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1.1.5 REGISTROS DE ÓBITOS

No documento S OB OB ADALAR DOS (páginas 76-82)

Para o período entre 1838 e 1900, temos um total de 4.286 óbitos. O assento de óbito, diferentemente dos de batismo e casamento, não se refere a um sacramento específico. No momento da morte do devoto católico, três sacramentos eram solicitados ao sacerdote, para garantir à sua alma um lugar privilegiado na Jerusalém Celeste: o sacramento da penitência, pelo qual o crente, arrependendo-se dos pecados cometidos, confessava-os e recebia a absolvição; a eucaristia, que lhe fortaleceria o espírito e significaria, possivelmente, o último alimento espiritual antes do trânsito de sua alma; e a extrema-unção, responsável pela preparação da alma do agonizante para o conforto da vida eterna. Este último, específico para o momento de grave enfermidade ou de perigo de morte, consistia na unção por óleo bento de partes do corpo do moribundo (olhos, ouvidos, nariz, boca, mãos e, eventualmente, os pés), quando era solicitado o perdão de Deus a todo pecado cometido através daqueles sentidos. Além disso, tal sacramento seria capaz, em alguns casos, de restabelecer a saúde do corpo do enfermo, pois, até meados do século XIX, a falta de explicação científica para as enfermidades levavam as pessoas, de uma maneira geral, a relacionarem as doenças a um castigo divino, por faltas cometidas. Se não ocorresse o restabelecimento da saúde, o sacramento da extrema-unção ou “santa unção”, como às vezes aparece redigido na documentação,

teria o objetivo de consolá-lo, dando-lhe confiança para que, na agonia da morte, pudesse levar com paciência as dores da enfermidade e, por fim, resistir aos assaltos do inimigo, que seriam as tentações do mal, personificadas pelo demônio.

As Constituições esclarecem a forma de se ministrar a extrema-unção e a maneira de se assentar o óbito em livro próprio. Pudemos constatar que, entre as três séries documentais, as atas dos óbitos são as que seguem um padrão de redação mais constante. Essa série documental também nos possibilita estudo acerca da composição social local, e, em alguns casos, da causa mortis, assim como a idade, a cor e outros aspectos da vida cotidiana, como as devoções e a progressiva proibição de sepultamento no interior dos templos. Como os demais registros, seguem o padrão individual do pároco que o redige e assina, como também refletem as preocupações de cada época. Por exemplo: nos assentos da década de 1840, não é citada a legislação eclesiástica como definidora da forma do registro, mas eles são redigidos de acordo com a Lei Mineira. A lei exige a presença de testemunhas, mas não é cumprida, pois, apesar de constar no texto “que para constar mandei fazer este assento no qual assinam comigo os declarantes na forma da Lei Mineira”, somente o pároco assina. O conteúdo é mais pomposo para o início do período, com citações como: “foi levado em depósito e solenemente encomendado” (em 13 de janeiro de 1853). Com o decorrer do tempo, a redação vai se tornando mais concisa, e o conteúdo passa a se referir somente às informações básicas (data, nome do falecido, filiação – no caso dos inocentes –, sacramentos administrados, encomendação e local do enterro). Nos últimos anos do século XIX, os sacramentos ministrados deixam de constar na maioria dos assentos, o que pode ser considerado como indício da secularização dos costumes.

No livro 4, título XLIX, parágrafo 831, as Constituições primeiras definem a forma básica do assento dos defuntos:

Aos tantos dias de tal mês, e de tal ano faleceu da vida presente N. Sacerdote Diácono, ou Subdiácono; ou N. marido ou mulher de N ou viúvo, ou viúva de N., ou filho ou filha de N., do lugar de N., freguês desta, ou de tal Igreja, ou forasteiro, de idade de tantos anos, (se comodamente se puder saber) com todos ou tal Sacramento, ou sem eles: foi sepultado nesta ou em tal Igreja: fez testamento, em que deixou se dissessem tantas Missas por sua alma, e que se fizessem tantos Ofícios; ou morreu ab intestado, ou era notoriamente pobre, e portanto se lhe fez o enterro sem se lhe levar esmola.

Da mesma forma que os demais registros, a prática não contempla o padrão exigido pelo documento oficial da Igreja. Nos assentos da matriz do Pilar do Ouro Preto, para o período pesquisado, não há a referência ao testamento feito. Somente em alguns consta a presença de ofícios e missas solicitados pelo falecido. O acompanhamento também não é imprescindível, diferentemente da encomendação, obrigatória para que se realizasse o sepultamento e presente em todos os registros. A idade é atestada em alguns períodos e desaparece em outros. A condição social é designada, no início do marco temporal proposto para o presente trabalho, mas vai desaparecendo, exceto para o caso dos escravos. Para os cativos, é sempre apontado o nome do proprietário ou proprietários, pois, no caso dos casados, consta o nome do dono e de sua mulher.

