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2 DA DIDÁTICA UNILATERAL À DIDÁTICA HUMANA: PERSPECTIVAS

2.4 Uma didática criativa: professor e alunos juntos

Como já mencionamos, no contexto da sociedade brasileira pós-Revolução de 1930 e no âmbito do estabelecimento de políticas públicas educacionais, comprometidas, em grande medida, com a ideologia política do governo varguista, assiste-se à publicação da reforma educacional Francisco Campos de 1931, cuja ênfase dirige-se à renovação metodológica, proveniente, em parte, da divulgação dos ideais pedagógicos dos adeptos da Escola Nova no Brasil, marcada por seus diálogos entre a Educação e outras ciências, entre elas, a Psicologia e a Sociologia (SCHMIDT; BARCA; MARTINS, 2010, p. 100).

Na relação dialogal entre a Educação e a Psicologia, evidencia-se a abordagem cognitivista, que investiga os caminhos percorridos pela inteligência no processo de construção do conhecimento. Diferentes autores, adeptos dessa compreensão da ação educativa, atribuem maior ou menor influência à cultura, à personalidade, à afetividade, ao momento histórico e ao meio social no processo de ensino-aprendizagem, sendo, portanto, distintos em seus aspectos teóricos e práticos.

Para Mizukami (1986, p. 59), o termo “cognitivista” é divulgado por psicólogos que investigam os processos centrais do indivíduo dificilmente observáveis, tais como: organização do conhecimento, processamento de informações, estilos de pensamento ou estilos cognitivos, comportamentos relativos à tomada de decisões etc. Implica, assim, em estudar cientificamente a aprendizagem como sendo mais que um produto do ambiente, das pessoas ou de fatores que são externos aos alunos, ou melhor, tal abordagem enfatiza os processos cognitivos, separados dos problemas sociais contemporâneos.

Vários estudiosos desse século podem ser considerados cognitivistas, entre eles, os principais são: Piaget (1896-1980) – considerado o precursor dos estudos sobre a aquisição do conhecimento, suas obras ainda influenciam muitos pesquisadores atualmente – Wallon (1879-1962), Vygotsky (1896-1934), Leontiev (1903-1979), Luria (1902-1977) e Ferreiro (1937-presente). Esses dois últimos pesquisadores aprofundaram os estudos sobre a aquisição

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da escrita pela criança, sendo suas obras consideradas importantes referenciais teóricos (LEÃO, 1999).

O cognitivismo se propõe a analisar a mente, o ato de conhecer, como o homem desenvolve o seu conhecimento acerca do mundo, analisando os aspectos que intervêm nesse processo. Logo, se preocupa com o processo de compreensão, transformação, armazenamento e utilização das informações, envoltas no plano da cognição (MOREIRA, 1982, p. 3).

Ao longo de toda a história da humanidade, várias tentativas têm sido feitas no sentido de formular uma teoria de como o conhecimento humano é construído. Destarte, ao analisar o problema da fundamentação teórica das ciências humanas, Domingues (1991, p. 40) enumera três estratégias, quais sejam: a essencialista, a fenomenista e a historicista, que vigoraram, respectivamente, nos séculos XVII, XVIII e XIX, sendo que, para o autor, a última superou as duas anteriores, por ter alterado profundamente o programa de fundamentação do conhecimento, ao proporcionar-lhe uma nova configuração, como discorreremos com mais propriedade.

Na concepção dos empiristas, inspirados pela estratégia fenomenista, o conhecimento tem origem e evolui a partir da experiência acumulada pelo indivíduo. É o chamado determinismo ambiental: o homem é produto do ambiente. Por sua vez, para os inatistas, influenciados pela estratégia essencialista, o conhecimento é pré-formado; já nascemos com as estruturas do conhecimento, que se atualizam à medida que vamos nos desenvolvendo. Finalmente, o construtivismo, baseado na estratégia historicista, vem superar essas duas visões, ao afirmar que o conhecimento resulta da interação do indivíduo com o ambiente em que está inserido e com o qual interage e constrói seu campo de experiências.

Em outro grau de compreensão, na visão de Piaget, o desenvolvimento resulta de combinações entre aquilo que o organismo traz e as circunstâncias oferecidas pelo meio. O eixo central de sua teoria sobre o desenvolvimento é justamente a interação entre o organismo e o meio ambiente no qual o indivíduo está inserido.

Para um melhor entendimento, o desenvolvimento do indivíduo no processo educativo, o aprender, conforme assegura Mizukami (1986, p.76-77), implica em assimilar o objeto aos esquemas mentais, e se mostra no exercício operacional da inteligência, realizando- se enquanto o aluno (re)elabora o seu próprio conhecer. Sob tal perspectiva, o ensino consistiria em organização dos dados da experiência, de forma a promover um nível desejado de aprendizagem, de forma a conduzir o sujeito aprendente a, progressivamente, diversificar suas ações sociais, conforme as demandas e os estímulos do meio. A respeito disso, cabe à escola possibilitar a esse aluno o desenvolvimento de suas possibilidades de ação motora,

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verbal e mental, de forma que possa, posteriormente, intervir no processo sociocultural e inovar a sociedade.

