• Nenhum resultado encontrado

UMA EPOPEIA PÓS-MODERNA?

No documento NOVOS TEMPOS, MESMAS HISTÓRIAS (páginas 67-74)

_____________________________________________________________________________________________________

Scripta Alumni - Uniandrade, n. 13, 2015.

e sumiço do corpo de Dom Sebastião em uma batalha contra os mouros no norte da África.

_____________________________________________________________________________________________________

Scripta Alumni - Uniandrade, n. 13, 2015.

Além disso, quando começamos a ler um romance, não pensamos que que estamos diante de uma obra literária cujo gênero a que pertence surgiu a partir da epopeia, nem mesmo o leitor mais letrado faz tal associação. Talvez essa seja uma das grandes chaves de leitura para compreender a obra Uma viagem à Índia. Talvez o que esteja em jogo seja justamente isso: o autor quer nos chamar a atenção para os deslocamentos que os valores da epopeia trazem para o século XXI.

Assim como na Ilíada e na Odisseia, novas leituras possibilitaram novas divisões que, por sua vez, permitiram novas leituras dessas epopeias. Inclusive, para Ítalo Calvino, essa vai ser uma das definições de clássico: “Um clássico é um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer” (CALVINO, 2007, p. 11). Além da divisão em dez cantos, dialogando diretamente com Os lusíadas, é possível ver outras divisões (ou talvez trajetórias) na epopeia de Tavares. No momento em que se chama Bloom, o protagonista de Ulysses, de James Joyce, ele também é Odisseu, o herói que busca sua Ítaca.

Ao mesmo tempo em que refaz, de alguma forma, a trajetória da esquadra de Vasco da Gama, saindo de Lisboa para ir à Índia e, depois, efetuando o retorno, ele também é Odisseu, só nos resta saber a que Ítaca que busca nosso personagem Bloom. Essa questão não tenho ambição de responder em trabalho tão breve, mas uma pessoa com tamanha crise existencial como a de Bloom, só pode estar buscando por si mesmo. Essa teoria ainda é reforçada pelo fato de ele se chamar Bloom:

se autor quisesse apenas evocar Odisseu, tinha-lhe dado esse nome, mas ele prefere retomar o herói moderno de James Joyce, que erra o dia inteiro pela cidade de Dublin, sem destino definido.

Quanto à estrutura interna da epopeia, especificamente quanto Proposição, Invocação e Dedicatória, podemos dizer que a epopeia de Gonçalo M.

Tavares nega todas elas. No entanto, é curioso que ele se dirija a elas para descartar sua funcionalidade dentro da sua obra. Na proposição, enquanto n’Os lusíadas (na Ilíada e na Odisseia de forma mais implícita e breve), como já foi mencionado acima, o poeta nos informa sobre o que se propõe a cantar, na épica de Tavares temos mais informações sobre o que aquela narrativa não é do que necessariamente sobre o que ela é:

Não falaremos do Três Vezes Hermes nem do modo como em ouro se transforma o que não tem valor

- apenas devido à paciência, à crença e às falsas narrativas.

Falaremos de Bloom e da sua viagem à Índia.

_____________________________________________________________________________________________________

Scripta Alumni - Uniandrade, n. 13, 2015.

Um homem que partiu de Lisboa. (TAVARES, 2010, p. 25)

E assim se segue por todas as estruturas, a reafirmação de que aquela narrativa é de apenas um homem (um paradoxo para uma epopeia). No entanto, a estrutura da epopeia e o paralelo com Os lusíadas são mantidos até a última estrofe dos dez cantos da epopeia.

É tentador chamar qualquer obra contemporânea e/ou que fuja de uma estética tradicional de pós-moderna (até porque o questionamento da tradição já foi feito pelo próprio modernismo). Contudo, como nos lembra Linda Hutcheon (1988), pós- moderno não significa necessariamente um sinônimo de contemporâneo. De acordo com a teórica canadense, o pós-modernismo é antes de tudo uma força problematizadora.

Além disso, diferente de outros contextos histórico-culturais, não apresenta ruptura.

Linda Hutcheon arrisca a falar em “nenhuma ruptura” (HUTCHEON, 1988, p.16). Não sei se eu iria tão longe assim, em uma afirmação, mas é interessante pensarmos sob esse ponto de vista. O pós-modernismo antes questiona aquilo que sempre se tomou como verdade, que sempre fez parte do senso comum. Por exemplo, ninguém nunca havia questionado as palavras do narrador de Robinson Crusoé (2004) em seu relato. Pelo contrário, a obra de Daniel Defoe se tornou o arquétipo do espírito pragmático do homem inglês.

A obra Foe (1986), de J. M. Coetzee, questiona essa “verdade”, ao colocar uma mulher narrando a história. Assim, a cultura pós-moderna abre a possibilidade de a história de Robinson Crusoé ter sido narrada por uma mulher que foi apagada pela história. Linda Hutcheon classifica essa obra dentro do que ela chama de metaficção historiográfica, pois, ainda que não esteja lidando com fatos necessariamente históricos, ao questionar um texto literário consagrado pela historiografia, considerado clássico, ela aponta para o fato de que a própria história possa ter silenciado várias vozes ao longo da história.

