• Nenhum resultado encontrado

Questões conceituais sobre apego ao lugar: revisão sistemática da literatura

CECILIA CÔRTES CARVALHO (*)

MARIA HELENA PEREIRA FRANCO (*)

A pós-modernidade é identificada como um período em que a evolução dos meios de comunicação e dos meios de transporte, bem como a reestruturação e a sofisticação dos locais de moradia marcaram a trajetória da vida humana na atividade de ocupar e de pertencer a diferentes ambientes. Este é um tempo em que a mobilidade intercultural acentua-se pelo mundo e os espaços físicos, tanto públicos como particulares, aparecem compartilhados, cada vez mais, por uma diversidade de povos.

A era do “Pós-Humano” marca uma realidade baseada por verdades e significados singulares (Franco, 2009, p. 38). Os lugares ocupados por seres humanos têm significados únicos e representativos das diferentes vinculações formadas no local, sobretudo para aqueles que o habitam e o fazem como seus lares. Por meio da apropriação do espaço físico, são construídas as relações da pessoa com o ambiente integral, o qual pode estar ocupado por outros seres vivos, além das características biofísicas e socioculturais que marcam a estética e a natureza (entendida como o conjunto das propriedades de um ser organizado) do lugar.

Quem se vincula a um lugar é uma pessoa que, por suas vivências familiares e sociais, desenvolveu a capacidade de se ligar a algo extrínseco a ela – como alguém, um animal, uma profissão – ou às estruturas físicas construídas e/ou naturais – como a casa, o quintal, a vegetação/paisagem do lugar. Outros tipos de vinculações também se direcionam às situações vivenciadas que envolvem a família, os amigos, os vizinhos, os colegas da escola/universi - dade. Enfim, a história de vida das pessoas é marcada pelo “estar em lugares”, ambientes individuais e/ou coletivos, simbólicos ou imaginados, existentes no passado, no presente ou em um projeto futuro, em um tempo que se refere à relação do sujeito com o mundo externo. O apego ao lugar é processo de cunho biopsicossocial compreendido pela perspectiva da construção de significados. Está associado não exclusivamente à propriedade física/estética ou social do ambiente, mas ao significado formado para a ligação da pessoa com este. As vinculações com os lugares podem representar uma relação de moradia, de hospedagem ou de passagem, por tempo breve ou prolongado, em determinado local, que é percebido pelo indivíduo como componente de sua trajetória de vida e do qual guarda significativas memórias. Desde as fases iniciais da vida, os relacionamentos da pessoa com ambientes seguros – que lhe fornecem o cuidado necessário à sua sobrevivência e possibilidades para seu

(*)Pontifícia Universidade de São Paulo (PUC-SP), Brasil. Actas do 11º Congresso Nacional de Psicologia da Saúde

Organizado por Isabel Leal, Cristina Godinho, Sibila Marques, Paulo Vitória e José Luís Pais Ribeiro 2016, Lisboa: Sociedade Portuguesa de Psicologia da Saúde

11º CONGRESSO NACIONAL DE PSICOLOGIA DA SAÚDE

144

progresso – são vistos como experiências que operam no desenvolvimento de suas habilidades/capacidades de responder a episódios que simbolizam rupturas e transformações de suas relações no decorrer do seu ciclo vital.

Neste contexto, este artigo tem como objetivo central compreender os significados atribuídos ao conceito de apego ao lugar pela literatura científica atual e quais outros conceitos permeiam as vinculações das pessoas com ambientes, sejam estes de moradia, de trabalho ou de estudo, dentre outras características.

A relevância desta revisão sistemática de literatura está em possibilitar a profissionais de diferentes áreas, como as de Saúde, Humanidades, Tecnologias, Exatas, dentre outras, uma sustentação teórica de conceitos que representam os múltiplos elos da pessoa com o ambiente. O tema de apego ao lugar está presente na atuação de muitos profissionais que têm o ser humano como foco do seu trabalho, com um cuidado humanizado e culturalmente sensível.

MÉTODO

Esta pesquisa qualitativa foi realizada por meio de revisão sistemática de literatura, a qual proporciona abundantes interpretações e significações de um conceito em análise científica. Desta forma, tal método é fundamental para se iniciar um estudo, principalmente quando se trata de um stricto sensu, pois permite ao pesquisador conhecer mais de um entorno que circunscreve determinado fenômeno, antes de construir uma dissertação ou tese que abordem tal tema.

