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CAPÍTULO 4 O QUOTIDIANO E A RAZÃO SENSÍVEL: CONSTRUÇÕES

4.1 UMA APRESENTAÇÃO PRELIMINAR DE MICHEL MAFFESOLI

4.1.3 O quotidiano: a vida como ela é

O que é quotidiano? Seria a repetição de ações sem uma reflexão prévia? Não, o quotidiano tem diversos entendimentos nos relatos de autores que discursam a temática como Agnes Heller (1985), Ferreira (2004), Nitschke (1999), Silva (2002) e outros. Mas, para este estudo, foram adotadas as premissas de Maffesoli (1984-207b) onde o mesmo faz várias alianças filosóficas para identificar o quotidiano, evitando a imposição de um conceito estanque, com características para o entendimento do que se mostra como quotidiano em tempos pós-modernos.

Em seu livro “Conhecimento Comum”, reeditado em 2007, Maffesoli faz alusão às imagens que constroem o quotidiano que vivemos, ou melhor, os quotidianos; de trabalho, de família, de pessoa, de razão e emoção, de decisão, enfim, dos papéis que desempenhamos na

vida diariamente. Ele revela que o quotidiano é uma junção do anedótico e do trágico, é um saber-fazer, saber-dizer e saber-viver, que em dimensões múltiplas de riquezas, cuja fenomenologia tem, com inteira justiça, posto em destaque. Ou seja, o fenômeno que se mostra é o vivido que acontece no quotidiano, na vida. (MAFFESOLI, 2007b, p.197).

Maffesoli (1988, p.194), refere que “o quotidiano se mostra por meio da fala, do riso, dos gestos, os quais se nos esgotam os próprios atos, que impregnam o dia-a-dia, e que são vividos no presente e nele se esgotam, é a ética do instante, do aqui e agora”. Talvez seja por esta característica do quotidiano, esta complexa rede entre o aqui e agora, a junção do dito antigo ao novo, a repetição de atitudes que reporta e permite a idéia de simplicidade, e banalização deste, mas com a observação dos fenômenos que aparentemente se repetem, estamos reaprendendo e evoluindo no processo de viver.

Para Maffesoli (1984, p. 20):

O minúsculo cotidiano é importante para apreender o que chama de socialidade, que, por sua vez, é a potência social que tenta se exprimir. Além disso, a socialidade reside em um misto de sentimentos, paixão, imagens, diferenças, que incitam a tornar relativo às certezas estabelecidas e a uma multiplicidade de experiências coletivas.

O quotidiano é de complexo entendimento pelas inúmeras nuanças que o compõem, ou seja, é no quotidiano que as pessoas se mostram e se escondem, fazem o jogo das màscaras para se protegerem das facetas que a vida nos desafia. Por vezes, o quotidiano está claramente à mostra aos nossos olhos, por vezes, esconde-se sob pequenos mantos que nos remete as inquietudes e aos questionamentos que dá pulsação a vida. O jogo das formas, as imagens que se delineiam nas experiências vividas, fazem deste quotidiano um parque de diversões, com montanhas russas, carrinhos seguros, barcos vikings, entre outras brincadeiras que expressam a realidade que precisa ser evidenciada na vida para fazermos dela, uma vida melhor, retomando a seriedade, a alegria, a sensibilidade unida à razão do pensamento para um mundo mais humano.

Para Nitschke (2003), o quotidiano pode ser entendido como:

A maneira de viver dos seres humanos que se mostra no dia a dia, expressa por interações, crenças, valores, imagens, significados e símbolos, estando relacionada à cultura em que estão inseridos, que vai construindo seu processo de viver, em um movimento de ser saudável e adoecer, delineando seu ciclo vital. Se expressa por interações experimentadas diariamente, que possibilitam ou não, o ser humano crescer e se desenvolver ao longo de sua vida.

Creio que é no quotidiano de cuidado de Enfermagem às famílias que maior parte de minhas perguntas foi dia-a-dia surgindo, inicialmente, havia dados empíricos, nascidos de minha inquietude com os caminhos que a Enfermagem tem trilhado neste tempo pós- moderno, o qual me parece confundir o pensamento dos menos atentos aos chamados da vida. O quotidiano, no meu entendimento, é o espaço de vida, onde pode estar presente a doença, as interações saudáveis ou não, ações de cuidado e desvelo ou ações de não-cuidado, é onde as pessoas mostram seus estilos de vida, seus pensamentos, sua ética com base nas experiências que viveram e nas tribos as quais pertencem e determinam suas próprias regras, sua base familiar, suas concepções sobre determinados aspectos sociais e individuais, sem que para isso seja preciso forçá-las a se mostrarem. É o universo de que nos esquecemos, banalizamos como trivial, porém, o trivial é o viver diário e se manifesta por meio de expressões ao longo da vida.

Quanto às ações de cuidado, identifico-as como sendo todos os esforços em busca de olhar o ser humano em sua complexidade, atentando ao meio em que vive, com quem vive, seu suporte familiar, enfim, é cuidar sem esperar devoluções em forma de artigos materiais. É cuidar, colocando amor em todas as atitudes que compõem o quotidiano de cuidado da Enfermagem.

