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O que é id e n tid ad e ?

J á vim os que no s satisfazer com a concep ção de que se tr a ta d a resposta d a d a à p e rg u n ta “ quem sou e u ? ” é pouco, é insatisfatório.

E la c a p ta o aspecto rep resen tacio n al d a noção de id e n tid ad e (e n q u a n to p ro d u to ), m as deixa de lado seus aspectos constitutivo, de p ro d u ção , bem com o as im plicações recíprocas destes dois aspectos.

M esm o assim , nosso po n to de p a r tid a p o d e rá ser a p ró p ria rep resen tação , co n sid eran d o -a tam bém com o processo de p ro d u ção , de ta l fo rm a que a id e n tid ad e passe a ser e n te n d id a com o o p ró p rio processo de identificação.

D izer que a id e n tid ad e de u m a pesso a é u m fenôm eno social e não n a tu ra l é aceitável p ela g rande m a io ria dos cientistas sociais.

E x a ta m e n te isso nos p e rm itirá c a m in h a r. Com efeito, se e s ta ­ belecerm os um a distinção entre o o bjeto de nossa represen tação e a sua rep resen tação , verem os que am bos se ap resen tam com o fen ô ­ m enos sociais, conseqüentem ente com o ob jeto s sem cara cterísticas de p erm a n ên cia , n ão sendo indepen d en tes u m do outro.

N ão podem os isolar de um lad o todo um co n ju n to de elem entos — biológicos, psicológicos, sociais, etc, — que podem c a ra c te riz a r um indivíduo, identificando-o, e de o u tro lad o a rep resen tação desse indivíduo com o u m a d uplicação m ental ou sim bólica, que expressaria a sua id e n tid a d e . Isso po rq u e h á com o que u m a in terp en etração desses dois aspectos, de ta l form a q u e a indiv id u alid ad e d a d a já pressupõe um processo an terio r de re p re ­ sentação que faz p a rte da constituição do indivíduo representado. Por exem plo, an tes de nascer, o n ascitu ro já é represen tad o com o filho de alguém e essa rep resen tação p révia o constitu i efetivam ente, objetivam ente, com o “ filho” , m e m b ro de u m a d eterm in a d a fa m í­ lia; p o steriorm ente, essa representação é assim ilad a pelo indivíduo

í \ c ta l fo rm a que seu processo in tern o de represen tação é in c o r­

p o rad o n a su a objetividade social com o filho d aq u ela fam ília. AS CATEGORIAS FUNDAM ENTAIS D A PSICOLOGIA SOCIAL 69

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É verdade que não b a sta a re p resen tação prévia. O nascitu ro , u m a vez nascido, constitu ir-se-á com o filho n a m edida em que as relações n as quais esteja envolvido co n cre tam e n te confirm em essa rep resen tação através de co m p o rtam e n to s que reforcem su a c o n d u ta com o filho e assim p o r d ian te. T em os de con sid erar ta m b ém esse aspecto operativo (e não só o rep resen tacio n al).

C ontudo, é n a m edida em que é p re ssu p o sta a identificação d a criança com o filho fe dos adultos em q u estão com o pais) que os com p o rtam en to s vão ocorrer» c a ra c te riz a n d o a relação p atern o - filial.

D e sta form a, a id en tid ad e do filho, se de um lado é co nseqüência das relações que se dão, de o u tro — com an terio rid a d e — é u m a condição dessas relações. O u seja, é p ressu p o sta u m a id e n tid a d e q u e é re-p o sta a c a d a m o m en to , sob p e n a de esses objetos sociais “ filho” , “ p a is ” , “ fam ília*', e tc ., deixarem de existir objeti­ v am en te (ain d a que p ossam sobreviver seus organism os físicos, m eros su p o rtes que e n ca rn am a objetividade do social).

Isto introduz u m a com plexidade que deve ser con sid erad a aqui. U m a vez que a id e n tid ad e p re ssu p o sta é reposta, ela é vista com o d a d a — e não com o se da n d o n u m contínuo processo de identificação. É com o se u m a vez id e n tificad a a pessoa, a p ro d u ção de sua id en tid ad e se esgotasse com o produto* N a linguagem co rren te dizem os “ eu sou filho” ; dificilm ente alguém d irá “ estou sendo filh o ” .

