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REFLEXÃO CONCEITUAL

No documento S OB OB ADALAR DOS (páginas 41-47)

O pensamento do século XIX, no Brasil, foi pautado pela difusão de dois princípios filosóficos: o Liberalismo e a Ilustração, e pelo fortalecimento da política eclesiástica denominada Romanização, e, sobre seus respectivos conceitos, cabe algum esclarecimento, inclusive porque são utilizados no decorrer do texto e subsidiam nossa análise sobre as mudanças ocorridas no período. Poderíamos acrescentar um quarto conceito, o de “república”. No entanto, este se torna mais presente apenas na última década do século, e, em Ouro Preto, a implantação do novo sistema político, em 1889, se vê obscurecida pela discussão acerca da possível transferência da capital, preocupação, para os ouro-pretanos, mais imediata. Após o afã pela abolição da escravatura, a instituição da Nova República se mostrou praticamente como desdobramento natural.

O primeiro conceito, portanto, é o de Ilustração, usado, também, como Iluminismo. Para Sérgio Paulo Rouanet, porém, há uma diferença fundamental de sentido entre os dois conceitos. Para ele, a Ilustração consistiu no movimento de ideias

56 DENZINGER, Heinrich. Compêndio dos símbolos, definições e declarações de fé e moral. p. 667-696. 57 As questões sobre o matrimônio e assuntos correlatos serão discutidas no Capítulo 4, quando

cristalizado, no século XVII, em torno de filósofos enciclopedistas; o Iluminismo, por sua vez, é entendido como entidade conceitual não limitada a nenhuma época específica, construída a partir dos grandes princípios emancipatórios da Ilustração, mas levando em conta, para corrigi-los e enriquecê-los, tendências históricas posteriores. De acordo com Rouanet, a Ilustração propôs um grande projeto de modernização do Ocidente. Herdeiros da Ilustração, vieram o liberalismo e o socialismo, sendo que, derivado dessas três configurações históricas, surge o conceito de modernização iluminista.58

Para nossa breve análise, entretanto, não faremos distinção entre os dois termos, visto que os documentos da época tratam de maneira geral, como sendo representantes da elite ilustrada, aqueles seguidores dos princípios das Luzes, isto é, aqueles que postulavam os princípios defendidos pelos filósofos iluministas franceses do século XVIII: o racionalismo, o liberalismo, o individualismo e o universalismo.

Na base da filosofia iluminista, estava o preceito de que “todos os homens são iguais”. No entanto, essa igualdade referia-se à igualdade civil, ou seja, aquela que “garantiria os indivíduos contra as interferências abusivas do poder público”.59 Essa igualdade não se estenderia, portanto, à área política ou à econômica.

Os conceitos de universalismo e individualismo podem nos parecer contraditórios, mas são, na realidade, complementares, visto que a ideia iluminista é “universalista em sua abrangência”, pois “visa todos os homens, sem limitações de sexo, raça, cultura, nação”, e é “individualista em seu foco”, já que “os sujeitos e os objetos do processo de civilização são indivíduos e não entidades coletivas”. O pensamento iluminista tinha como propósito a emancipação do ser humano, que acenderia à “plena autonomia” do pensamento, da política e da economia.60 Já o racionalismo das Luzes tinha uma vertente positiva, a fé na ciência e na razão, e uma vertente negativa, a crítica da religião e da superstição.61

58 ROUANET, Sergio Paulo. Ilustração e modernidade. In: _____. Mal-estar na modernidade. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. p. 122.

59 ROUANET, Sergio Paulo. Ilustração e modernidade. p. 158.

60 ROUANET, Sergio Paulo. Mal-estar na modernidade. In: ______. Mal-estar na modernidade. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. p. 101.