Mergulhar no quotidiano, possibilita ver o que realmente está posto, desde a superfície até o fundo das aparências, que Maffesoli (2005 b) nos alerta que geralmente o que está na superfície e parece esconder o fundo dos sentimentos, nada mais é do que a própria realidade. O autor refere que:

A profundidade das aparências, a experiência proxemia serão as idéias- mestras para guiar as reflexões. Tratar-se-à por um lado de descrever o fato de constatá-lo; captar-lhe a inteligência. O conhecimento, sempre e de novo renasce está em ligação com o estado do mundo, e é quando se esquece disso, que a defasagem inevitável entre a reflexão e a realidade empírica torna-se um fosso, que é, desde então, impossível ultrapassar. Daí a morosidade, o cinismo ou outras formas de desilusões que parecem prevalecer em nossos dias (MAFFESOLI, 2005 b, p. 9).

Não se pode deixar de abordar as contribuições que Maffesoli (2005 b) faz em relação ao tema “O Fundo das Aparências”, uma vez que, quando nos deparamos com a realidade do quotidiano, e todos os elementos que o integram, é preciso lembrar que neste há muito das características individuais das pessoas que vivem estes quotidianos, bem como, os

elementos definidos pelas tribos, as noções grupais que se mostram neste quotidiano, onde atualmente, segundo Maffesoli (2005b), a ordem do dia é admitir que a aparência, a superficialidade, a profundidade da superfície estão como uma hipótese provisória, longe de ser aceito ou ter adquirido um estatuto teórico. Pode parecer paradoxal, mas o “mundo visível existe”, a imagem social está onipresente, e, contudo, raras são as reflexões ou análises que permitam a retirada destas constatações com seqüências lógicas. De fato, está muito enraizado o fantasma da autenticidade, a preocupação intelectual de procurar a verdade além do que se vê. (MAFFESOLI, 2005b).

Para Maffesoli (2005b), a fenomenologia compreensiva é, sem dúvida, a melhor maneira de apreender o que este chama de respiradouro social, o fundo contínuo, os aspectos irruptivos e suas intermitências. Ao nos voltarmos para a apresentação, preocupando-nos com a verdade, isto favorece o conhecimento, aprende a “nascer com o que é observado”, uma postura nascente intelectual, que confrontada com as culturas, desperta para a eflorescência de mitos, a multiplicidade de imaginários dificilmente explicáveis pelos procedimentos racionalistas. O autor reforça esta reflexão ao reafirmar que:

Daí está a importância que reveste o quotidiano ou, no sentido mais forte, a preocupação com o doméstico. É a prevalência desse existente empírico, na sua simples complexidade, que conduz a relativizar o poder da razão, e a concordar com a eficácia da imagem [...] Nessa perspectiva, as diversas modulações da aparência (moda, espetáculo político, teatralidade, publicidade, televisões) formam um conjunto que, enquanto tal, exprime bem uma dada sociedade. (MAFFESOLI, 2005b, p. 126).

É também nas imagens deste quotidiano que encontramos as formas, a necessidade de refletir sobre estas que não estão sob o domínio da arte, mas na vida quotidiana que integra o conjunto da vida social, as mesmas nuanças, comumente observadas no ambiente Hospitalar e suas tribos, identificam as interações que estabelecemos ao sermos este quotidiano. Na idéia de Maffesoli (2005 b), que me alimentou os olhos para ver e sentir as expressões da experiência vivida no quotidiano de cuidado da Enfermagem Hospitalar da área materno- infantil, a forma é a matriz para o nascimento, desenvolvimento e morte de uma sociedade. Ao considerar a teatralidade da vida quotidiana em sua importância, esta é um vetor de conhecimento, uma alavanca metodológica para a compreensão da estrutura orgânica. É imprescindível adequar essa abordagem afável, inscrever-se no jogo de interações que se estabelece entre as imagens do eu, e as imagens do ambiente social e natural. Essas imagens

representam seus papéis nas diversas situações que constituem uma sociedade. Portanto, tal força encontra sua união no mundo das imagens, onde perdura o vitalismo e a dinâmica interna da maneira se ser.

Para Maffesoli (2005 b, p. 135):

A “forma” e suas diversas incorporações só são, de certo modo, o fruto da interatividade, da interdependência dos elementos que evocamos. A forma é a mediação entre o eu e o mundo natural e social. Pode-se dizer que a imagem, tornando visível, pode representar o papel do sacramento generalizado. Nesse sentido, na sua própria desordem, a imagem serve de pólo de agregação das diversas tribos que formigam nas megalópoles contemporâneas.

Diante do exposto até o momento, as contribuições de Maffesoli (2005 b) sobre a forma e as imagens, possibilitaram a idealização de um futuro mais impregnado de significados e símbolos que possam levar às equipes de Enfermagem e as famílias ao encontro comum de formas de cuidar alicerçadas nos elementos entrelaçados de um quotidiano ao qual só existe pela presença de ambos. Assim, conforme Maffesoli (2005 b, p. 141) dispõe que, “pode-se imaginar que cada fragmento é em si significante e contém o mundo na sua totalidade. Esta é a lição essencial da forma, é isto que faz da frívola aparência, um elemento de escolha para se compreender um conjunto social”.