Apesar de estruturar sua teoria usando sempre a metaficção historiográfica como ponto de partida (da qual a obra Foe é um exemplo), Linda Hutcheon não reduz o pós-modernismo a ela, mas, de certa maneira, estabelece critérios para uma obra ser pós-moderna ou não. Romances classificados como metaficção historiográfica estão estruturados sobre o tripé história, teoria e ficção.

Uma viagem à Índia, ainda que não esteja dando voz a alguma minoria, é uma obra que envolve essas três áreas. Questiona a história ao dialogar com Os lusíadas, se pensarmos no valor histórico que a epopeia de Camões possui. Uma viagem à Índia também levanta diversas questões teóricas, como discutimos ao longo deste artigo, ao comentar a estrutura da épica em diferentes períodos. Por fim, é também uma obra de ficção, finalizando o tripé estabelecido por Hutcheon. Por esse motivo e também por não estabelecer nenhuma ruptura aparente com o modernismo,

_____________________________________________________________________________________________________

Scripta Alumni - Uniandrade, n. 13, 2015.

podemos considerar Uma viagem à Índia uma obra pós-moderna, dentro da noção de pós-modernismo estabelecida por Linda Hutcheon.

CONCLUSÃO

Acredito que no caso de Uma viagem à Índia, ao lançar mão de gênero que já estaria em desuso há séculos, o autor está colocando em pauta uma discussão que não é só estética, mas também literária – e por que não – histórica, se pensarmos que Os lusíadas surgiu em um contexto histórico importantíssimo de expansão colonial, que definiu a história do ocidente. Nesse sentido, acredito que sim, que essa obra de Gonçalo M. Tavares é pós-moderna, pois se sustenta sobre o tripé que Linda Hutcheon chama de poética do pós-modernismo: ficção, teoria e história, como foi discutido anteriormente.

REFERÊNCIAS

D’ONOFRIO, S. Literatura ocidental: autores e obras fundamentais. São Paulo: Ática, 2007.

CALVINO, I. Por que ler os clássicos. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

CAMÕES, L. V. de. Os lusíadas. São Paulo: Nova Cultural, 2002.

COETZEE, J. M. Foe. London: Penguin Books, 1986.

DEFOE, D. Robinson Crusoé. Tradução de Domingos Demasi. Rio de Janeiro: Record, 2004.

HANSEN. J. A. Notas sobre o gênero épico. In: TEIXEIRA, I. (Org.) Prosopopeia. O Uraguai. Caramuru. Vila Rica. A Confederação dos Tamoios. I-Juca Pirama. São Paulo:

EDUSP/Imprensa Oficial do Estado, 2008, p. 11-23.

HEGEL, G. Curso de estética: o sistema das artes. Tradução de Álvaro Ribeiro. São Paulo:

Matins Fontes, 1997.

HOMERO. Ilíada. Tradução e introdução de Carlos Alberto Nunes. São Paulo: Hedra, 2011.

_____. Odisseia. 1. ed. Tradução e introdução de Christian Werner. São Paulo: Cosac Naify, 2014.

HUTCHEON, L. A poetics of postmodernism. London: Routledge, 1988.

_____________________________________________________________________________________________________

Scripta Alumni - Uniandrade, n. 13, 2015.

JOYCE, J. Ulysses. Tradução de Caetano W. Galindo. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2012.

KAVÁFIS, K. Ítaca. In: HOMERO. Odisseia. 1. ed. Tradução e introdução de Christian Werner. São Paulo: Cosac Naify, 2014, p. 617-8.

LUKÁCS, G. A teoria do romance. Tradução de José Marcos Mariani de Macedo. São Paulo: Duas Cidades, 2000.

MARTIN, R. P. Apresentação. In: HOMERO. Odisseia. 1. ed. Tradução e introdução de Christian Werner. São Paulo: Cosac Naify, 2014, p. 7-58.

NUNES, C. A. Introdução. In: HOMERO. Ilíada. Tradução e introdução de Carlos Alberto Nunes. São Paulo: Hedra, 2011, p. 9-51.

TAVARES, G. M. Uma viagem à Índia: melancolia contemporânea (um itinerário). São Paulo: Leya, 2010.

VIRGÍLIO. Eneida. Tradução de Carlos Alberto Nunes. São Paulo: 34, 2014.

_____________________________________________________________________________________________________

Scripta Alumni - Uniandrade, n. 13, 2015.

CARTAS QUE DESNUDAM A ALMA: POBRE GENTE, DE FIODOR MIKHAILOVITCH DOSTOIEVSKI

1

Maria da Consolação Soranço Buzelin2

RESUMO: Pobre gente é o primeiro romance da juventude de Dostoievski, que o escreveu em 1844. Apresenta uma narrativa em forma epistolar entre Makar e Varvara, os dois personagens principais. Ao identificar esses personagens, de condições sociais semelhantes, demonstraremos que eles fazem parte de uma mesma representação na obra de Dostoievski, ou seja, a de indivíduos com passado e presente conflituosos. A fim de analisar trechos deste diálogo epistolar, utilizaremos os pressupostos teóricos de Mikhail Bakhtin sobre O discurso em Dostoievski em Problemas da poética de Dostoievski. Ao compreender esse diálogo epistolar, estaremos refletindo sobre a complexidade da alma humana desses personagens, fio condutor de nossa leitura e deste trabalho.