A identificação da cor ocorre de maneira oscilante por todo o período, aparecendo, no entanto, apenas em 20% do total de 4.286 registros entre 1838 e 1900. Há intensificação nos anos de 1849 e 1850. De maneira geral, a informação sobre a cor está inserida no texto do documento. No entanto, a partir de 1850, é registrada basicamente na margem do assento, abaixo do nome do falecido. Ali, é indicada a cor por meio de sua letra inicial: (B = branco, P = pardo, C = crioulo).

A partir da metade do século (1851), a cor passa a se ausentar dos registros, mas não desaparece. Passa a ser mais constante para a distinção de escravos. Esses não deixam de ser “marcados” pela cor ou origem. A referência à origem crioula ou africana não deixa de ser uma forma indireta de assinalar a cor dos cativos. A cor é presente também em alguns registros de livres. Mesmo que emancipados, os africanos não deixam de ser identificados nos assentos. Após 1888, a referência à cor mantém-se de forma residual. Observamos a indicação de “branco”, em alguns casos, já no período da República (após 1889).

Para análise quantitativa, consideramos intervalos de cinco anos, pois, assim, identificamos as tendências de cada período, reduzindo as variações pontuais:

– entre 1838 e 1842, para um total de 264 registros, temos a indicação da cor em 59,5%;

– entre 1843 e 1847, para um total de 191 registros, temos a indicação da cor em 31,5%;

– entre 1848 e 1852, para um total de 213 registros, temos a indicação da cor em 60%;

– entre 1853 e 1857, para um total de 335 registros, temos a indicação da cor em 10,4%. Nesse período, desaparece a designação para o branco. Estes vão ter a cor especificada no assento de maneira residual;

– entre 1858 e 1862, para um total de 454 registros, temos a indicação da cor em 14,3%;

– entre 1863 e 1867, para um total de 448 registros, temos a indicação da cor em 15,6%.

– entre 1868 e 1872, para um total de 468 registros, temos a indicação da cor em 17,7%.

– entre 1873 e 1877, para um total de 592 registros, temos a indicação da cor em 18,8%.

– entre 1878 e 1882, para um total de 431 registros, temos a indicação da cor em 17,4%;

– entre 1883 e 1887, para um total de 443 registros, temos a indicação da cor em 10,3%;

– entre 1888 e 1892, para um total de 295 registros, temos a indicação da cor em 4,4%. Nesse período, não é registrado nenhum pardo;

– e, entre 1893 e 1897, para um total de 100 registros, temos a indicação da cor em 7%. Estes se referem a 1 preto, 5 brancos e 1 indígena.

A preocupação em discriminar a cor preta é significativa, principalmente em se tratando de escravos. A partir de 1889, constatamos, nos registros de óbitos, o ideal republicano, devido ao qual passam a silenciar-se acerca da composição étnica do Brasil.

Esse silêncio sobre a cor é analisado pela professora Hebe Mattos:

Desde meados do século XIX, faz-se notar a ausência da discriminação da cor dos homens livres nos registros históricos disponíveis. O silêncio sobre a cor, que antecede o fim da escravidão, sem dúvida está relacionado ao significado da liberdade, assim como sua generalização sugere que, por trás dele, se encontra mais que uma ideologia de branqueamento, construída e imposta de cima para baixo.126

Outras informações são constantes durante todo o período estudado. Nos óbitos de inocentes, a presença do nome dos pais (se a criança é filha legítima), e somente da mãe, para os filhos ilegítimos, é generalizada. Em alguns casos, filhos já adultos

126 CASTRO, Hebe Maria Mattos de. Das cores do silêncio: os significados da liberdade no sudeste escravista – Brasil século XIX. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1995. p. 19.