Desse modo, ressalta-se a importância do professor cuja função deve ser a de criar situações de aprendizagem capazes de propiciar condições em que o sujeito aprendente possa estabelecer reciprocidade intelectual e cooperação, ao mesmo tempo moral e racional. Em decorrência disso, sua função consiste em provocar desequilíbrios, propor desafios, desde que os alunos sejam orientados a construir respostas/reações às situações-problema propostas, bem como lhes conceder ampla margem de autocontrole e autonomia.

Nas teorias construtivistas, percebe-se o papel do professor como de mediador do processo ensino-aprendizagem, uma vez que ele é quem vai promover/conduzir/gerir a interação com os alunos e consigo mesmo. Por isso, ao apresentar situações-problema, o docente terá instaurado um momento de conflito para o alfabetizando e, consequentemente, um avanço cognitivo. Assim, considera-se o aprendiz como um ser ativo, ou seja, aquele que não espera passivamente que alguém venha ensinar alguma coisa para, assim, começar a aprender, uma vez que, por si só, ele mobiliza habilidades para comparar, ordenar, classificar, reformular e elaborar hipóteses, canalizando suas ações em direção à construção do conhecimento (ELIAS, 1991, p. 50).

Em nossa realidade nacional, a abordagem psicológica dos cognitivistas foi propagada pelos educadores que fizeram parte do movimento escolanovista nas décadas de 1920 e 1930, sendo revisitada na década de 1980 e tendo grande influência na teoria da aprendizagem, em que o princípio básico é o sujeito ativo e construtor do seu próprio conhecimento, cuja construção resulta da interação do sujeito aprendente com o meio em que está inserido, evidenciando o professor na categoria de mediador.

Ressalta-se que, com o fim da ditadura militar e o retorno das eleições diretas para a escolha dos governantes em diferentes instâncias de poder, houve um momento oportuno para repensar a política educacional, ação essa que requeria urgência, tendo em vista que o quadro educacional herdado da ditadura militar era caótico do ponto de vista do desenvolvimento autônomo, criativo e crítico do sujeito aprendente em relação às configurações político- culturais em que estava inserido. Além disso, imperavam altos índices de reprovação, evasão, repetência, distorção idade-série e analfabetismo, aliados à falta de capacitação dos professores e a um grau de extrema pobreza da maioria da população. De acordo com Veiga (2013, p. 66):

Neste quadro insere-se a educação da Nova República. Os objetivos proclamados são aparentemente os mesmos dos anos de autoritarismo e inserem-se nos ideais de

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valorização e recuperação da educação em todos os níveis, de assegurar os recursos financeiros, torná-la democrática e universal, com ênfase no fortalecimento do professor, apoio ao estudante e recuperação da rede física, dentre outros.

Com a realização da “I Conferência Brasileira de Educação”, em 1980, emerge um importante espaço de discussão, luta, busca de alternativas e de conquista do direito e dever dos educadores de participar na definição dos rumos da educação que, em um primeiro momento, privilegia a denúncia da utilização da educação por parte da classe dominante como forma de imposição ideológica e reprodução da estrutura social vigente, para, em seguida, centrar-se em uma concepção educacional dialética preocupada com uma ação educativa comprometida com a transformação social (VEIGA, 2013, p. 66).

No campo específico da Didática, por iniciativa da PUC/RJ, de 16 a 19 de novembro de 1982, sob a organização de Vera Candau, realizou-se o “I Seminário: a Didática em Questão”, que objetivava promover uma revisão crítica do ensino e da pesquisa em Didática.

Na ocasião, constatou-se que a Didática não possuía um conteúdo próprio, logo se constituía num conjunto de informações fragmentadas, uma colcha de retalhos de teorias importadas, apresentando desarticulação entre a teoria e a prática, além de suas dimensões técnica, humana e política se relacionarem de forma desintegrada.

Desse modo, urgia a Didática proporcionar, no âmbito da formação de professores, a compreensão de que o cerne do processo educativo é a formação do homem e sua plena realização dentro da sociedade. Na esteira desse posicionamento, Macedo (1994) acredita que a formação de professores, calcada em uma proposta construtivista, é possível, levando em consideração quatro pontos que ele considera fundamentais: 1º) é importante para o professor tomar consciência do que faz ou pensa a respeito de sua prática pedagógica; 2º) ter uma visão crítica das atividades, dos procedimentos na sala de aula e dos valores culturais da sua ação docente; 3º) adotar uma postura de pesquisador, e não apenas de transmissor; 4º) ter um melhor conhecimento dos conteúdos escolares e das características de aprendizagem dos seus alunos (MACEDO, 1994, p. 59).