No entanto, enquanto, na França, o pensamento ilustrado teve forte conotação anticlerical, esse não foi marcante no Brasil, da mesma forma como não o fora na Península Ibérica. De acordo com Riolando Azzi, era unânime, entre os idealizadores do projeto iluminista, para Portugal e seus domínios, já no século XVIII, a convicção do importante papel educativo que os párocos deveriam assumir diante de seus fiéis. Portanto, caberia à instituição eclesiástica “tornar-se uma poderosa incentivadora das novas aquisições científicas entre o povo”.62 Foi sob esse conjunto de valores, que os bispos reformadores brasileiros do século XIX foram instruídos, compondo, juntamente com parte do clero, a Igreja Ilustrada da segunda metade do século XIX.

O segundo conceito acerca do qual cabe certo esclarecimento é o de “liberalismo”. Iniciado na França, parcialmente importado da Inglaterra (parlamentarismo inglês e economia política inglesa),63 espalhou-se pela Europa e chegou ao Brasil, onde seu reflexo se deu de forma mais ou menos intensa nas diversas regiões, cidades e vilas. Em sua versão original, o liberalismo encarnava a ideia de autonomia cultural, política e econômica das sociedades.

O processo de independência do Brasil já se dá a partir desse conceito, e a primeira Constituição da jovem nação independente, outorgada em 1824, tinha em seu bojo aspectos contraditórios, pois, de um lado, pretendia-se liberal, em consonância com os padrões ideais da modernidade. Por outro lado, mantinha o sistema escravista, que excluía da condição de “cidadão” praticamente metade da população brasileira.

De acordo com Sergio Paulo Rouanet, o liberalismo, no Brasil, era desajustado ou deslocado. De acordo com o autor, esse fenômeno ocorreria sempre que houvesse discrepância entre ideias, de um lado, e práticas e relações sociais, de outro. Esse deslocamento podia se dar “no eixo espacial (nacional-estrangeiro)” ou “no eixo temporal (tradição e modernidade)”.64 No Brasil, as duas situações ocorreram. Tanto a Constituição de 1824 se referia a ideais sociais e políticos distantes da realidade brasileira, como os liberais passaram a personificar as ideias modernistas, mesmo que as discussões nacionais abordassem aspectos distantes daqueles introduzidos pela teoria

62 AZZI, Riolando. O clero no Brasil... p. 38.

63 ROUANET, Sergio Paulo. Antropologia e ética. In: ______. Mal-estar na modernidade. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. p. 318.

liberal europeia. Os princípios liberais tornaram-se, portanto, mais presentes, no cenário brasileiro, durante os debates pós-Independência. No período regencial brasileiro (entre 1831 e 1840), o movimento partidário torna-se mais acirrado, pois os interesses e as tendências políticas tornam-se mais claros. Os reacionários, que defendiam a volta de D. Pedro I, formam o partido Caramuru, que se extingue com a morte do antigo imperador, em 1834. Os moderados, partidários da Constituição de 1824, formavam o núcleo do Partido Conservador. Os exaltados, “revolucionários de toda ordem”, bem como os republicanos, agrupavam-se no Partido Liberal.65 O liberalismo tinha no federalismo sua principal bandeira.

Após manobra articulada pelos liberais, instituindo a maioridade de D. Pedro II, dá-se início à ação regressista, em 23 de março de 1841. É formado um novo ministério, que se mantém durante oito meses.66 A dissolução da Câmara, com ampla maioria liberal, deu origem à Revolução de 1842.67

A Revolução Liberal teve cunho nitidamente monarquista. O poder de D. Pedro II não era discutido. O ponto de pauta era a amplitude das prerrogativas da Coroa. Os liberais foram total e completamente derrotados, tendo sido resgatados os traços centralizadores presentes na Constituição de 1824: poder político centralizado, presença do poder moderador, senado vitalício e a constituição do Conselho de Estado.68

