhar o vocábulo e tentar corrigi-lo, mas mais adiante na cópia estava menos atento e, consequentemnte, copia a forma antiga sem hesitação.

181 Em 82, G1 apresenta a lição genuína (dementar tal cousa) e os restantes três testemunhos apresentam três erros de copistas que se defrontam com um enunciado estranho e incompreensível (difficilior) por conter uma palavra em desuso – ementar, verbo do português medieval que significa ‘referir’, ‘mencionar’, do latim < EMENTUM + ar, e que se atesta pela primeira vez no século XIII (cf. Houaiss 2015 e Machado 1977), e apenas até ao século XV (v. Sobral 2012:172, nota 23). Assim, α deve ter sido o primeiro testemunho a errar. Como para Torcato de Azevedo a palavra já não significava nada, concentra a sua atenção na palavra seguinte, tal, a qual facilmente contamina a anterior com cuja sílaba se parece. Assim, α provavelmente memoriza demental tal cousa e, consequentemente, é isso que copia, cometendo um erro por atracção fonética entre os dois segmentos semelhantes, erro que transmite a E. Depois, P, para quem emental também não significa nada, comete outro erro de memorização, nomeadamente uma haplografia: demental couza. Por fim, G2 faz uma hipercorrecção do erro de α que será analisada adiante (v. capítulo III, p. 354).

Em 83 existem pelo menos duas variantes. Em primeiro lugar, G1 apresenta uma variante linguística antiga do verbo escutar, atestada no século XIII (cf. Machado 1977). É uma forma que, não existindo no século XVII de que data o apógrafo, tem necessariamente de ter sido copiada de um antecedente (Ω). Quanto à variante conjuntiva de EPG2, não sendo agramatical, denuncia uma evidente tentativa de actualização linguística e uma muito provável lectio facilior da variante do português antigo. Assim, é também provável que não seja a lição genuína, mas sim um erro motivado pelo facto de o copista de α (seiscentista) desconhecer a variante linguística ascuitava, e pelo facto de a variante facilmente sugerir a lição a escuitava (em que a seria um pronome clítico com referente em sua ama), perfeitamente aceitável na língua seiscentista.

Em segundo lugar, G1 tem uma variante que recorre ao pronome indefinido todo (forma antiga de tudo) para referir “aquilo que a santa escutava da sua ama”, utilizando depois o pronome clítico o associado ao verbo, e de forma a retomar esse objecto directo. Aqui EPG2 apresentam não só a intensificação em muito bem, como têm uma leitura diferente da relação entre o objecto directo tudo (forma actual) e o verbo: primeiro está implícito “o que ela escutava” e só depois há referência a esse complemento directo em tudo assentava. Devido à utilização da variante antiga todo em G1, e por analogia com o que acontece com a variante ascuitava e a escuitaua, é mais fácil aceitar que a ordem de palavras de EPG2 seja uma variante da lição genuína por reordenação. Essa reordenação explicar-se-ia facilmente devido ao erro conjuntivo em a escuitava, pois só é aceitável precisamente nessa formulação que terá levado α a interpretar o

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pronome a (“a ama”) como o complemento directo da oração, e a reinterpretar o indefinido tudo como um pronome que retomava o que dizia a ama.

Se ambas as variantes de EPG2 em 83 não parecem ser a lição genuína, provam a existência do subarquétipo α.

Em 84, EPG2 têm um erro conjuntivo, pois não há no contexto adiante nenhum discurso directo ou indirecto que justifique a utilização desta forma do verbo dizer. Trata-se de uma lectio facilior provavelmente motivada pela estranheza que o advérbio de tempo desi provocou em α. Além disso, a presença em G1 de uma forma linguística que já não estava disponível na língua do seu copista é argumento a favor da sua dependência do arquétipo, ao contrário de α, que a actualiza.

Por fim, existem ainda sete lugares onde EPG2 apresentam omissões acidentais conjuntivas que provam a existência de α.

A primeira delas ocorre no lugar 21 anteriormente analisado (v. p. 153). Aí G1 é o único que apresenta uma lição correcta, com um complemento directo expresso e indispensável ao sentido do texto: o medo. EP têm um erro evidente, uma lacuna onde falta um complemento directo para a forma do verbo “haver”. G2, apesar de diferir de EP e de não ser evidentemente agramatical, também não é uma lição narrativamente coerente porque o pronome o não retoma/antecipa qualquer substantivo anterior/posterior da oração, tornando o contexto igualmente incompleto. Já a variante de G2 explica-se facilmente como uma tentativa de correcção conjectural da agramaticalidade de um antecedente corrompido, cuja lição era igual à dos testemunhos E e P. Bastou que este copista reordenasse os elementos da frase para obter um enunciado gramatical, que apurou eliminando a duplicação redundante que α introduzira no texto. Assim, as variantes de EPG2 podem ser evidentemente consideradas um só erro conjuntivo que separa G1 de α.

Além deste caso, vejam-se outros dois lugares com omissões acidentais semelhantes:

85. com alegre coraçom e uontade taa o dia do Juizo (215r)