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1. O INSTITUTO DA SOBERANIA

1.2. Soberania e Democracia

Importante se torna para o presente trabalho realizarmos uma breve análise das relações entre o instituto da soberania e uma forma de governo que a ela se mostra fundamental, a democracia, dada a relevância dessa última no que se refere à sua titularidade e no modo de exercício do poder soberano.

Segundo Bonavides (1980, p. 17), a democracia, palavra originada das partículas gregas demos: povo e kratos: governo, corresponderia a uma forma de exercício do governo em que a vontade soberana do povo decidiria, direta ou indiretamente, todas as questões do governo, de modo que esse povo seria sempre o sujeito titular e o objeto do poder soberano.

3 ALBUQUERQUE, Newton de Menezes. Soberania política e vontade democrática no Estado Contemporâneo.

Recife, Universidade Federal de Pernambuco. Disponível em: <http://www.liber.ufpe.br/teses/arquivo/ 20041126112034.pdf>. Acesso em: 24 de novembro de 2013.

Bobbio (2003) entende que a democracia seria um conjunto de regras que estabeleceriam quem estaria autorizado a tomar as decisões para a coletividade, bem como o modo que essas decisões seriam tomadas e os seus procedimentos. Assim, o conceito apresentado pelo autor relaciona a democracia à delegação de poderes que encontramos num sistema de exercício do poder democrático de forma representativa.

Ocorre que profundas mudanças ocorreram na concepção de democracia desde que tal regime de governo foi proposto na Antiguidade Clássica. Destacamos a abordagem feita pelo filósofo Aristóteles4, que analisou a democracia vigente na cidade-Estado de Atenas.

Apresentando algumas das diferenças entre ambas as concepções de democracia, Dallari (2010, p. 146) esclarece que a abordagem feita por Aristóteles, ao restringir a atuação política àqueles que eram considerados cidadãos, na realidade grega da época, promovia a exclusão de grande parte da sociedade, uma vez que essa seleta atuação política na democracia ateniense, essa nobre virtude da sabedoria necessária para ditar os rumos da política local somente poderia ser exercida por um seleto grupo, formado por aqueles que, segundo Aristóteles, “não tinham a necessidade de trabalhar para viver”.

Assim, estavam automaticamente excluídos dessa concepção de “povo”, participante dos rumos da política ateniense, a grande maioria dos que compunham aquela coletividade, como mulheres, crianças, estrangeiros, além dos escravos, base econômica daquela democracia. Dessa forma, esses “escolhidos” se limitavam basicamente a homens, livres e nascidos na pólis, estando excluída da arte de governar a cidade-Estado a esmagadora maioria daquela excludente sociedade.

O surgimento da democracia com suas feições modernas ocorreu com os movimentos liberais burgueses do século XVIII5, que consagraram o ideário iluminista. Essa nova concepção

4 No tocante à classificação proposta por Aristóteles para as formas de governo, o filósofo grego propôs uma

classificação baseada num critério quantitativo, para o qual a monarquia seria o governo de um só; a aristocracia, que seria o governo de alguns, os melhores de uma determinada localidade; e a democracia, que seria o governo do “povo”. Além dessas três formas de governo, consideradas puras, Aristóteles também elaborou as possíveis degenerações dessas formas de governo, que originariam outras três. A monarquia, quando desvirtuada, se converteria em tirania; a aristocracia se tornaria oligarquia; e a democracia seria transformada em mera demagogia.

5 Esses processos revolucionários burgueses iniciados no século XVIII e que se seguiram ao longo do século XIX,

tiveram em comum a influência do ideário iluminista e a condução política do movimento pela alta burguesia das diversas localidades em que ocorreram. Nesse contexto, destacamos a Independência dos Estados Unidos da América - Revolução Americana (1776), a Revolução Francesa (1789), e as Revoluções de 1830 e de 1848. Em que pese alguns momentos em que houve destaque para as tendências socialistas nesses processos políticos, os elementos burgueses capitanearam as demais forças no sentido de garantir as mudanças estruturais nos limites de seus interesses políticos e econômicos.

de democracia passou a consagrar a liberdade individual, a igualdade de todos perante a lei e o direito de escolha dos representantes políticos de um Estado por meio de eleições. Essa nova democracia seria o sistema político através do qual a autoridade suprema seria exercida pelos representantes eleitos pela Nação através do sufrágio popular, no contexto da doutrina da soberania nacional.

