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MEMÓRIA INDIVIDUAL E MEMÓRIA COLETIVA

No documento NOVOS TEMPOS, MESMAS HISTÓRIAS (páginas 161-167)

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Scripta Alumni - Uniandrade, n. 13, 2015.

experiência como jornalista e do acesso irrestrito a arquivos de notícias, mas, da vivência no seio de uma comunidade que acompanhou, em paralelo, os fatos narrados.

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e reciprocamente, o que só é possível se fizeram e continuam a fazer parte de uma mesma sociedade. (HALBWACHS, 1990, p. 34)

Quando temos dificuldade em resgatar a lembrança de um episódio que vivemos, o testemunho de outros pode ajudar, desde que existam pontos de contato e a reconstrução se dê sobre uma base comum. Evocado individualmente, nenhum quadro do passado comum é verdadeiramente exato, mas, quando reconstruído coletivamente, é evidente que a aproximação da veracidade dos fatos seja mais provável.

Pode-se dizer que mesmo nossos sentimentos e pensamentos mais pessoais têm origem nas circunstâncias sociais. Trata-se de memória coletiva “quando evocamos um fato que tivesse lugar na vida de nosso grupo e que víamos, que vemos ainda agora no momento em que o recordamos, do ponto de vista desse grupo”

(HALBWACHS, 2007, p. 41).

O momento epifânico, que traz de roldão as lembranças do pai do personagem que narra, combina o processo de recordação individual ─ o aspecto característico do embrulho que somente ele poderia identificar naquela circunstância ─ com sua identidade de componente de um grupo, familiarizado com o endereçamento de correspondência. Mas a capacidade do escritor de tornar prazerosa a narrativa eleva ao ápice a imaginação do indivíduo que recria lembranças particulares. Examinando o envelope, o narrador estranha a simplicidade do subscrito: “Para o jornalista Carlos Heitor Cony. Em mão” (CONY, 1995, p. 10) ─ que contrasta com a verbosidade de endereçamento característica do pai:

Lembro de ter recebido em Paris, quando lá fiquei indevido tempo, um pacote de mangas carlotinhas que ele me mandou por intermédio de um amigo que tinha o apelido de “Caveirinha”. Pois lá estava no envelope que arrematava o embrulho: “Por Especial Favor do Desembargador, Professor e Bacharel João de Deus Falcão, o Caveirinha”. (CONY, 1995, p. 16)

Não apenas se evidencia o aspecto do entrelaçamento memória coletiva-memória individual, mas da oposição ficção-realidade. O leitor que conhece a biografia de Carlos Heitor Cony, o autor em carne e osso, sabe certamente de seu exílio voluntário em Paris durante a ditadura militar. Lá está o referente extratextual transformado em personagem de uma narrativa que oscila entre os gêneros romance, província do fictício e da imaginação, e memória, que teoricamente respeita a veracidade dos fatos.

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O nó no cordão que amarrava o embrulho é fator relevante para identificá-lo como de autoria do pai. A descrição cheia de humor de como o pai aprendera a dar o famoso nó mescla o individual do narrador, que vira centenas de exemplos, e o testemunho reconstruído do protagonista central das memórias. O pai conhecera um marinheiro holandês no bar do Zica, na Praça Mauá, reduto boêmio, no térreo do edifício do jornal A noite, onde substituía um colega em férias. A história é meio enrolada, mas pitoresca.

O marinheiro sabia poucos ofícios em terra. Mesmos assim, depois de dormir o dia inteiro, à noite se instalava numa mesinha dos fundos do bar do Zica e ali ficava ensinado truques de baralho e outros truques – nem todos inocentes, como o de transformar uma nota de dez qualquer coisa (dólares, pesos, francos, liras, coroas ou cruzeiros) em uma de cem. (CONY, 1995, p. 41)

Como o pai já mudara mais de uma vez a versão da gênese do nó, levantam-se dúvidas sobre sua veracidade. Prossegue a narrativa com outros relatos ilustrativos da personalidade excêntrica do protagonista. O pai contara também uma versão própria de como o jornal em que trabalhava na época, e que passava por grande dificuldade financeira, resolvera lançar um terceiro candidato à presidência da república.

Isso iria tirar o jornal do buraco e o novo presidente, que seria mineiro, salvaria o Brasil.

Uma história hilariante, e difícil de acreditar, das artimanhas que dois golpistas usaram para extorquir o governador de Minas Gerais, que seria o dito candidato, explorando a vaidade do político que aspira ao poder. Mas “o resultado de tudo isso foi que, o pai, além de ficar sem salário aquele mês, logo depois ficaria sem emprego” (CONY, 1995, p. 126).

A respeito das próprias reminiscências do narrador, que abrangem os primeiros anos de vida, convém citar novamente Halbwachs, que enfatiza a relevância da memória coletiva, na formação do pensamento e da identidade individual. As lembranças não são percebidas, na primeira infância, em que os reflexos dos objetos exteriores não se misturam com imagens e pensamentos de outras pessoas e grupos. Para Halbwachs (2007), só se pode ter lembranças depois que a pessoa se torna um ser ativamente social.

