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A questão da abolição da escravatura nos EUA e sua relação com a visão de mundo dos missionários

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Até que ponto a mentalidade escravagista da Igreja do Sul influenciou nossos primeiros missionários? Isso se reflete no entendimento e na visão de mundo trazida pelos missionários que vieram para o Brasil. Observemos o texto abaixo, no que tange às datas dos eventos relacionados:

[...] a situação nos Estados Unidos cem anos após a abolição da escravatura através da chamada Emancipation Proclamation, promulgada a 1° de janeiro de 1863 pelo presidente Abraham Lincoln. Desde o início da colonização, em 1619, quando os primeiros escravos chegaram a Jamestown, os problemas da escravidão e a luta pela libertação dos negros marcaram a história dos EUA e, muitas vezes, dividiram a nação. Às vésperas da Guerra da Secessão (1861– 1865), 8 milhões de brancos e 4 milhões de negros (cerca de 500 mil livres) viviam no Sul dos EUA. A estrutura agrária servia de argumento para se afirmar a necessidade da escravidão na região. A discriminação racial era justificada pela crença na suposta desigualdade entre os seres humanos.

Estopim do conflito

Quando o Congresso proibiu oficialmente a importação de escravos em 1808, ninguém imaginava que as divergências entre o Norte industrializado e o Sul agrícola fossem se agravar tanto, a ponto de culminar numa guerra civil. A escravidão foi o estopim do conflito, mas suas causas foram um complexo emaranhado de fatores socioeconômicos e político-culturais. Na primeira fase do conflito, o Norte lutou pela unidade da nação e não pela abolição da escravatura. Tanto que o presidente Abraham Lincoln escreveu a um jornalista: "Se eu pudesse salvar a união sem libertar um único escravo, eu o faria". Ao ver que os nortistas não conquistavam vitórias decisivas, Lincoln aderiu às reivindicações dos republicanos radicais e abolicionistas, e transformou a guerra contra os "Estados rebeldes" numa luta contra a escravidão.

Proibição tardia

Os Estados do Norte vincularam ao Ato de Emancipação de 1° de janeiro de 1863 uma reestruturação do sistema social do Sul. Os negros passaram a ser recrutados pelo exército nortista, mas a proclamação de Lincoln não significou uma abolição institucionalizada da escravatura. Os 4 milhões de negros ainda tiveram de esperar até dezembro de 1865, quando o Congresso proibiu oficialmente a escravidão nos Estados Unidos através da 13ª Emenda Constitucional. Pelo artigo suplementar 14, os negros obtiveram direitos iguais aos brancos em 1868. Dois anos mais tarde, o artigo 15 garantiu-lhes a igualdade de direito eleitoral. Estados como Carolina do Sul, Mississippi e Louisiana, porém, deram um jeito de burlar os direitos dos escravos libertados, mantendo restrições legais, os chamados black codes. Alguns Estados e municípios, não só no sul dos EUA, encontram ainda hoje meios e caminhos para "manter o negro em seu lugar". Vinculam, por exemplo, o direito de votar a complicadas provas ou inatingíveis patamares de renda mínima (KLEFF, 2018, on-line, grifos nosso).

Em 1869, chegaram ao Brasil os primeiros missionários da PCUS (Igreja do Sul) para, a princípio, fazer missão seguindo os imigrantes do Sul dos Estados Unidos que vieram ao Brasil por causa da Guerra da Secessão. Como pensavam os imigrantes quanto à escravatura no Brasil?

De acordo com Silva (2010, p. 57), “o Presbitério do Rio de Janeiro, em 1886, posicionou-se contra a escravatura”, mas deve-se considerar que a região do Rio de Janeiro era de influência da PCUSA (Igreja do Norte).