A base de dados eletrônica utilizada foi a Coordenação de Aperfeiçoamento Profissional Nível Superior (CAPES), com os descritores em inglês attachment theory, attachment to place e housing. Inicialmente, apareceram 85 textos; o mais antigo é de 1979 e o mais recente, de 2015. Para busca mais sistematizada, adicionou-se à pesquisa o critério de inclusão “artigos de 2008 a 2015”; apareceram 56. Foram selecionados os tópicos na busca community, attachment theory, housing e place attachment, além de inseridos outros critérios, texto completo publicado e publicações em língua inglesa; 20 artigos foram encontrados e tiveram seus resumos lidos. Então, 14 destes foram selecionados, para serem refletidos à base da teoria do apego de John Bowlby.

Estes 14 artigos estão descritos no Quadro 1, conforme títulos, autores, periódicos e anos de publicação.

RESULTADOS

O conceito de apego ao lugar é majoritariamente discutido pela psicologia ambiental, pela sociologia e pela geografia humana. No periódico The Journal of Environmental Psychology foi encontrado o maior número de textos completos publicados. Isto mostra o quanto este tema, mesmo com sua relevância para a compreensão da subjetividade humana, ainda é pouco publicado em outras áreas da psicologia, sobretudo da psicologia clínica.

Quadro 1

Caracterização dos artigos selecionados para revisão sistemática e discussão da literatura

Anos de

Títulos Autores Periódicos publicação

Home is where the heart is: Charis E. Anton, Journal of Environmental 2014 The effect of place of residence Carmen Lawrence Psychology

on place attachment and community participation

Spatial discounting, place Asim Zia, Journal of Environmental 2014 attachment, and environmental Bryan G. Norton, Psychology

concern: Toward an ambit- Sara S. Metcal, based theory of sense of place Paul D. Hirsch,

Bruce M. Hannon

Trajectories of middle-class Michaela Benson Studies Urban 2014 belonging: The dynamics of

place attachment and classed identities

Sense of community in Taiwan Heng Zhang, Procedia – Social and 2012 and its relationships with the Shih-Hsien Lin Behavioral Sciences

residential environment

Do agents negotiate for the Sujin Lee, Journal of Experimental 2011 best (or worst) interest of Leigh Thompson Social Psychology

principals? Secure, anxious and avoidant principal-agent attachment

Place attachment: How far have Maria Lewicka Journal of Environmental 2011 we come in the last 40 years? Psychology

Defining place attachment: A Leila Scannell, Journal of Environmental 2010 tripartite organizing framework Robert Gifford Psychology

What makes neighborhood Maria Lewicka Journal of Environmental 2010 different from home and city? Psychology

Effects of place scale on place attachment

Place attachment, identification Chiara Rollero, Journal of Environmental 2010 and environment perception: Norma De Piccoli Psychology

An empirical study

The measurement of place Christopher M. Raymond, Journal of Environmental 2010 attachment: Personal, Gregory Brown, Psychology

community, and environmental Delene Weber connections

The relations between natural Leila Scannell, Journal of Environmental 2010 and civic place attachment and Robert Gifford Psychology

pro-environmental behavior

Towards a developmental theory Paul Morgan, Journal of Environmental 2010 of place attachment Kenny Chow Psychology

Place attachment and place Mick Healey Journal of Environmental 2008 identity: First-year under- Psychology

graduates making the transition from home to university

Processes of place identification Ghozlane Fleury-Bahi, Environment and Behavior 2008 and residential satisfaction Marie-Line Félonneau,

Dorothée Marchand Fonte: Elaboração das autoras, 2015.

11º CONGRESSO NACIONAL DE PSICOLOGIA DA SAÚDE

146

Sua definição básica refere-se à vinculação do indivíduo com seus ambientes significa - tivos, naturais ou os construídos pelo homem, individuais ou coletivos, simbólicos e imaginados, e que se mostram presentes na construção da realidade de cada um.

O conceito de apego ao lugar é multidimensional (Chow & Healey, 2008; Raymond, Brown, & Weber, 2010; Scannell & Gifford, 2010a,b), dinâmico e sistêmico; concomitante - mente duradouro e flexível (Morgan, 2010). “O homem moderno possui uma capacidade extraordinária para modificar seu meio ambiente e ajustá-lo às suas próprias conveniên - cias” (Bowlby, 1984, p. 650). Mesmo que o esperado seja a maior estabilidade na relação da pessoa com o ambiente, nem sempre este vínculo é positivo ou motivador.