Na infância, em muitos momentos, a família não está por perto, a criança, então, passa por circunstâncias inevitáveis, podendo se chocar e ferir, começando aí, a preparação para a vida adulta. O narrador-personagem passou por momentos difíceis na infância, no período escolar. Biografias do autor informam que o menino começou a falar com cinco anos de idade, depois de levar um susto com o barulho de um hidroavião que se aproximou da praia onde estava brincando com o pai. Em consequência, sempre teve problemas de dicção:

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Tudo por causa do diabo de minha dicção. Eu não pudera, até então, frequentar regularmente os colégios. Além de criar problemas com colegas – que caíam em cima de mim, maltratando-me, fazendo com que eu me habituasse à solidão que no fundo eu ainda não desejara, os professores desanimavam de me ensinar a pronunciar certos ditongos, perdiam a paciência, chamavam o pai, aconselhavam a que me arranjasse outro colégio. (CONY, 1995, p. 103)

Na obra em análise, provavelmente o narrador-personagem se recorda muito bem desse tempo porque sofria bullying na escola. Esta parte da lembrança é muito forte para ele, e não precisaria se apoiar em nenhuma memória coletiva para relembrar os fatos. Já em contrapartida a família é o seio do lar para uma criança, lugar onde ela participa mais intimamente nesta época de sua vida, lugar de presença, segurança e felicidade:

Sabendo que era uma festa, ele me acordava, embora minha mãe reclamasse, acordar uma criança por causa tão boba, os balões demorariam a ser feitos, haveria tempo para aproveitar aquilo tudo, ela não entendia que eu tinha pressa, e o pai também. Se tínhamos que ser felizes, queríamos ser felizes já. (CONY, 1995, p. 96)

O narrador-personagem descreve histórias e acontecimentos entre sentimentais, nostálgicos e hilariantes, mas todos inesquecíveis. O leitor se deleita com a maneira de narrar e segue, de um episódio a outro, a construção deliciosa da personagem das memórias escritas por Carlos Heitor Cony. Os prováveis exageros e invenções falam em favor da imaginação do autor e de maneira genial, fazem com que o leitor se deleite com os relatos divertidos, como, por exemplo, o episódio em que o pai resolveu fabricar perfumes com o amigo Giordano, sem nada conhecer. Como era de esperar, o experimento não deu muito certo:

As duas gotas que colocara no pulso esquerdo de Giordano, pelo natural das coisas e pelos rumos inexoráveis da ciência, já deviam estar evaporando. Mas o fixador (...) em vez de fixar o perfume havia fixado o álcool. A chama descontrolada do colossal pavio lambeu o pulso de Giordano, o álcool (...) já havia se entranhado nos poros do italiano. Assim obtivemos, aos gritos, a terceira e última palavra de Giordano naquela noite: - Merda! (Vai em destaque porque foi proferida em italiano, embora soe e se escreva de modo igual ao português). (CONY, 1995, p. 38)

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No dizer de Mark Twain, não existe humor no céu, porque o humor é cruel, envolvendo sempre o desagrado ou o constrangimento de quem é alvo do riso.

Existe, sim, um ressaibo de amargura nas quase-memórias de Carlos Heitor Cony, seja nas esperanças não realizadas ou, principalmente, nas injustiças sofridas pelas personagens.

CONCLUSÃO

Na obra Quase memória, quase romance o narrador-personagem se mostra um contador de causos, de maneira deliciosa e muitas vezes nostálgica, de

“tempos que ficaram fragmentados em quadros, em cenas que costumam ir e vir de minha lembrança, lembrança que somada a outras nunca forma a memória do que eu fui ou do que outros foram para mim” (CONY, 1995, p. 95). Assim, percebe-se que a narrativa abarca a essência da realidade, recriada e subvertida pela memória, em uma mescla intrincada de biografia e traços autobiográficos, em níveis variáveis de ficcionalidade.

Como diz o próprio autor: “Uma quase-memória, ou um quase- romance, uma quase-biografia. Uma quase-quase que nunca se materializa em coisa real como esse embrulho, que me foi enviado tão estranhamente. E, apesar de tudo, tão inevitavelmente” (CONY, 1995, p. 95).

Na obra, o entrelaçamento entre o real e o imaginário evoca um passado distante onde a figura paterna ganha vida e os limites da individualidade são ultrapassados pelos eventos histórico-culturais retratados nas lembranças do narrador.

Repetimos, à guisa de reforço, a citação de Rossi: “(...) a memória (...) sem dúvida tem algo a ver não só com o passado, mas também com a identidade e, assim (indiretamente), com a própria persistência do futuro” (ROSSI, 2007, p. 24).

O personagem Cony comenta fatos históricos que fazem parte da memória e da identidade nacional, levando, assim, o diálogo entre a ficção e a realidade ao campo das Memórias como historiografia, narrativas da história de vida de grandes vultos. Em guinada de cento e oitenta graus, no entanto, optamos pela categorização do texto como romance, cujo mecanismo de construção é a memória. É impossível ler como gênero referencial, seco e objetivo, um texto em que a memória é mecanismo de construção literária, mas equilibrado pela técnica narrativa variegada, pela adequação de estilo e pela agudeza do humor, que satiriza homens e instituições.

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REFERÊNCIAS

BOSI, E. Memória e sociedade: lembranças de velhos. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.

CONY, C. H. Quase memória, quase romance. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

HALBWACHS, M. A memória coletiva: memória individual e memória coletiva. Tradução de Beatriz Sidou. São Paulo: Centauro, 2006.

_____. A memória coletiva. Tradução de Laurent Léon Schaffter. São Paulo: Vértice;

Revista dos Tribunais, 1990.

LEJEUNE, P. O pacto autobiográfico, de Rousseau à internet. Tradução de Jovita Maria Gerheim Noronha e Maria Inês Coimbra Guedes. Belo Horizonte: UFMG, 2008.

LIMA, L. C. História. Ficção. Literatura. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

MOISÉS, M. Dicionário de termos literários. 4. ed. São Paulo: Cia. das Letras, 1985.

ROSSI, P. O passado, a memória, o esquecimento. Tradução de Nilson Moulin. São Paulo:

UNESP, 2007.

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