No tópico anterior, ao discorrermos sobre a formação histórica do conceito de soberania, também realizamos uma breve análise dos processos de formação e queda do Estado Moderno absolutista. Se o processo de formação do Estado absolutista teve íntimas relações com a emergência de um poder único e centralizado na figura do monarca, o seu o processo de queda esteve relacionado ao modo como esse poder foi apropriado pela classe burguesa.

Nesse contexto, destacamos a figura de Jean-Jacques Rousseau, um dos principais teóricos do iluminismo, suporte ideológico do movimento que, com as ideias de Liberté, Égalité e Fraternité, defendia a derrubada do antigo regime e a tomada do poder dos monarcas pelo povo. Como dissemos anteriormente, Rousseau desenvolveu suas ideias de soberania popular atribuindo o exercício do poder soberano à “vontade geral” do povo, que seria a soma das vontades de cada um dos indivíduos de um Estado. Essa soberania de Rousseau ainda teria as características de ser inalienável, indivisível, infalível e absoluta, no sentido de garantir expressar cada uma das vontades daqueles que compunham o Estado.

Como visto, a intensa participação democrática de forma direta pelas diversas classes sociais nos rumos do Estado foi vista como algo indesejável pela alta burguesia europeia, classe econômica e política que ao tomar os rumos das Revoluções, buscou garantir que as mudanças políticas e econômicas fossem articuladas a seu favor, de modo que as suas próprias concepções de Liberdade, Igualdade e Fraternidade prevalecessem sobre a das demais classes sociais.

Assim, essa vitoriosa burguesia elaborou a comentada doutrina da soberania nacional, consagrando democraticamente a titularidade do poder soberano à Nação, que aglutinaria todos os indivíduos de um Estado. O exercício desse poder soberano ficaria a cargo dos representantes políticos democraticamente escolhidos pelo povo.

Para o iluminismo que servira de ideologia a essas revoluções liberais, importante foram as contribuições de Montesquieu acerca da democracia e da representação política. Na obra “O Espirito das Leis”, o filósofo trabalhou alguns conceitos que haviam sido analisados anteriormente por Aristóteles. O barão de Montesquieu estabeleceu a existência de três diferentes

tipos de governo6 nas diversas sociedades, dispondo que o surgimento da democracia como

forma de governo ocorreria quando o povo se aglutinasse num só corpo - a Nação -, para exercer a titularidade do poder soberano. Prosseguindo em sua análise, o autor estabelece que o exercício dessa democracia por esse “povo aglutinado”, dependeria da imposição de determinados limites e de determinadas regras ao seu exercício.

Nesse contexto, a teoria da tripartição dos poderes de Montesquieu sua principal contribuição para o conceito moderno de democracia. A seguir, destacamos a parte de sua obra na qual o autor discorre sobre cada um dos 03 (três) poderes, bem como de sua importância para uma democracia representativa:

Há, em cada Estado, três espécies de poderes: o poder legislativo, o poder executivo das coisas que dependem do direito das gentes, e o executivo das que dependem do direito civil. Pelo primeiro, o príncipe ou magistrado faz leis por certo tempo ou para sempre e corrige ou ab-roga as que estão feitas. Pelo segundo, faz a paz ou a guerra, envia ou recebe embaixadas, estabelece a segurança, previne as invasões. Pelo terceiro, pune os crimes ou julga as querelas dos indivíduos. Chamaremos este último o poder de julgar, e, o outro, simplesmente o poder executivo do Estado. A liberdade política, num cidadão, é esta tranquilidade de espírito que provém da opinião que cada um possui de sua segurança, para que tenha esta liberdade, cumpre que o governo seja de tal modo, que um cidadão não possa temer outro cidadão. Quando na mesma pessoa ou no mesmo corpo de magistratura o poder legislativo está reunido ao poder executivo, não existe liberdade, pois pode-se temer que o mesmo monarca ou o mesmo senado apenas estabeleçam leis tirânicas para executá-las tiranicamente. Se num Estado livre todo homem que supõe ter uma alma livre deve governar a si próprio, é necessário que o povo, no seu conjunto, possua o poder legislativo (MONTESQUIEU, 2002, p. 165-166)