Libâneo (2012, p. 136), ao posicionar-se acerca da ideia da escola inserida na prática histórico-social, defende que ela tem a função de difundir os conhecimentos em uma perspectiva crítica, traduzindo-se em instrumento de mediação entre indivíduo e sociedade.

Como resultado da intensificação dos debates, estudos e pesquisas no campo pedagógico e didático e ante a necessidade de mudanças no cenário educacional brasileiro, a concepção dialética conquista cada vez mais adeptos, na proporção em que contribui para viabilizar novos caminhos capazes de ressignificar o campo científico da Didática. No

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entender de Libâneo (2010, p. 89), foram produzidos muitos trabalhos e pesquisas que contribuíram para o entendimento de que a Didática deve propiciar uma análise crítica da realidade do ensino por parte dos professores em formação, inicial ou continuada, a fim de compreender e transformar essa realidade, de forma articulada a um projeto político de educação transformadora.

Dessa forma, o papel da escola é fornecer ao aluno os instrumentos necessários para a transformação social por meio de um projeto político de educação. Posto isso, compete à escola difundir conteúdos ligados às realidades sociais, cujos métodos de ensino partem da relação direta com a experiência do aluno em confronto com os saberes trazidos de fora e colocados a serviço das finalidades da educação (LIBÂNEO, 1985, p. 49).

Nessa espreita, o trabalho pedagógico não está centrado no professor ou no aluno, mas na questão central da formação do homem. Diante disso, o professor é valorizado no seu papel de autoridade que orienta e favorece o processo de ensinar e aprender, no interior do qual aluno é visto como um ser concreto situado historicamente, que traz consigo um saber que lhe é próprio e precisa ser valorizado (VEIGA, 2013, p. 67).

Para aclarar mais essa compreensão, nos remetemos a um texto publicado em São Paulo, em 1996, por Freire, com o objetivo de refletir sobre a formação de professores, bem como dos saberes necessários para a prática educativa de docentes nas variadas concepções teóricas. Freire, ao discutir sobre os saberes necessários à prática educativa crítica, que, segundo ele, deve se transformar em conteúdos para a formação de professores, independentemente de sua orientação político-ideológica ou cultural, ressalta em primeiro lugar que no início do processo formativo o formando assume-se como um sujeito produtor de conhecimentos, convencendo-se de que ensinar não é transferir conhecimentos, todavia criar as possibilidades para a sua construção. É preciso esclarecer que o processo formativo é recíproco e, nessa dinâmica interrelacional pela busca dos saberes, “quem ensina aprende ao ensinar e quem aprende ensina ao aprender” (FREIRE, 1996, p. 26). Desse modo, “ensinar inexiste sem aprender e vice-versa e foi aprendendo socialmente que, historicamente, mulheres e homens descobriram que era possível ensinar” (FREIRE, 1996, p. 26).

Segundo Freire, aprender e ensinar, desde os tempos mais remotos, são ações que ocorrem imbricadas, ademais, são criações históricas que se ajustam ao momento histórico no qual acontecem, daí a busca por maneiras, caminhos e métodos de ensinar que se torna uma ação total, diretiva, política, ideológica, gnosiológica, pedagógica, estética e ética.

Para Freire (1996) somos seres programados para aprender, e quanto mais criticamente for desenvolvida essa capacidade, mais se constrói e desenvolve a curiosidade

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epistemológica que proporciona o alcance do conhecimento pleno do objeto, fator preponderante de recusa a um ensino baseado na assimilação e repetição do conteúdo.

Em síntese, além do recente processo de redemocratização no Brasil, as recomendações do “I Seminário: a Didática em Questão”, de 1981, requeria que a Didática passasse por uma revisão crítica que pensasse a prática pedagógica concreta e articulada com a transformação social, ou seja, uma Didática em “devenir”, que supere os modismos; uma Didática comprometida com o seu povo e o seu tempo (RAYS; Balzan, 1980). Em 1983, na IV Reunião Anual da (ANPED), foi proposta a revitalização, a reflexão crítica e a pesquisa em Didática, com ênfase em uma análise crítica do conteúdo da disciplina nos cursos superiores. Porquanto, visava uma Didática contextualizada que superasse o enfoque instrumental.

Nesse aspecto, é constituído o cerne da crítica tecida por Candau, ao enfatizar na prática pedagógica a relação conteúdo-forma de ensino, destacando:

Esta questão muitas vezes foi colocada na história da Didática como uma forma abstrata e a-histórica. No entanto, hoje se coloca procurando articulá-la com a reflexão sobre o papel social da escola, o caráter histórico-social da prática pedagógica da educação das classes populares. (CANDAU, 2005, p. 29).