As ideias liberais, dominantes no período regencial, foram extirpadas do poder na década de 1840, em nome da centralização política exigida para a manutenção do trabalho escravo. Afinal,

num país tão grande, de características geográficas e econômicas tão diversificadas, se as províncias fossem dotadas de amplos poderes, poderia suceder que em algumas delas o trabalho livre pusesse termo à escravidão e como não seria possível a coexistência, no mesmo país, desses dois regimes de trabalho antagônicos, os escravocratas, que dominavam o cenário político nacional, não podiam deixar de recorrer

65 BONADIO, Geraldo. A agonia do Projeto Liberal: o jornal O Tebyreçá e a Revolução de 1842. Sorocaba: Fundação Ubaldino do Amaral, 1992. p. 12-13.

66 BONADIO, Geraldo. A agonia do Projeto Liberal... p. 24. 67 BONADIO, Geraldo. A agonia do Projeto Liberal... p. 9. 68 BONADIO, Geraldo. A agonia do Projeto Liberal... p. 37.

à centralização para resguardar, em todo o Império, a continuação da escravatura.69

O debate político se deu de forma intensa nas Minas do século XIX, e, principalmente, na capital, onde estava instalada a elite política provincial.

Nesse sentido, Richard Burton observou: “o sentimento partidário é muito forte em Ouro Preto”,70 sendo essa, também, a constatação de outros historiadores.

O terceiro conceito, importante para compreendermos a posição da Igreja frente a todo o projeto modernizante do século XIX, é o de “romanização”. A Santa Sé, no pontificado de Pio IX (1846-1878), apoiado pela maioria de seus prelados, deu início ao movimento pelo fortalecimento do papado, tornando o papa, perante a sociedade, o principal líder e mediador com o mundo espiritual. Essa ação do Vaticano foi, convencionalmente, denominada de Ultramontanismo.71

Como já tivemos a oportunidade de discorrer acima, o movimento ultramontano se deu como resposta de extremo tradicionalismo, mostrando-nos uma Igreja “acuada e agredida de todos os lados no plano das idéias e no plano de ação”.72

No Brasil Imperial, o movimento reformista da Igreja se fez sentir, principalmente, a partir da segunda metade do século XIX. As relações ambíguas estabelecidas pelo Estado imperial geraram conflitos cada vez mais crônicos e maiores nas relações Igreja e Estado, identificando uma disputa entre o poder religioso e o secular.73

A falta de padres era um sintoma identificado pelos bispados como reflexo da crise pela qual passava a Igreja. Richard Burton observou, em 1867, “uma excessiva economia de padres em Ouro Preto, sendo permitido uma terça parte para cada igreja. Em 1866 o Padre França, capelão da polícia, que também atendia à prisão, foi demitido.

69 BONADIO, Geraldo. A agonia do Projeto Liberal... p. 16.

70 BURTON, Richard. Viagem do Rio de Janeiro a Morro Velho. p. 308.

71 O termo “Reação Ultramontana”, ou “Movimento Ultramontano”, foi dado pelos franceses para indicar o crescente poder do Vaticano, que estava, para eles, além das montanhas (referindo-se aos Alpes, cadeia montanhosa que separa o sul da França do norte da Itália).

72

SILVEIRA, Felipe Augusto de Bernardi. Legislando sobre a prática e criticando os costumes: a lei e as transformações dos ritos fúnebres em Minas Gerais. (O caso da paróquia de Santo Antônio na cidade de Diamantina, 1846/1915), 2005b. (mimeo)... p. 148.