também vêm acompanhados de sua filiação, pois são solteiros. Há assentos onde aparece somente o nome do pai. Supomos que, sendo a criança morta recém-nascida, sua mãe deveria estar de repouso, em resguardo, e as providências teriam, portanto, sido tomadas pelo pai. Em alguns poucos registros, não consta o nome da criança; possivelmente natimortos, não tiveram tempo de ter sua identidade definida. O nome do cônjuge é bem constante também, tanto nos óbitos de casados como de viúvos. No caso dos casados, é importante que se comprove, através do registro, o estado de viuvez, para o caso de novo matrimônio. Adiante, tratamos da grande presença de segundas núpcias, indicando que ser viúvo não era uma situação confortável para homens ou mulheres. A condição de legitimidade também é bem presente. Nem sempre é especificada no texto, mas subentendida, pois consta ser filho de (o nome do pai) e de sua mulher (o nome da mãe). Outra informação que percorre todo o período é o ministério dos sacramentos, apesar da taxa declinante, já no final do século. O local do enterro só é ausente em pouquíssimos casos, assim como a encomendação, pois, “conforme o direito, nenhum defunto pode ser enterrado sem, primeiro, ser encomendado pelo seu pároco, ou outro sacerdote de seu mandado”.127 O estado da morte era definido pelo clérigo. Essa era uma função religiosa e não médica. Somente com o decorrer do século XIX, a ciência passa a exercer o papel de constatar a morte física e dar o atestado de óbito, em substituição à encomendação, para permissão do enterro, numa situação polêmica, como também foram as mudanças nas práticas do sepultamento.

Em Carta Régia de 1801, o príncipe regente D. João VI já demonstrava a preocupação da Coroa portuguesa com a saúde pública, decorrente da prática danosa dos sepultamentos no interior das igrejas localizadas nos centros urbanos ultramarinos.128 A iniciativa de se impedir esses sepultamentos vinha contra práticas religiosas arraigadas e caras para as populações coloniais e, por isso, encontrou resistência tanto por parte das irmandades, que tinham a responsabilidade pela última morada dos devotos, como do clero e da população em geral.129

127 CONSTITUIÇÕES PRIMEIRAS DO ARCEBISPADO DA BAHIA, Livro 4, Título XLV, parágrafo 812.

128 SILVEIRA, Felipe Augusto de Bernardi. Entre políticas públicas e tradições: o processo de criação do Campo Santo na Cidade de Diamantina (1846-1915). 2005. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2005a. p. 92.

A lei de primeiro de outubro de 1828 pretendia, além de dar novo formato às câmaras municipais e organizar o funcionamento dos municípios, interditar definitivamente os sepultamentos no interior dos templos localizados nas cidades, por considerar tais práticas danosas à saúde pública. O art. 66 parágrafo 2º dessa mesma lei determina o estabelecimento de cemitérios fora do recinto dos templos, não se referindo, entretanto, à construção dos mesmos fora da urbe. Essa brecha na lei permitiu que as irmandades e ordens terceiras passassem a edificar seus cemitérios atrás ou ao lado das igrejas e capelas.130

A discussão do local dos sepultamentos permanece em todo o decorrer do século XIX. Na década de 40, ela está presente nas Posturas Municipais, aliadas à preocupação em se “embelezar e limpar” as cidades.

Na década de 50 do mesmo século, a epidemia de cólera-morbo, no Rio de Janeiro e em Salvador, legitimou todo o discurso higienista, e avisos expedidos pelo Ministério do Império passaram a ser cumpridos. No capítulo específico sobre óbitos, observamos o percurso que a polêmica toma em diversas cidades do Brasil, e como os ouro-pretanos lidaram com a questão.

Em alguns anos, os registros são mais sucintos, como acontece no ano de 1855. Ano em que a epidemia de cólera espalhava-se pela cidade. O crescimento da mortandade exige registros mais simples e rápidos. Em outros períodos, é evidente que os assentos são transcritos posteriormente, muitas vezes, por um coadjutor. É deixado um espaço entre os textos para assinatura do vigário, que deixa de fazê-lo.

Nos registros de óbitos da freguesia do Pilar do Ouro Preto, os enterros em cemitérios pertencentes às irmandades, nos espaços contíguos aos templos, começam a ser constantes em 1862, apesar de constar alguns enterros no Cemitério Geral, no período entre 09 de junho de 1835 e 06 de fevereiro de 1842, num número bem limitado e em situações bem específicas. Entretanto, a prática tradicional de sepultamentos no interior das igrejas permanece de forma residual, como no caso do enterro de índio, realizado em 02 de agosto de 1864, dentro da matriz, após ter sido batizado in extremis. O adro, ou seja, a área circundante do templo, é requalificada. O local – que, até meados do XIX, era destinado à inumação de escravos ou pessoas marginalizadas da sociedade,

como no caso de forasteiros, mendigos ou aqueles que não faziam parte de nenhuma irmandade –, passa a receber devotos de todas as condições sociais. Se os vivos acabam por aceitar que seus mortos deixem de ser enterrados no interior dos templos, veem nos cemitérios das irmandades uma forma de ampliação do espaço sagrado, promovendo, assim, a permanência deles na urbe.

No documento S OB OB ADALAR DOS (páginas 76-82)