Nessa democracia representativa, as diversas distinções entre os “cidadãos passivos”, titulares do poder soberano, os “cidadãos ativos”, aqueles que através da representação exerceriam na prática o poder político em um Estado, demonstravam o descompasso entre ideais de igualdade jurídica e ao exercício da cidadania de forma restrita por alguns indivíduos, pois, apesar da moderna possibilidade do exercício da cidadania através do voto, dele estiveram durante um longo período excluídas as mulheres, negros, analfabetos, e pessoas sem um determinado padrão econômico. Tal fato levou diversos teóricos a questionarem esse modelo

6 Montesquieu tratando de forma diferente o que havia no passado sido disposto por Aristóteles, identifica como

formas de governo: o governo monárquico, aquele em que só um homem governaria, no entanto, sob o império das leis, e com poderes subordinados e dependentes; o governo despótico, o qual o poder se concentra em um só indivíduo, que o exerceria de acordo com seus caprichos, baseado no temor em todos incutido e desprovido de leis que o legitimassem; e o governo republicano, que se subdividiria em democracia e a aristocracia, de acordo com o titular do poder soberano numa região, respectivamente, o povo considerado de forma geral ou apenas uma parte dele.

democrático de representatividade, que estaria condicionado a diversos fatores dentro de uma sociedade.

As análises de Marx e Engels refletiram o aspecto de que a chamada igualdade jurídica, uma igualdade meramente formal que existiria entre todos os indivíduos num Estado, escamoteava na realidade uma profunda diferença entre as distintas classes sociais que o compunham. Assim, a representatividade burguesa refletiria esse status quo no sentido de perpetuar essas desigualdades e essa dominação social.

O Estado moderno, para Mészáros (2002, p. 106), autor que desenvolveu suas ideias baseado no pensamento de Marx, seria uma estrutura complementar às forças econômicas do sistema do capital numa determinada sociedade. Na abordagem do autor estariam interligados os conceitos de capital, trabalho e o Estado, elementos que articulados, permitiriam o funcionamento do sistema de produção capitalista. Nele, a representatividade democrática seria “uma estrutura totalizadora de comando político do capital”, que teria a função primordial de “assegurar e proteger numa base permanente as realizações produtivas do sistema”.

A democracia representativa para Marx seria uma forma de igualdade formal, fictícia, daqueles indivíduos que na vida real, cotidiana, se mostravam tão desiguais, devido às relações entre capital e trabalho que se desenvolveriam numa sociedade. Em que pese diversas interpretações de sua obra terem sido feitas no sentido de desqualificar seu discurso, atribuindo a ele a defesa do totalitarismo e da opressão, Marx e Engels”, (1998, p. 29-30) em seu projeto de transformação social, consideraram em seu “Manifesto Comunista”, que “(...) o primeiro passo na revolução operária é a passagem do proletariado a classe dominante, a conquista da democracia pela luta”. Considerando insuficiente a existência de uma democracia meramente fictícia, os autores estabeleceram que somente com uma igualdade real, fática, entre os cidadãos de um Estado a democracia poderia ser exercida em sua plenitude.

As democracias contemporâneas muito absorveram as ideias iluministas de representação política que foram consolidadas nas revoluções liberais do século XVIII e XIX. Conforme estabelece Azambuja (1998, p. 218-219), os principais traços característicos desse novo formato de democracia foram a consolidação da titularidade da soberania pelo povo, que seria o elemento humano do Estado, isto é, o poder político pertenceria ao povo e seria exercido representativamente por diferentes órgãos, autônomos e independentes entre si que comporiam o Estado.

