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Segundo o crítico William Somerset Maugham, alguns dos acontecimentos da infância de Goethe foram os primeiros estímulos para iniciar a escrita de sua obra sobre o personagem Meister, que em sua primeira versão intitulava-se A missão teatral de Wilhelm Meister4. O primeiro deles é que na infância, Goethe foi presenteado por sua avó com um teatrinho de fantoches e interessou-se por escrever estórias e colocá-las em cena e, quando chegou a Weimar, encontrou um local ideal para colocar suas ideias em prática, pois havia na localidade um pequeno circuito de teatro amador.

Outra aproximação entre o autor e o personagem do romance é o contato que ambos tiveram com a obra de William Shakespeare. Em um de seus escritos intitulado Zum Schäkespears Tagiii, Goethe descreve a sua sensação ao ler a primeira peça de Shakespeare equiparando-a: “(...) à de um cego de nascença que recupera a visão milagrosamente, a um prisioneiro que salta para o ar livre e fora os grilhões que lhe prendiam” (CARLSON, 1997, p. 167). Ambos os acontecimentos surgem como estímulos para a escrita do autor alemão e aparecem no romance em situações relacionadas com o personagem principal, Wilhelm Meister.

A obra conta a trajetória de um jovem burguês em busca de uma formação plena, fortemente vinculada às circunstâncias históricas e artísticas do contexto europeu vigente. Nos primeiros cinco livros de sua versão definitiva, o personagem acredita que através do teatro conseguirá a formação que tanto almeja e uma libertação de sua alma poética, impregnada de uma visão comumente atrelada ao seu mundo burguês. “O teatro e a poesia dramática são, portanto aqui somente meios para o livre e

4 Não tive acesso a essa primeira versão, mas, segundo estudo de Georg Lukács (citado em GOETHE, 2009, p.

581-605), a obra é composta de seis livros e complementava-se sobre ela mesma. A segunda e definitiva versão, datada em 1796, condensa a obra anterior em cinco livros e a estes são agrupados mais três livros, constituindo-se como um compêndio sobre uma configuração completa da sociedade burguesa da época. A versão definitiva, porém, adota a maioria dos personagens, a ação e as cenas isoladas que serão posteriormente agrupadas; e apesar de ter suprimido alguns acontecimentos por serem meramente necessários para o signo teatral, aprofunda e coloca em primeiro plano, fatos relacionados ao teatro que podem ser entendidos por Goethe, como paradoxo para um entendimento do comportamento humano.

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pleno desenvolvimento da personalidade humana” (LUKÁCS, citado em GOETHE, 2009, p. 582, ênfase no original).

No decorrer desta trajetória teatral, Meister depara-se com inúmeros artistas, amores, pessoas das mais variadas classes sociais, sem deixar de perseguir seu sonho de constituir-se como ator e como profissional, sempre com o intuito de aperfeiçoamento da formação pessoal. E Goethe não deixava de mostrar claramente a diferença que havia entre atores que se mantinham na profissão apenas pelo dinheiro e pelo círculo de potenciais mecenas e o personagem principal, que buscava constantemente um aprimoramento da técnica, a fim de tornar-se um grande profissional da área e nela encontrar sua libertação pessoal. A partir do livro VI, o foco do romance se altera e culmina na abdicação de Meister à vida teatral e em seu encontro com uma família e com uma profissão especializada, neste caso, a medicina. “O teatro transforma- se, pois, num mero momento do todo” (LUKÁCS, citado em GOETHE, 2009, p. 583). Mas qual a sua importância para o contexto literário mundial?

Segundo as palavras de George Lukács: “O Wilhelm Meister de Goethe é o mais significativo produto da literatura romanesca entre os séculos XVII e XIX” (LUKÁCS, citado em GOETHE, 2009, p. 581). Na Alemanha, até o momento da descoberta da obra de Goethe, o romance era considerado como “literatura trivial e de má qualidade” (MASS, 2000, p.13). O termo provém do latim romanic, através do francês romanz:(...) roman designava uma narrativa longa, em idioma diferente do latim clássico, na qual se representava o protagonista em suas relações e divergências com o mundo exterior” (MASS, 2000, p. 22). Somente a partir da publicação de Os sofrimentos do jovem Werther, outra obra de Goethe, é que o romance estabelece-se e começa a ser aceito por público e crítica.

Friederich Schlegel, a respeito da literatura então produzida pelos autores alemães, estabelece uma divisão em categorias: Iluminismo, Pré-romantismo – que se relaciona diretamente com o movimento Tempestade e ímpeto, Classicismo e Romantismo. Ainda segundo a pesquisadora Wilma Patrícia Maas, é neste momento que há o nascimento de uma historiografia da Literatura alemã, ou seja, uma preocupação da obra em si relacionada às escolhas estéticas e ideológicas do autor. O romance em questão funda um novo gênero, chamado de Bildungsroman5 que:

(...) sob o aspecto morfológico, é relativamente fácil a compreensão do termo (...). Por um processo de justaposição, unem-se dois radicais – (Bildung – formação – e Roman – romance) que correspondem a dois conceitos fundadores do patrimônio das instituições burguesas.

(MAAS, 2000, 13)

5“O termo Bildungsroman foi criado pelo professor de Filologia Clássica Karl Morgenstern em 1810, mas só é difundido academicamente a partir dos estudos do filósofo idealista Wilhelm Dilthey, em 1870” (MAAS, 2000, p. 13-14).

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De acordo com os dados apontados pela pesquisadora, os termos Bildung e Roman, possuem atrelados a si um complexo emaranhado de significados e estes surgem juntos ao propósito de construir uma identidade nacional alemã. Muitos críticos apontam que este fenômeno, o Bildungsroman, foi tipicamente alemão e caracterizava-se por um forte caráter impregnado com um autêntico espírito alemão vigente na época e acabou estabelecendo-se como uma das bases produtoras para quase todas as literaturas de origem europeia, incluindo a americana.

Não podemos deixar de pensar no contexto em que a Alemanha se encontrava diante das outras potências europeias da época. A Alemanha era considerada atrasada, tanto em relação ao progresso industrial quanto intelectual. A tecnologia e o pensamento eram importados, principalmente da França e Inglaterra, ao mesmo tempo em que há o surgimento de uma nova classe, a burguesia, que cresce a partir das lacunas deixadas pelas relações econômicas entre a nobreza e o povo. Toda esta efervescência, repleta de ideias inovadoras, tanto científicas quanto filosóficas, culminou nesta tomada de consciência do povo alemão em busca de sua identidade.

Foi a partir deste contexto social e dos estímulos que recebeu em sua infância que Goethe resolve escrever este romance. Para a estudiosa Wilma Patrícia Maas:

A obra de Goethe, Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister, permanece para a história da literatura, como exemplar mais perfeito do gênero, como a realização ideal de uma projeção histórica e literária conscientemente exercida por um grupo social. (MAAS, 2000, p. 133)

Segundo Brito Broca, há uma distinção entre vida literária e literatura: “Embora ambas se toquem e se confundam, há entre elas a diferença que vai da literatura estudada em termos de vida social para a literatura em termos de estilística” (BROCA, 1956, p. 11). Para que consiga estreitar os laços entre a vida particular do autor, o reflexo do mundo existente em seu entorno e que o influenciava em sua escrita e em suas ideias, minha análise calca-se, principalmente no contexto literário e intelectual que o cercava, destacando passagens de sua obra que mostravam acontecimentos, estruturas e fazeres teatrais que só seriam problematizados pelo aparecimento do encenador, no final do século XIX.

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No documento NOVOS TEMPOS, MESMAS HISTÓRIAS (páginas 35-38)