• Nenhum resultado encontrado

DIADORIM E HERMÓGENES: OPOSTOS QUE SE ANULAM

No documento NOVOS TEMPOS, MESMAS HISTÓRIAS (páginas 121-126)

_____________________________________________________________________________________________________

Scripta Alumni - Uniandrade, n. 13, 2015.

vez, à beira da loucura e ter dela escapado. Como resultado, temos um personagem tão enigmático quanto a justiça que queria impor. De fato, sua justiça não era a justiça dos fazendeiros, de Joca Ramiro, nem a justiça do político, de Zé-Bebelo, mas a justiça em seu sentido mais puro, que pende para o metafísico, como uma espécie de força consciente, a justiça por excelência.

Medeiro Vaz morre como um verdadeiro cavaleiro, sem deixar herdeiros ou herança. Mas seu nome permanece no sertão como “o mais supro, o mais sério” (ROSA, 1994, p. 16).

_____________________________________________________________________________________________________

Scripta Alumni - Uniandrade, n. 13, 2015.

Seu bando saqueava e matava mesmo quando não era necessário e espalhava o terror pela banda esquerda do rio, e até mesmo sua própria esposa o via com repulsa: “Eu tinha ódio dele” (ROSA, 1994, p. 859).

Comparado a seu comparsa (ou chefe) Ricardão (O segundo Judas), Hermógenes é visto como ente maldoso por natureza, ao contrário do outro (habitante da margem direita do São Francisco), maldoso por interesse: “Ricardão, mesmo, queria era ser rico em paz: para isso guerreava. Só o Hermógenes foi que nasceu formado tigre, e assassim” (ROSA, 1994, p. 17).

Se falar de Hermógenes é difícil, por sua natureza abstrata e perversa, ainda mais difícil é falar de Diadorim. Seu nome se repete em todas as páginas do romance, sempre acompanhado de pensamentos e adjetivos conflitantes e, às vezes, opostos.

Após a morte de seu pai, Joca Ramiro, Diadorim embarca em uma sede de vingança alucinada: “Diadorim chiou, por detrás dos dentes. Diadorim queria sangues fora de veias” (ROSA, 1994, p. 511). Na verdade, Diadorim não perdera, com a morte de Joca Ramiro, apenas um parente, perdera, antes de tudo, a razão de viver. O pai era, para ele, um símbolo, um modelo, a lembrança de que a vida no sertão valia a pena. Por isso, o leitor de Grande sertão: veredas não deve se enganar com a face furiosa de Diadorim. Seu personagem é muito mais complexo que isso.

De fato, antes da morte de Joca Ramiro e em alguns raros momentos depois dela, Diadorim surgirá como um ser místico, mágico. Na visão de Benedito Nunes, a imagem andrógena do homem perfeito de O banquete, de Platão, o ser criado à imagem de Eros que enfureceu Zeus por sua autossuficiência (NUNES, 1976, p. 164).

Diadorim surge como a imagem da própria terra sertaneja, imagem onde não só a dor e a tristeza mas também a beleza e a liberdade convivem em um só corpo. Diadorim é o sertão.

Há uma oposição declarada entre Diadorim e Hermógenes. A começar pelo ódio que os coloca em rota de colisão. Como afirma Eduardo Subirats:

Tanto Hermógenes como Diadorim estão imersos em um mundo contingente e conflitante no qual o Bem e o Mal se contrapõe como forças originárias de uma guerra permanente, sem conciliação no final.

Tanto Diadorim como Hermógenes representam também a mescla do medo e do ódio, e da vida com a morte que atravessa esta contenda eterna do Bem contra o mal. (SUBIRATS, 2014, p. 401)

Ou ainda: “Por isso, Diadorim e Hermógenes se destroem mutuamente em uma luta final corpo a corpo, sem que nenhum deles prevaleça sobre o contrário” (SUBIRATS, 2014, p. 401).

De fato há uma batalha física entre Diadorim e seu oposto, batalha na qual os corpos e o sangue se misturam:

_____________________________________________________________________________________________________

Scripta Alumni - Uniandrade, n. 13, 2015.

Sangue. Cortavam toucinho debaixo de couro humano, esfaqueavam carnes. Vi camisa de baetilha, e vi as costas de homem remando, no caminho para o chão, como corpo de porco sapecado e rapado... Sofri rezar, e não podia, num cambaleio. Ao ferreio, as facas, vermelhas, no embrulhável. A faca a faca, eles se cortaram até os suspensórios... O diabo na rua, no meio do redemunho... Assim, ah – mirei e vi – o claro claramente: ai Diadorim cravar e sangrar o Hermógenes... Ah, cravou – no vão – e ressurtiu o alto esguicho de sangue: porfiou para bem matar! (ROSA, 1994, p. 855)

Mas essa batalha violenta e mortal deve ser entendida, antes de tudo, a partir da batalha que ocorrera, anteriormente, na mente do narrador. Se, nas ações do enredo, o verdadeiro oposto de Hermógenes seria Medeiro Vaz, na mente de Riobaldo, era Diadorim, seu grande amor, que se opunha ao inevitável e poderoso ódio por Hermógenes. É na mente de Riobaldo que as duas figuras se opõem de forma tão avassaladora, oposição que se materializará, então, no sangrento duelo.