Informa ele que seu salário anual de 1:400$000 lhe era pago para celebrar uma missa por quinzena”.74

Burton caracteriza o mineiro como “um homem religioso, mas um católico displicente”. O combate à religiosidade popular e supersticiosa foi um dos estandartes do movimento ultramontano. Ainda de acordo com Burton, o catolicismo nas Minas está “muito afastado de seu centro legítimo, e sofreu algumas mudanças notáveis”. Na segunda metade do século XIX, era rara “a construção de uma igreja”, fato que, de acordo com o inglês, era “saudável sinal dos tempos”.75 A dificuldade que os bispos oitocentistas teriam para disciplinar seu clero é assinalada ainda por Burton:

Os paroquianos não se mostram muito escandalizados com o vigário que toma uma esposa e vive bem com ela. O clima não favorece a castidade; a raça, especialmente quando o sangue é misturado, é um material inflamável, e o que os escravos falam e fazem não concorre para que as jovens conservem a inocência. Não preciso dizer que o celibato clerical é mera questão disciplinar, conservado porque é, ou se supõe ser, favorável ao espírito do cristianismo e porque, sem dúvida alguma, é altamente vantajoso para a Igreja.76

Na visão de Burton, não havia, no Brasil, “frequência abusiva ao confessionário”, sendo que os homens, de maneira geral, não recorriam ao padre para aconselhamento acerca de todos os assuntos, “triviais ou importantes, seculares ou espirituais”. Essa atitude denotaria amadurecimento do povo para as reformas religiosas, e a principal delas, a liberdade religiosa, prescrevia que “todos os credos teriam permissão de construir, para o seu culto, templos e não casas”.77 Difícil é sabermos se essas eram observações da realidade brasileira ou se representavam o imaginário ideal do protestante inglês.

Na década de 1870, a situação entre a Coroa e a Igreja torna-se mais tensa, principalmente entre o imperador e os bispos. Os párocos, representantes mais próximos da comunidade, cuidavam de seu “pasto espiritual”, e sua influência política se dava no nível da província. Aos bispos coube a função de firmar suas bases num contexto adverso, devido às ideias secularizantes e cientificistas que se desenvolviam.

74 BURTON, Richard. Viagem do Rio de Janeiro a Morro Velho. p. 309. 75 BURTON, Richard. Viagem do Rio de Janeiro a Morro Velho. p. 333. 76 BURTON, Richard. Viagem do Rio de Janeiro a Morro Velho. p. 333. 77 BURTON, Richard. Viagem do Rio de Janeiro a Morro Velho. p. 333.

O auge da crise se deu com o episódio que passou a ser conhecido como Questão Religiosa, ocorrido entre 1872 e 1874, que levou à prisão os bispos D. Vital Maria Gonçalves de Oliveira e D. Antônio de Macedo Costa.

O conflito enquadra-se em uma discussão maior, que remonta à instituição do padroado no Brasil. Desde 1850, uma nova geração de eclesiásticos era formada dentro de padrões de comportamento mais rígidos. Esses viam as ações do Estado imperial como um problema à expansão da religiosidade e da moral ultramontana. Essa posição de romanização da Igreja brasileira vinha atrelada às preocupações crescentes da Santa Sé, devido ao avanço, sobre a sociedade, do imaginário laicizante. A Igreja questionava o pensamento liberal procurando garantir seu poder perante a sociedade. Em decorrência dessa nova direção da Igreja, o clero brasileiro repudiava o desenvolvimento da maçonaria e de missionários protestantes.78

Em 17 de janeiro de 1890, o governo republicano provisório estabelecia a separação definitiva entre Igreja e Estado, tornando-o laico.

No dia 19 de agosto de 1890, os bispos brasileiros produziram a primeira

Pastoral Coletiva da República, manifesto de apreensão e repúdio pelas mudanças que o novo regime político instaurava, como a obrigatoriedade do casamento civil, a proibição do ensino religioso, inelegibilidade do clero e a plena secularização dos cemitérios, entre outras. Foi seu redator Dom Macedo Costa, conhecido pela Questão

dos Bispos e preso, pelo governo imperial, junto com D. Vital. O documento continha, entre as assinaturas do Arcebispo da Bahia e do Bispo de São Sebastião do Rio de Janeiro, a de Dom João, Bispo de Diamantina.79

No documento S OB OB ADALAR DOS (páginas 41-47)