D aí a expectativa g eneralizada de que alguém devè agir de acordo com o que é (e co n seq ü en tem en te ser tra ta d o com o tal). De ce rta form a, re-atualizam os através de ritu a is sociais u m a iden­ tid ad e pressu p o sta q ue assim é reposta com o algo j á dado, retiran d o em conseqüência o seu c a rá te r de h isto ricid ad e , apro x im an d o -a m ais da noção de um m ito que p rescreve as co n d u tas corretas, re p ro d u z in d o o social.

O c a rá te r te m p o ra l d a id e n tid ad e fica re strito a um m om ento originário, quan d o nos “ to rn am o s” algo; p o r exem plo, “ sou pro fesso r” ( = “ tornei-m e professor” ) e d esd e q ue essa identificação existe m e é d a d a u m a id e n tid ad e de “ p ro fesso r” com o u m a posição (assim com o “ filho** tam b ém ). E u com o ser social sou um ser-posto.

A posição de m im (o eu ser-posto) m e identifica, discri­ m in an d o -m e com o d o ta d o de certos a trib u to s que m e dão um a id e n tid a d e co nsiderada fo r m a lm e n te com o atem p o ral. A re-posiçâo da id e n tid a d e deixa de ser vista com o u m a sucessão tem poral,

AS CATEGORIAS FUNDAM ENTAIS DA PSICOLOGIA SOCIAL 67 p assan d o a ser vista com o sim ples m a n ifestação de um ser idêntico a si-m esm o n a sua p erm a n ên cia e estabilidade.

A m esm ice de m im é pressuposta com o d a d a p erm a n en tem en te e n ã o com o reposição de u m a id en tid ad e que u m a vez foi p o sta. V ejam os um exem plo: quan d o alg u ém é identificado com o " p a i” ? Pode-se resp o n d er que é q u an d o n asce um a crian ça g e ra d a por esse indivíduo; esse fato, contudo, assim considerado ain d a é um fato físico, e ser “ p a i" é um fato social.

A p a te rn id a d e torn a-se uni fenôm eno social q u an d o aquele evento físico é classificado com o tal, p o r ser co n sid erad o equivalente a o u tra s p a te rn id a d e s prévias. O pai se id e n tifica (e é identificado) com o ta l p o r se en c o n tra r n a situação equivalente de o utros pais t afinal, ele tam bém é filho de um p ai), Se ele é p a i e a m esm ice de si está asseg u rad a, sua id e n tid ad e de pai está c o n stitu íd a p e rm a n e n ­ tem ente; de fato, ele se “ to rn o u ” p ai e assim p e rm a n e c e rá e n q u a n to reconhecer e for reconhecida essa iden tid ad e, ou seja, en q u an to ela estiver sendo resposta cotid ian am en te. O ra , m as ao m esm o tem po ele ta m b é m é filho; esse “ o u tro ” que ele é, é neg ad o n a su a posição com o p ai, pois se ele perm anecesse com o filho, a posição de seu filho estaria am eaçad a, já que a diferença n ão se estabeleceria.

D essa form a, cad a posição m in h a m e d e te rm in a , fazendo com que m in h a existência co n creta seja a u n id ad e d a m ultiplicidade, q u e se realiza pelo desenvolvim ento dessas determ inações.

E m cad a m om ento de m in h a existência, em b o ra eu seja u m a to talid ad e, m anifesta-se um a p a rte de m im com o d esd o b ram en to das m ú ltip la s determ inações a que estou sujeito. Q uan d o estou írente a m eu filho, relaciono-m e com o pai; com m eu pai, com o filho; e assim por d ian te. C ontudo, m eu filh o não me vê ap e n a s com o p ai, nem m eu p a i ap en a s me vê com o filho; nem eu com pareço frente aos o u tro s ap en as com o p o rta d o r de u m único papel, m as sim com o o rep resen ta n te de m im , com to d as m in h a s determ inações q u e me to rn a m um indivíduo concreto. D esta fo rm a, estabelece-se u m a in trin c a d a réde de representações que p e rm e ia todas as relações, onde c a d a id en tid ad e reflete o u tra id e n tid a d e , d esaparecendo q u a l­ q u er p ossibilidade de se estabelecer um fu n d a m e n to originário p a ra cad a u m a delas.