Diadorim e Hermógenes não podiam sobreviver: estavam fadados a destruir-se. Assim como o mal absoluto e o bem absoluto não podem existir em si mesmos, assim como o amor absoluto e o ódio absoluto não podem subsistir no coração do homem, Diadorim e Hermógenes se dissolvem no nada que representa o nada da existência humana, o que demonstra que nenhum ser humano pode ter em si apenas o mal ou apenas o bem: “Em lugar do triunfo final do Bem sobre o Mal, a épica rosiana dissolve seus extremos em uma concepção dinâmica do ser” (SUBIRATS, 2014, p. 401).

Fica, da parte de Riobaldo, o lamento pela perda da pessoa que mais amara na vida, mas com um amor tão intenso, tão poderoso, que, de fato, jamais poderia ter se concretizado.

O senhor mesmo, o senhor pode imaginar dever um corpo claro e virgem de moça, morto à mão, esfaqueado, tinto todo de seu sangue, e os lábios da boca descorados no branquiço, os olhos dum terminado estilo, meio abertos’ meio fechados? E essa moça de quem o senhor gostou, que era um destino e uma surda esperança em sua vida?! Ah, Diadorim... E tantos anos já se passaram. (ROSA, 1994, p. 263)

Acima de tudo isso, um amor tão forte que ofusca e dissolve todas as lembranças, até mesmo as felizes: “Diadorim é minha Neblina” (ROSA, 1994, p. 27).

_____________________________________________________________________________________________________

Scripta Alumni - Uniandrade, n. 13, 2015.

CONCLUSÃO

Os jagunços, no romance de Guimarães Rosa não são apenas capangas, são homens perdidos em um mundo confuso, homens em busca de uma identidade. Para escapar da vida nua do sertão, recorrem às armas, montam bandos, que criam suas próprias regras e se movem a partir de um código particular. O próprio narrador não passa de um “pobre menino do destino” (ROSA, 1994, p. 16) em busca de um sentido para a própria existência, alguém que aprende e amadurece com a vida difícil do sertão, não apenas com a dor e com a perda, mas também com o amor e com o ódio.

Em Grande sertão: veredas, a estrutura dualista da narrativa acaba por criar uma noção dinâmica de justiça, que muitas vezes penderá para o metafísico ou o místico. Alguns personagens se enquadram melhor naquilo que Cavalcanti Proença chama de narrativa “objetiva ou horizontal” (PROENÇA, citado em GARBÚGLIO, 1972, p.

21), como Joca Ramiro, representante da tradição política das armas, ou Zé-Bebelo, que representa o progresso do Estado e a modernidade. Outros personagens, porém, encarnam forças completamente abstratas, como Medeiro Vaz, símbolo de uma forma idealizada de justiça, ou Hermógenes, o mal absoluto, que não possui razões para matar ou torturar além do sadismo e da maldade. Estes podem ser enquadrados no que Cavalcanti Proença (p. 21) chama de narrativa subjetiva.

Diadorim é um personagem ainda mais complexo: representa a própria terra do sertão, rude e bela, mas é também a presença andrógena de Eros no coração do protagonista e seu Alter ego na travessia pelo sertão. Diadorim e Hermógenes externam a luta interior do mal contra o bem e do amor contra o ódio, luta essa presente na mente de Riobaldo, por isso se anulam e se excluem. No mundo ambíguo de Guimarães Rosa, nenhum homem pode ser polar: bem e mal se dissolvem na formação de um ser mais completo.

REFERÊNCIAS

AGAMBEN, G. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua. Tradução de Henrique Burigo.

Belo Horizonte: UFMG, 2007.

BOSI, A. A história concisa da literatura brasileira. 32. ed. São Paulo: Cultrix, 1995.

CANDIDO, A. Jagunços mineiros de Cláudio a Guimarães Rosa. In:_____. Vários escritos. 3. ed. São Paulo: Duas Cidades, 1995, p. 147-179.

_____. O homem dos avessos. In:_____. Tese e antítese. 4. ed. São Paulo: Queiroz, 2002, p. 121-139.

GARBUBLIO, J. C. O mundo movente de Guimarães Rosa. São Paulo: Ática, 1972.

_____________________________________________________________________________________________________

Scripta Alumni - Uniandrade, n. 13, 2015.

MALFETTONNE, S. A ideia de justiça de Platão a Rawls. Tradução de Karina Jannini. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

NUNES, B. O amor na obra de Guimarães Rosa. In: _____. O dorso do tigre. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 1976, p. 143-171.

PACHECO, A. P. Jagunços e homens livres e pobres. Novos Estudos, v. 1, n. 81, São Paulo, jul. 2008, p. 179-188.

ROSA, J. G. Grande sertão: veredas. 1. ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994.

SUBIRATS, E. Mito y literatura. 1. ed. México: Siglo XXI, 2014.

_____________________________________________________________________________________________________

Scripta Alumni - Uniandrade, n. 13, 2015.

A MEMÓRIA DA LEOA: UMA ABORDAGEM SOBRE A

No documento NOVOS TEMPOS, MESMAS HISTÓRIAS (páginas 121-126)