Palavras-chave: Novela epistolar. Pobre gente. Dostoievski.

ABSTRACT: Poor folk is the first novel of Dostoevsky’s youth, who wrote it in 1844. It offers a narrative in epistolary form between Makar and Varvara, the two main characters. By identifying these characters, that have a similar social condition, we will demonstrate that they are part of the same representation in the work of Dostoevsky, that is, one that shows individuals with a conflictual past and present. In order to analyze portions of this epistolary dialogue, we will use the theoretical assumptions of Mikhail Bakhtin about The word in Dostoevsky, in Problems of Dostoevsky’s poetics. By understanding this epistolary dialogue, we will be reflecting on the complexity of the human soul of these characters, which is the thread of our reading and of this work.

Keywords: Epistolary novel. Poor folk. Dostoevsky.

1 Artigo recebido em 12 de abril de 2015 e aceito em 22 de junho de 2015. Texto orientado pela Profa. Dra.

Sigrid Renaux (UNIANDRADE).

2 Mestranda do Curso de Teoria Literária da UNIANDRADE.

E-mail: cbuzelin2004@yahoo.com.br

_____________________________________________________________________________________________________

Scripta Alumni - Uniandrade, n. 13, 2015.

A literatura... vem a ser uma pintura, em certo sentido, já se vê; um quadro e um espelho; um espelho das paixões e de todas as coisas íntimas; é instrução e educação ao mesmo tempo, é crítica e um grande documento humano.

(Makar Diévuchkin)

INTRODUÇÃO

Pobre gente é um romance epistolar iniciado em 1844 e publicado dois anos depois quando Dostoievski tinha 25 anos. É obra importante, pois além de inovar na forma epistolar, totalmente em desuso no século XIX, prenuncia muitos de seus personagens em outros contos e romances, tais como Noites brancas, Os irmãos Karamazov e Memórias do subsolo. A obra de Dostoievski, como é de conhecimento geral, começa a ser reconhecida pela sua representação do homem em suas limitações de ordem material, espiritual e psicológica. Conforme Bakhtin:

Dostoievski partiu da palavra refrativa, da forma epistolar. (BAKHTIN, 2013, p. 234)

Quem fala são Makar Diévuchkin e Várienka Dobrossiélova, limitando–se o autor a distribuir-lhe as palavras: suas ideias e aspirações estão refratadas nas palavras do herói e da heroína. (...).

Em sua primeira obra, Dostoievski elabora um estilo de discurso sumamente característico de toda a sua criação e determinado pela intensa participação do discurso do outro. A importância desse estilo na sua obra é imensa: as autoenunciações confessionais mais importantes dos heróis estão dominadas pela mais tensa atitude em face da palavra antecipável do outro sobre esses heróis, da reação do outro diante do discurso confessional destes. (BAKHTIN, 2013, p. 235- 6)

Em Gente Pobre começa a elaborar-se uma variedade “rebaixada”

desse estilo, representada pelo discurso torcido com uma mirada

_____________________________________________________________________________________________________

Scripta Alumni - Uniandrade, n. 13, 2015.

tímida e acanhada e com uma provocação abafada. (BAKHTIN, 2013, p. 236, ênfase no original)

Em Pobre gente, valendo-se do romance epistolar, Dostoievski representa a existência de Makar e Varvara, que compartilham os seus sonhos e inquietações na troca das cartas.

Para os críticos da época, Pobre gente é uma obra gogoliana, por se aproximar de O capote, de Gogol. Segundo Otto Maria Carpeaux:

Com efeito, a primeira novela de Dostoievski, Gente pobre, é uma obra gogoliana, e Bielinski, o grande crítico radical, não estava equivocado, ao celebrar a estreia do jovem escritor que frequentava então os círculos revolucionários. (...). Mas Dostoievski não continuou no realismo. Ao contrário, a sua obra inteira é um protesto apaixonado contra o determinismo, proclamando a liberdade da alma humana, seja para o bem, seja para o mal. (CARPEAUX, 2012, p. 2064)

Conforme a citação de Carpeaux, a alma humana, tema caro a Dostoievski, permeia sua obra em diálogos que falam sobre a humanidade de seus personagens.

Por meio desta análise visa-se ressaltar, no diálogo epistolar travado entre os personagens Makar Diévuchkin e Varvara Aliekiêievna, os conflitos existentes na vida de ambos, que, ao desejarem uma vida mais digna, confessam as angústias que acabam por desnudar as suas almas - tema de nossa análise. Para situar aquilo a que nos propomos, será feita uma análise dos elementos da narrativa epistolar: enredo, personagens, tempo e espaço, complementados com excertos de algumas dessas cartas, ressaltando-se o caráter intimista e confessional presente nelas.

No documento NOVOS TEMPOS, MESMAS HISTÓRIAS (páginas 67-74)