O significado atribuído à conceituação de apego ao lugar incorpora aspectos físicos, sociais, afetivos, cognitivos, comportamentais e espirituais procedentes da vinculação entre a pessoa e o ambiente. O apego ao lugar implica análise mais complexa do lugar, o qual pode ou não funcionar como base segura – conceito desenvolvido por Bowlby (1989) – para seu morador.

O apego ao lugar associado ao vínculo emocional da pessoa com sua residência foi tema pesquisado por Lewicka (2010, 2011). Espaços da moradia, como os quartos, a sala de jantar, o quintal ou o espaço externo de lazer e entretenimento, a vizinhança, o bairro, a cidade, a região do país, o estado – enfim, microssistemas ou macrossistemas que represen - tam a morada, são compreendidos como ambientes onde as pessoas formam vínculos, subsumindo-se este processo ao conceito de apego ao lugar.

Numa perspectiva ambiental, alguns componentes físicos do ambiente envolvem-se na construção do vínculo do indivíduo com o lugar: estética harmônica e agradável; ordem e civilidade; localidade e tamanho da construção; características arquitetônicas da cidade; tipo de comunidade, fechada ou aberta, do lugar e se esta comunidade é tradicional ou um novo tipo de configuração de habitação urbana (Lewicka, 2011).

Para Raymond et al. (2010), os vínculos de lugar têm muitas funções. As mais comuns são as de sobrevivência, de segurança, de suporte para realização de metas e de incentivo à utilização de novos ambientes. Scannell e Gifford (2010a) defenderam que a função de lugar inclui as motivações, as necessidades básicas e a autorregulação, além dos princípios que norteiam o comportamento humano em determinado local.

Os fenômenos mais conhecidos que representam os vínculos construídos entre a pessoa e seus ambientes significativos são: globalização, mobilidade para estudo ou trabalho, migração, desastres e crises, relocações ou reconstruções de moradias, dentre outros acontecimentos que se referem a rompimento de vínculo com algum ambiente. O conceito de apego ao lugar é também utilizado em discussões, planejamentos e ações que motivam o uso de espaços públicos abandonados, para discutir, planejar e encorajar a utilização destes locais pela população, como praças e parques, dentre outros (Chow & Healey, 2008; Fleury-Bahi, Félonneau, & Marchand, 2008; Lewicka, 2011; Scannell & Gifford, 2010 b). Na literatura pesquisada, o conceito de apego ao lugar apareceu associado a outros temas debatidos ora como integrados e complementares, ora como diferentes e desagrupados em relação ao de apego ao lugar: (a) significado de lugar; (b) identidade de lugar; (c)

dependência de lugar; (d) satisfação com o lugar; (e) tempo de residência; (f) territorialidade; (g) pertencimento; (h) enraizamento; (i) familiaridade; (j) sentido da casa. Através de leitura e compreensão destes temas fundamentais, que integram a construção do vínculo da pessoa com o lugar, esta pesquisa, consoantemente com Morgan (2010), aborda o lugar por meio de uma integração de conceitos e afirma, assim, que não há uma teoria sistemática de lugar. A seguir, a descrição destes conceitos:

(a) Significado de lugar: inclui laços passados, sentimentos interiorizados e um desejo de manter-se no lugar (Scannell & Gifford, 2010a,b).

(b) Identidade de lugar: refere-se à maneira como os lugares fazem parte da própria identidade da pessoa (Chow & Healey, 2008).

(c) Dependência de lugar: diz respeito ao direcionamento e ao funcionamento de metas no ambiente; mostra o grau em que o ambiente tem condições para suportar seu pretendido uso, satisfazendo-se às necessidades e às expectativas da pessoa (Fleury- Bahi et al., 2008).

(d) Satisfação com o lugar: predispõe a identificação e refere-se a como o ambiente estimula a criatividade e promove oportunidades para as pessoas se desenvolverem e crescerem em seus papeis e funções, tanto individual como coletivamente (Fleury- Bahi et al., 2008).

(e) Tempo de residência: atua no processo de identificação; ao longo do tempo, tornam-se mais bem estruturadas e desenvolvidas questões como as representações, as atitudes, os sistemas de valores e os comportamentos, que se conectam às vinculações do indivíduo com determinados ambientes (Fleury-Bahi et al., 2008).

(f) Territorialidade: baseia-se na propriedade, no controle do espaço e na regularização de autoacesso; comportamentos territoriais incluem a marcação, a personalização, a agressão e a defesa territorial (Scannell & Gifford, 2010 b).

(g) Pertencimento: refere-se à filiação a um grupo de pessoas, bem como a um acopla - mento emocional fundamentado em histórias, interesses ou preocupações compar - tilhadas (Chow & Healey, 2008; Raymond et al., 2010).