E ste jogo de reflexões m últiplas q ue e s tru tu ra as relações sociais é m a n tid a p ela atividade dos indivíduos, de ta l form a que é licito dizer-se que as iden tid ad es, no seu conjunto, refletem a e s tru tu ra social ao m esm o tem po que reagem sobre ela co n ser­ vando-a ou a tran sfo rm an d o .

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A s atividades de indivíduos id e n tificad o s são n o rm atiza d as te n d o em vista m a n te r a e s tru tu ra social, vale dizer, conservar as id e n tid ad e s p ro d u zid as, p aralisan d o o processo de identificação pela re-posição de id e n tid ad e s p ressu p o stas, q ue um dia foram postas.

A ssim , a id e n tid ad e que se c o n stitu i no p ro d u to d e u m p e rm a n e n te processo de id entificação a p a re c e com o um dado e não com o u m dar-se co n sta n te que expressa o m ovim ento do social.

P a ra prosseguirm os, h á necessidade de u m a rá p id a digressão sobre o m ovim ento do social: ele é, em ú ltim a análise, a H istória,

A H istória é a progressiva e co n tín u a h om inização do H om em , a p a rtir do m om ento q ue este, d iferenciando-se do anim al, p ro d u z suas condições de existência, p ro d u zin d o -se a si m esm o conse­ q ü en tem en te.

A H istória, en tão , com o a en ten d em o s, é a h istória d a a u to p ro d u ç ã o h u m a n a , o q ue faz do H o m em um ser de possibi­ lid ad es, que com põem sua essência h istó rica. D iferentes m om entos histó rico s podem favorecer ou d ificu ltar o desenvolvim ento dessas p o ssib ilid ad es de h u m a n izaç ão do H o m em , m as é certo que a c o n tin u id a d e desse desenvolvim ento (co ncretização) constitu i a s u b stâ n c ia do H om em (o concreto, que em si é possibilidade e, pela c o n tra d iç ã o in tern a, desenvolve-se lev an d o as diferenças a exis­ tirem , p a ra serem su p erad as); aquela só d eix ará de existir se n ão m ais ex istir nem H istó ria nem H u m a n id a d e .

A ssim , o H om em com o espécie é d o ta d o de u m a substância q u e t e m b o ra não c o n tid a to talm en te em c a d a indivíduo, faz deste u m p a rtic ip a n te dessa su b stân cia Q k que c a d a hom em está en red ad o n u m d eterm in a d o m odo de ap ro p ria ç ã o d a n a tu re z a no qual se c o n fig u ra o modo d e ‘ suas relações com os dem ais hom ens).

E n tã o , eu — com o q u a lq u e r ser h u m a n o — p articip o de um a s u b stâ n c ia h u m a n a , que se realiza com o h istó ria e com o sociedade, n u n c a com o indivíduo isolado, sem pre com o h u m a n id a d e .

N esse sentido, em b o ra não to d a ela, eu contenho u m a infi- n itu d e de h u m a n id a d e (o que m e faz u m a to talid ad e), que se realiza m a te ria lm e n te de fo rm a contingente ao te m p o e ao espaço (físicos e sociais), de ta l m odo que c a d a in sta n te de m in h a existência com o in d iv íd u o é um m o m en to de m in h a co n cretização (o que m e torna p a rte d a q u e la to talid ad e), em que sou n eg a d o (com o totalidade), sen d o d eterm inado (com o p a rte ); assim , e u existo com o negação de

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m im -m esm o, ao m esm o tem po que o que estou-sendo sou eu-m esm o.

E m conseqüência, sou o que estou-sendo (u m a parcela de m inha h u m a n id ad e); isso m e dá u m a id e n tid a d e que me nega n aquilo que sou sem estar-sendo (a m in h a h u m a n id ad e totai).

