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A ANIMALIZAÇÃO E A ALTERIDADE ABSOLUTA DE HEATHCLIFF

No documento NOVOS TEMPOS, MESMAS HISTÓRIAS (páginas 86-89)

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Scripta Alumni - Uniandrade, n. 13, 2015.

romântico nos moldes de Byron, simultaneamente altivo e degradado, cruel e apaixonado.

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a situação do animal e as relações entre humanos e animais, propulsada por um impulso político, social e filosófico. Na virada do século XVIII para o XIX, ocorreu uma transformação nos modos de pensar o animal. Na Inglaterra, que até então era associada a esportes que envolviam crueldade animal, como bullbaiting e rinha de galos, surgiu um movimento de oposição a tais práticas. Segundo o autor, isso não excluiu as cenas de crueldade contra animais do discurso nacional, mas fez com que elas fossem mais discutidas, imaginadas e repaginadas, de modo a suscitar o choque e a indignação moral, o que faz surgir um tipo de narrativa sobre o sofrimento animal. Kreilkamp se refere a Derrida para identificar as motivações por trás de tais narrativas: ele explica que elas são uma forma de repúdio ao investimento prolongado na “virilidade carnívora” (KREILKAMP, 2005, p. 91), em que o sacrifício animal tem a finalidade de definir o ser humano, uma ideologia que Derrida chama de “carno-falogocentrismo” (KREILKAMP, 2005, p. 91).6

Para que a Inglaterra vitoriana fosse reconhecida como uma sociedade protetora dos animais, estabeleceu-se então uma categoria de animais

“inocentes”, os pets, animais para serem amados e protegidos contra os ingleses sádicos e ignorantes. Paralelamente, novos gêneros de escrita vitoriana surgiram, conferindo aos animais de estimação qualidades humanas e subjetividade. São narrativas que não deixam de perpetuar o “carno-falogocentrismo”: ao proteger uma categoria simbólica de animais, os pets, a mesma sociedade busca se redimir do ato de matar e comer animais.

Kreilkamp afirma que O morro dos ventos uivantes foi influenciado pela perspectiva vitoriana sobre os animais e as “questões de simpatia, antipatia, crueldade e bodes expiatórios” (KREILKAMP, 2005, p. 97) que surgem a partir da nova forma de pensar o animal. Narrativas sobre o sofrimento dos animais, Kreilkamp afirma, constroem três posições de sujeito: “o criminoso sádico, a testemunha sentimental e o espectador cruelmente indiferente ou testemunha” (p. 94).

No romance de Emily Brontë, de longo a longo, Heathcliff é frequentemente comparado a um animal. Adotado como um pet, precisa de proteção e hospitalidade. É levado para Wuthering Heights por Mr. Earnshaw como se fosse um animal sem dono, encontrado na rua, e é sujeito aos maus-tratos das crianças. Em sua narrativa, Nelly Dean se refere ao menino usando o pronome “it”, quando fala de sua chegada na casa e da reação das crianças: “(…) [t]hey entirely refused to have it in bed with them, or even in their room; and I had more sense, so I put it on the landing of the stairs, hoping it might be gone on the morrow. By chance, or else attracted by hearing his voice, it crept to Mr. Earnshaw’s door, and there he found it on quitting his chamber”

(BRONTË, 2000, p. 47).7 Nelly o compara a um “cuco”, que expulsa os filhotes do ninho

6 Ver: DERRIDA, J. Eating Well, or the Calculation on the Subject. In: WEBER, E. (Org.). Points. Interviews, 1974–1994. Tradução de Peggy Kamuf et al. Stanford: Stanford University, 1995, p. 255-287.

7 “Ambos se recusaram, categoricamente, receber na cama o pequeno, ou mesmo tolerá-lo no quarto. E eu não mostrei mais juízo: pu-lo no patamar da escada esperando que, pela manhã, já houvesse ido embora. Por sorte, ou porque lhe ouvisse a voz, ele se arrastou até a porta do Sr. Earnshaw, que ali o encontrou ao sair do quarto” (BRONTË, 2010, p. 51).