(h) Enraizamento: diz respeito a um vínculo muito forte com a casa (Chow & Healey, 2008).

(i) Familiaridade: caracteriza-se por memórias prazerosas, imagens ambientais associa - das com o lugar e apego à vizinhança, com conexão emocional para o ambiente imediato (Chow & Healey, 2008).

(j) Sentido da casa: transcendem-se as características materiais do espaço doméstico, meio onde as pessoas produzem significados situados geograficamente e socialmente, imbuídas de sentimentos profundos e de investimentos emocionais e de expectativas (Chow & Healey, 2008).

11º CONGRESSO NACIONAL DE PSICOLOGIA DA SAÚDE

148 DISCUSSÃO

Desde as fases iniciais de sua vida, a pessoa tem capacidade criativa e maleável de construir vínculos com outras pessoas, com animais, com espaços físicos, com a natureza, com objetos e cargos/funções, dentre outros aspectos, o que sinaliza a propensão do ser humano a estar em grupo. O “estar vinculado a” torna-se uma característica que potencia - liza o indivíduo a enfrentar dificuldades e a se ajustar a diferentes meios/situações decor - rentes em sua trajetória de vida.

Pesquisar os conceitos de apego ao lugar e outros a este vinculados amplia as possibili - dades de compreensão dos processos relacionais humanos, inclusive da maneira como as pessoas escolhem, apropriam-se, modificam e compartilham espaços e, sobretudo, como se percebem nesta relação com o lugar.

Por meio desta pesquisa, identificou-se a carência de estudos científicos, em saúde, humanidades, tecnologias e ciências exatas, dentre outras áreas de conhecimento, que deem maior visibilidade aos vínculos construídos pela pessoa com os diferentes ambientes que vivenciam experiências importantes e que dão diferentes sentidos ao seu curso de vida.

Afinal, não é por acaso que a pessoa escolhe estar em um ambiente. Este se integra à vida dela; contudo, é uma vinculação que pode ser rompida, ora com mais forte impactação e mais dificuldades, ora com mais moderação e consetimento. Algumas ligações são mais memorizadas que outras, pois narram um tempo, uma história e outras relações.

REFERÊNCIAS

Bowlby, J. (1984). Separação, angústia e raiva. São Paulo, SP: Martins Fontes.

Bowlby, J. (1989). Uma base segura: Aplicações clínicas da teoria do apego. Porto Alegre, RS: Artes Médicas.

Chow, K., & Healey, M. (2008). Place attachment and place identity. First-year undergraduates making: The transition from home to University. Journal of Environmental Psychology, 28, 362-372. doi: 10.1016/j.jenvp.2008.02.011

Fleury-Bahi, G., Félonneau, M.-L., & Marchand, D. (2008). Processes of place identification and residential satisfaction. Environment and Behavior, 20 [paginação irregular]. doi: 10.1177/0013916507307461.

Franco, M. H. P. (2009). Ética e bioética: Uma visão transdisciplinar. In Associação Brasileira de Linfoma e Leucemia. Transdisciplinaridade em oncologia: Caminhos para um atendimento integrado (pp. 39-52) São Paulo, SP: HR Gráfica e Editora.

Lewicka, M. (2010). What makes neighborhood different from home and city? Effects of place scale on place attachment. Journal of Environmental Psychology, 30, 35-51. doi: 10.1016/j.jenvp.2009.05.004

Lewicka, M. (2011). Place attachment: How far have we come in the last 40 years? Journal of Environmental Psychology, 31, 207-230. doi: 10.1016/j.jenvp.2010.10.001 Morgan, P. (2010). Towards a developmental theory of place attachment. Journal of

Environmental Psychology, 30, 11-22. doi: 10.1016/j.jenvp.2009.07.001

Raymond, C. M., Brown, G., & Weber, D. (2010). The measurement of place attachment: Personal, community and environmental connections. Journal of Environmental Psychology, 30, 422-434. doi: 10.1016/j.jenvp.2010.08.002

Scannell, L., & Gifford, R. (2010a). Defining place attachment: A tripartite organizing framework. Journal of Environmental Psychology, 30, 1-10. doi: 10.1016/j.jenvp. 2009.09.006

Scannell, L., & Gifford, R. (2010b). The relations between natural and civic place attachment and pro-environmental behavior. Journal of Environmental Psychology, 30, 289-297. doi: 10.1016/j.jenvp.2010.01.010

Adoção homoparental: Estudo sobre representações

Documentos relacionados