Qual foi a reação a questões escravagistas na área de influência dos missionários oriundos da Igreja do Sul dos EUA (PCUS), notadamente no Presbitério de São Paulo? Silva esclarece:

Quanto aos missionários do sul dos Estados Unidos enviados ao Brasil e suas relações com a escravidão, há um silêncio inexplicável na literatura acerca de suas posturas e declarações sobre o assunto. Paulo Siepierski argumenta, ao lado de Reily, que os ‘missionários sulistas apreciavam o sistema escravista e se opuseram tenazmente às propostas abolicionistas’ (SILVA, 2010, p. 58). Silva prossegue em seu argumento, agora comentando a posição “curiosa” do historiador Émile Léonard:

Émile Léonard refere-se a alguns sulistas abolicionistas em sua obra O Protestantismo Brasileiro, porém não diz quem são. É curiosa a citação que faz de um documento dos batistas do Sul que apoia a abertura de um trabalho de evangelização sob a ‘Cruz do Sul’ e argumenta que ‘o Brasil tem escravos, e os missionários pela Convenção Batista do Sul não podiam sentir-se constrangidos a combater a escravatura’. Fica evidente que, no caso dos batistas, combater a escravidão era uma questão de ‘constrangimento’. Quanto aos presbiterianos, limita-se a relatar a localidade onde se fixaram e os trabalhos que iniciaram. Faz-se necessária uma avaliação dos resultados da Guerra de Secessão, em face das motivações que fizeram desembarcar no Brasil muitos norte-americanos sulistas no pós-guerra, estabelecendo-se inicialmente na região de Santa Bárbara d’Oeste, em São Paulo [...] Reily comenta que: ‘A superioridade demográfica e industrial do Norte, aliada ao idealismo gerado pela convicção de que se lutava pela libertação dos escravos, resultou na sua vitória sobre o Sul, na reintegração dos estados sulistas à União e no fim da escravidão. Além da terrível mortandade, a guerra trouxe a derrota ao Sul, prejuízo à sua agricultura e ocupação dos seus territórios, como inimigo vencido na guerra. Esta ocupação no período de “Reconstrução” incluiu, em muitos casos, pelo Exército dos Estados Unidos e arruinados financeiramente, muitos sulistas procuravam recomeçar sua vida em outras partes, onde ainda fosse legal possuir escravos. A América do Sul e Central eram fortes atrativos. Como aconteceu com os presbiterianos do Sul e com os batistas, a Igreja Metodista Episcopal do Sul (IMES) surgiu no Brasil com os

sulistas que imigraram para Santa Bárbara do Oeste, São Paulo’16 (SILVA, 2010, p.58-59).

Em outra parte, o mesmo autor apresenta quatro razões básicas e fundamentais para a imigração norte-americana sulista para o Brasil após 1865, com o fim da Guerra Civil americana. São elas: boa terra com preços acessíveis, clima agradável, ajuda do governo imperial e possibilidade de adquirir escravos” (SILVA, 2010, p. 58, 59, grifo nosso).

Pelo menos nas áreas de influência dos missionários vindos do Sul dos Estados Unidos (PCUS), a mentalidade existente era de concordância com a escravatura. A maioria dos missionários vindos do Sul dos Estados Unidos àquela época eram, no mínimo, complacentes com a escravidão de então no Brasil.

O significado disso, como veremos na obra de Rogers (2009, p. 22), é que “existem seres humanos que eram (podiam ser) considerados inferiores (ou submissos) a outros e este fato era, para alguns teólogos,17 justificado pela culpa imputada por Deus”.

Estes costumes e visão de mundo ainda influenciam o pensamento de presbiterianos e outros protestantes históricos? Para refletirmos a respeito desta questão, consideremos as palavras de Mendonça:

É curioso que a ação civilizatória que as missões protestantes pretendiam realizar no Brasil acabou sendo mais expressiva por meio de quem não tinha diretamente essa intenção. De fato, é significativa a contribuição dos “Confederados”18 que emigraram para a região de Santa Bárbara, tanto para a agricultura como para a indústria. [...] Mas é também curioso o fato de que até hoje descendentes daqueles confederados ainda se reúnem quatro vezes por ano nas cercanias de hoje Santa Bárbara d’Oeste (SP) para relembrar os velhos tempos. Numa pequena capela, perto de um antigo cemitério, em meio a um canavial, cantam velhos hinos dos avivamentos religiosos do século XIX, ouvem o sermão de costume e participam de um jantar com os pratos típicos do “Velho Sul” dos Estados Unidos (MENDONÇA, 2012, p. 77-78, grifo nosso.

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