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hospedeiro; mais tarde, refere-se a ele como “bird of ill omen”8 (p. 128). Seu cabelo é descrito por Edgar Linton como “a colt’s mane”9 (p. 72); quando busca dissuadir Isabella de querer conquistá-lo, Cathy declara: “Heathcliff is (...) an unreclaimed creature, without refinement, without cultivation; an arid wilderness of furze and whinstone (...) He’s not a rough diamond – a pearl containing oyster of a rustic: he is a fierce, pitiless, wolfish man”10 (p. 127). Forasteiro nas categorias sociais, Heathcliff é persistentemente desumanizado no romance e sua animalização torna-se oportunidade para se testar o tratamento que os seres humanos dão aos animais, bem como problematizar a própria condição humana.

Susan Meyer, analisando a cena do romance em que Cathy e Heathcliff são capturados em Thrushcross Grange e o jovem é examinado sob a luz, afirma: “Pulled under the chandelier, scrutinized through spectacles, and pronounced upon as if he were a specimen of some strange animal species, Heathcliff is subjected to the potent gaze of a racial arrogance deriving from British imperialism11 (MEYER, 2007, p. 160, ênfase acrescentada). Kreilkamp considera que Heathcliff, animalizado, encontra-se na fenda fronteiriça entre afeto e ameaça, animal de estimação e besta feroz. Assim, Thrushcross Grange é comparada a uma casa de triagem de animais, que determina sobre os seres vivos a serem excluídos da convivência humana; os que merecem amor e cuidados; e os servirão como guardas da propriedade privada.

Um dos momentos mais significativos que Emily Brontë expressa o discurso de crueldade contra os animais é na cena em que Cathy e Heathcliff observam, do lado de fora da janela da sala de Thrushcross Grange, Edgar e Isabella brigando por terem machucado um cachorrinho ao disputarem quem iria segurá-lo. Kreilkamp identifica aqui um sacrifício típico do “carno-falogocentrismo”, que retrata o afeto abusivo dos “civilizados” por seus animais de estimação. Assim Heathcliff se depara com uma civilização que se define pela relação abusiva que seus indivíduos mantêm com seus pets, determinando o dentro dessa civilização em contraposição às criaturas que são mantidas fora dela. Heathcliff é um dos que estão do lado de fora.

Terry Eagleton, por sua vez, enxerga no personagem as marcas daquela criatura ambígua chamada pelos gregos de pharmakos:

(...) that double-edged being, at once sacred and polluted, who represents the dregs and refuse of humanity, and who poses a radical

8 “ave de mau agouro” (BRONTË, 2010, p. 51).

9 “uma crina de potro” (BRONTË, 2010, p. 51).

10 “Diga para ela quem é Heathcliff: um enjeitado, sem cultivo, sem educação; um deserto árido, feito só de espinhos e pedregulhos. (...). Não se trata de um diamante bruto, nem de uma pérola oculta dentro de uma ostra áspera: é um homem duro, implacável, um lobo” (BRONTË, 2010, p. 128).

11 “Puxado sob o lustre, escrutinizado por meio de binóculos, e mencionado como se fosse algum estranho espécime animal, Heathcliff é subjugado ao potente olhar da arrogância racial derivado do imperialismo britânico.”

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challenge to the community he confronts. If it can transcend its fear and accept this outsider thrust gratuitously upon it, a power for good will flow from this act; if it rejects it, it is cursed.12 (EAGLETON, 2005, p.139)

Tal indeterminação possibilita a ocorrência daquilo que Meyer (2007) denomina de “imperialismo reverso” no romance. O retorno de Heathcliff e sua vingança contra a opressão da sociedade britânica seguem o roteiro do pior pesadelo do poder imperialista: uma colonização invertida, quando vítima de subjugação se torna tirano cruel (MEYER, 2007, p. 171). Ou, segundo a perspectiva de Kreilkamp, o animal que fora maltratado se converte em viviseccionista, capaz de executar atos de crueldade com frieza e determinação.

No documento NOVOS TEMPOS, MESMAS HISTÓRIAS (páginas 86-89)