E ssa id e n tid ad e q u e surge com o re p resen tação de m eu estar- sendo se converte n u m pressuposto de m eu se r (com o totalidade), o que, fo r m a lm e n te , tra n sfo rm a m inha id e n tid a d e concreta (e n te n ­ dida com o u m dar-se n u m a sucessão tem p o ral) em id e n tid ad e a b stra ta , n u m dado atem p o ral — sem pre p re se n te (en te n d id a com o id e n tid ad e p ressu p o sta re-posta),

Isso ocorre p o rq u e com pareço p e ra n te o u trem com o re p re ­ sen tan te de m im -m esm o a p a rtir dessa pressuposição de id e n tid ad e — q u e se e n c a rn a com o um a p arte de m im -com o totalid ad e. E ssa id en tid ad e p ressu p o sta n ão é u m a sim ples im agem m ental de m im -m esm ot pois ela se configurou n a rela ção com outrem q u e lanibém m e identifica com o idêntico a m im -m esm o; desse m odo, ao me o b je tificar (e ser objetificado p o r outrem ) pelo c a rá te r atem p o ral fo rm alm en te atrib u íd o à m in h a iden tid ad e, o q ue estou sendo com o p arte surg e com o en ca rn ação da to talid ad e d e m im (seja p a ra m im , seja p a ra outrem ); isso confunde o m eu co m parecim ento frente a o u trem (em com o rep resen tan te de m im ) com a expressão d a to ta lid a d e do m eu ser (d e m im com o rep resen tad o ).

Isto se d á p o rq u e c a d a co m p arecim en to m eu frente a o u trem envolve representação n u m tríplice sentido:

1) eu represento e n q u an to estou sen d o o rep resen ta n te de mim (com u m a id e n tid ad e pressuposta e d a d a fantasm agori- cam en te com o sem pre idêntica);

2) eu represento, em conseqüência, e n q u a n to d esem p en h o p a p éis (deco rren tes de m in h as posições) o c u lta n d o o u tras p arte s de m im n ã o co n tid as n a m in h a id en tid ad e p re ssu p o sta e re-posta (caso co n trá rio e u nào sou o rep resen tan te de m im );

3) eu represento, finalm ente, e n q u a n to rep o n h o no p resen te o que te n h o sido, e n q u a n to reitero a ap re se n ta ç ã o de m im — re-apre* sentado com o o que esto u sendo — d a d o o c a rá te r form alm en te a te m p o ra l atrib u íd o à m in h a id e n tid ad e p re ssu p o sta que está sendo reposta, en cobrindo o verdadeiro c a rá te r su b stan cialm e n te tem p o ral de m in h a id e n tid ad e (com o um a sucessão do q ue estou sendo, com o devir).

A o m e re p re se n ta r (no p rim eiro se n tid o — rep resen tan te de m im ), tran sfo rm o -m e n u m desigual de m im p o r rep resen tar (n o

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segundo sentido — desem penho de p ap éis) um “ o u tro ” que sou eu m esm o (o que estou sendo parcialm en te, com o d esd o b ram en to de m in h as m ú ltip las d eterm inações, e que m e d eterm in a e p o r isso me nega), im pedindo que eu deixe de re p re se n ta r (n o terceiro sen tid o — re-ap resen tação ) p a ra ex p ressar o o u tro “ o u tro ” que tam b ém sou eu (o que sou sem estar sendo) — que n e g a ria a negação de m im in d ic a d a pelo rep resen tar no sentido a n te n o r (o segundo).

O ra, essa expressão do o u tro “ o u tro ” q ue tam bém sou. eu consiste n a “ alterizaçào“ d a m in h a id e n tid a d e , n a sup ressão de m in h a id en tid ad e p ressu p o sta e no desenvolvim ento de u m a id e n tid a d e p o sta com o m eta m o rfo se c o n sta n te em q ue to d a h u m a ­ n id a d e c o n tid a em m im pudesse se c o n c re tiz a r p e la negação (não re p re se n ta r no terceiro sentido) do q ue m e nega (re p re se n ta r no segundo sentido), de fo rm a q ue eu possa — com o p ossibilidade e te n d ên cia — represen tar-m e (no p rim eiro sentido) sem pre com o d iferen te de m im m esm o — a fim de e sta r sen d o m ais p lenam ente.

O u seja: só posso com parecer no m u n d o fren te a outrem efetiv am en te com o re p re se n ta n te do m eu se r real q u an d o o co rrer a negação d a negação, e n te n d id a com o d eix ar de presen tificar u m a a p re se n ta ç ã o de m im q u e íoi c ristaliz ad a e m m om entos anteriores — d e ix a r de rep o r u m a id e n tid ad e p re ssu p o sta — ser m ovim ento, se r processo, ou, p a ra u tilizar u m a p a la v ra m ais sugestiva se bem q u e p olêm ica, ser m eta m o rfo se.