Do pensamento da autora, apreende-se a relevância da articulação conteúdo-forma no processo ensino-aprendizagem que, diferentemente da visão defendida pelos reprodutivistas, é tomada em uma nova conotação, cujo âmago é a construção de uma escola comprometida com as minorias sociais. Assim, coerente com essa ideia, Saviani (2012, p. 122) afirma:

É nesse contexto que cabe considerar a relação conteúdo-forma. Do ponto de vista teórico, forma e conteúdo relacionam-se. Uma concepção dialética está empenhada justamente em fazer essa articulação, estabelecer essa relação entre conteúdo e método. A separação desses aspectos é própria de uma lógica não dialética, da lógica formal, pela qual se pode separar pela abstração, um elemento do outro.

Nesse horizonte de discussões teórico-metodológicas, encaminha-se o “II Seminário: a Didática em Questão” com a finalidade de repensar o ensino e a pesquisa em Didática, como forma de superação da Didática exclusivamente instrumental, desarticulada dos objetivos, fins, conteúdos e contexto sociocultural no qual os aprendizes se encontram imersos. Nesse contexto, propondo a construção da Didática na perspectiva fundamental, Candau (2005, p. 24) assevera:

Nesta perspectiva, a reflexão didática parte do compromisso com a transformação social, com a busca de práticas pedagógicas que tornem o ensino de fato eficiente para a maioria da população. Ensaia, analisa, experimenta. Rompe com uma prática

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profissional individualista. Promove o trabalho em comum entre professores e especialistas. Busca formas de aumentar a permanência das crianças na escola. Discute a relação do currículo em sua interação com uma população concreta e suas exigências e etc.

A ótica do “III Seminário: a Didática em Questão” consistiu na construção de uma proposta ainda mais crítica da Didática fundamental, já que era pressuposto o compromisso social e a construção de práticas escolares que privilegiassem as minorias dentro da sociedade. Em caráter complementar, Veiga (2015, p. 72) explicita que a Didática representa o momento da reflexão e da prática, momento em que é possível verificar como determinadas propostas educacionais estão sendo realizadas e em que medida dialoga com o campo de experiências do aluno. Por isso, afirma-se que a Didática diz respeito ao trabalho docente e, sendo uma disciplina comprometida com a formação do professor, não pode deixar de explorar o conteúdo desse tema central: o processo ensino-aprendizagem.

Em 1985, durante a VII Reunião da ANPED, as discussões giraram em torno do tema “O Momento Atual de Revisão da Didática”, o que foi reforçado na oitava reunião anual desta associação, com a finalidade de enfatizar uma Didática construída a partir do cotidiano escolar.

Um balanço crítico do caminho percorrido e uma análise da literatura, buscando alternativas para a construção do conhecimento em Didática, nortearam a IX Reunião Anual da ANPED, em que foi detectada a necessidade de estimular estudos baseados na perspectiva da Pedagogia Crítica, cuja temática é evidenciada em 1987, no IV Encontro Nacional de Didática e Prática de Ensino, em que conferencistas destacaram posicionamentos educacionais que reforçaram os caminhos para a perspectiva de uma Didática contextualizada social e politicamente. Com as palavras de Veiga:

A Didática, no bojo da Pedagogia Crítica, auxilia no processo de politização do futuro professor, de modo que ele possa perceber a ideologia que inspirou a natureza do conhecimento usado e a prática desenvolvida na escola. Enfim, a Didática deve contribuir para ampliar a percepção do professor quanto às perspectivas didático- pedagógicas mais coerentes com nossa realidade educacional, ao analisar as contradições entre o que é, realmente, o cotidiano da sala de aula e o ideário pedagógico calcado nos princípios da teoria liberal, arraigados na prática dos professores. O ensino é concebido como um processo sistemático e intencional de difusão e elaboração de conteúdos culturais e científicos. Não é difícil observar que nos encontros e seminários de educação, e, mais especificamente, nos de Didática, a tônica das discussões privilegia a análise crítica da educação, com uma visão histórica e preocupada com a transformação da sociedade (2015, p. 69).

Evidencia-se, diante da discussão apresentada por Veiga (2015), o relevante papel da Didática crítica na formação do professor, enquanto instrumento que desvela as ideologias presentes no contexto educativo, permeado pelas contradições sociais, e tendo o ensino como

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aríete da transformação social. Nesse aspecto, parafraseando Candau, o grande desafio da Didática é assumir que o método didático tem diferentes estruturantes, e não se deve exclusivar qualquer um deles, já que é preciso superar o formalismo e trabalhar dialeticamente suas diferentes formas (1987).