Em que pese os sucessos historicamente conquistados pelo povo com o atual modelo de democracia, entendemos que, se a moderna tomada da soberania pelo povo foi um dos maiores marcos desse sistema político, o modo representativo de como essa democracia é exercida na prática, com regras e procedimentos técnicos que por vezes limitam a própria expressão da voz dessa “vontade geral”, refletem um tecnicismo que por vezes se mostra bastante antidemocrático. Nesse sentido, Bonavides (1973, p. 33):

Descamba a tecnocracia no monopólio da decisão política sonegada do povo e seus representantes. Na melhor das hipóteses esse monopólio concede ao povo tão-somente a possibilidade de uma participação plebiscitária, ilustrativa do novo cesarismo tecnológico, que politizou vertiginosamente, governada pelos “novos príncipes” do vocabulário político de Debré.

[...]

A tecnocracia pode ser o último grau na deterioração do próprio sistema de grupos e significar apenas o alojamento permanente do grupo mais forte no poder, onde seus interesses dominantes aparecem servidos por especialistas acobertados e legitimados pelo diploma político de tecnocratas, confirmando-se assim a mais ousada e refinada usurpação da vontade popular (BONAVIDES, 1973, p. 33-34).

Assim, percebemos que essa dissonância entre representantes e representados retira a grande parte da essência do sistema democrático, que seria transformado numa burocracia da técnica, numa burocracia que teria o papel de monopolizar o direito em uma sociedade. Contudo, tal problema se torna ainda mais grave quando analisamos a influência do poder do grande capital nesse sistema político, que o tornaria ainda mais opressor, pois o poder econômico passaria a ditar não somente as regras do mercado economia nessa sociedade, como também a política e o direito nela existentes, procurando assegurar esse estado de dominação social e restringindo das mais diversas formas a expressão popular, a verdadeira vontade do povo. Nesse sentido, importante a contribuição de Albuquerque (2001, p. 99-100), que articulou numa interessante abordagem os elementos antidemocráticos que a influência do capital exerceria nesse modelo burocrático e tecnicista de democracia:

O desvanecer do sentido ético do Estado e do Direito produz um giro no discurso liberal, atribuindo-lhe um sentido formalista e utilitário. O espaço político no interior do Estado liberal, que estava voltado para o expurgo de tudo aquilo que se opusesse à plena realização da individualidade, passa a ser compreendido como uma simples duplicação do espaço do mercado, onde o que importa não é o fim último a que deve se submeter o Estado, mas apenas se as condições gerais de observância às normas legais e os procedimentos foram atendidos.

[...]

O poder comunitário, que forceja por nascer e se constituir como poder soberano desde as lutas desencadeadas pelas cidades-repúblicas itálicas, no intuito de verem afirmado o

seu querer coletivo de cidadãos, vê-se toldado pela ação apropriadora das burocracias privadas e estatais, mancomunadas no mesmo objetivo comum: o de ver mantidas a qualquer custo os privilégios e a vontade particularista do capital. A convivência entre Estado democrático e capitalismo dá suas primeiras demonstrações das imensas dificuldades em harmonizar-se, pois se de um lado o Estado de direito ético pressupõe incorporação de novos sujeitos políticos, maior participação e igualdade entre os seus cidadãos – o que só pode ser imaginado em condições de ampliação da esfera pública- de outro lado temos o capital, com seu apetite feroz, sedento de ganhos e de privilégios e que para isso não titubeia de lançar mão de toda sorte de mecanismos técnicos para auferi-los (ALBUQUERQUE, 2001, p. 99-100).

Compartilhando da opinião do professor, entendemos que para que possa existir um sistema político verdadeiramente democrático devem ser concentrados esforços não somente no sentido de possibilitar uma maior sintonia política entre representantes e representados, com uma maior realização de plebiscitos, referendos ou iniciativas populares, mas sobretudo no sentido de possibilitar condições materiais para que essa cidadania seja exercida de forma plena, com mecanismos que favoreçam condições materiais para a emergência do povo como sujeito de direitos, como soberano. Bastante claro se torna que somente em uma sociedade mais justa e mais igual a democracia pode ser exercida em sua plenitude, superando o aspecto exclusivista da democracia grega e possibilitando verdadeiramente a todos o papel de decidir soberanamente os rumos do Estado, não mais numa democracia fictícia, tecnicista e burocrática, mas sim, emancipatória, livre e popular.

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