• Nenhum resultado encontrado

AS DUAS MARGENS DO RIO: UM HOMEM EM BUSCA DE UM CAMINHO

No documento NOVOS TEMPOS, MESMAS HISTÓRIAS (páginas 115-118)

A bipolaridade da narrativa é às vezes tão acentuada que ultrapassa o plano da simples linguagem e deixa marcas visíveis até mesmo no enredo do romance:

“O São Francisco partiu minha vida em duas partes” (ROSA, 1994, p. 436). A afirmação

_____________________________________________________________________________________________________

Scripta Alumni - Uniandrade, n. 13, 2015.

de Riobaldo ajuda a ilustrar a dualidade narrativa de Grande sertão, simbolizada pelas duas margens do rio, como explica Antonio Candido:

Atentando para sua função no livro, percebemos com efeito que ele divide o mundo em duas partes qualitativamente diversas: o lado direito e o lado esquerdo, carregados do sentido mágico-simbólico que essa divisão representa para a mentalidade primitiva. O direito é fasto;

nefasto o esquerdo. (...). Na margem direita a topografia parece mais nítida; as relações mais normais. (...). Na margem esquerda a topografia parece fugidia passando a cada instante para o imaginário, em sincronia com os fatos estranhos e desencontrados que lá acontecem. (CANDIDO, 1971, p. 124)

Atravessar o São Francisco significa encontrar o desconhecido. Por isso, para chegar ao outro lado, é preciso coragem, como bem lembra Diadorim. Aliás, é com Diadorim que Riobaldo atravessa o São Francisco pela primeira vez, na inusitada cena dos dois meninos que não sabem nadar deslizando sobre o rio turbulento na pesada canoa de peroba que pode submergir a qualquer momento, ou, nas palavras do menino canoeiro: “Esta é das que afundam inteiras” (ROSA, 1994, p. 144). Diadorim menino encoraja o menino Riobaldo: “Carece de ter coragem... – ele me disse. Visse que vinham minhas lágrimas? Dói de responder: – Eu não sei nadar... O menino sorriu bonito.

Afiançou: – Eu também não sei. Sereno, sereno” (p. 145).

De fato, a cena representa a futura travessia, da margem direita (margem do menino Riobaldo e de sua mãe, do padrinho Selorico Mendes, de mestre Lucas e de Dona Dindinha, também do futuro fazendeiro narrador, de sua esposa Otacília e do compadre Quelemém) para a esquerda (território do jagunço Urutu-Branco, da caçada ao sanguinário Hermógenes, do pacto nas Veredas-Mortas, do mortal deserto do Suçuarão, da violenta batalha de Tamanduá-tão e da morte de seu grande amor).

Diadorim acompanha Riobaldo nessa travessia da mesma forma que acompanhará na outra, como se fossem duas partes inseparáveis do mesmo ser: “Diadorim era um sentimento meu” (ROSA, 1994, p. 439).

A vida ao lado de Diadorim se torna um aprendizado. Com Diadorim, e graças a ele, Riobaldo encontra algumas das belezas do Sertão: oásis, flores à beira do rio, serras, chapadões e o Manuelzinho-da-croa, “o mais belo e gentil de todos os passarinhos” (ROSA, 1994, p. 196). Não que tais belezas estivessem ocultas, mas era preciso olhar para o lugar certo. Nas palavras de Bebedito Nunes: “(...) é Diadorim menino quem introduz Riobaldo no mundo maravilhoso e áspero do sertão, que o Rio simboliza” (NUNES, 1975, p. 160). Além disso, práticas como estupro e roubo eram comuns entre os jagunços, mas Diadorim abominava ambas. Seu senso de justiça era mais aguçado que o do companheiro e acabou por influenciá-lo.

_____________________________________________________________________________________________________

Scripta Alumni - Uniandrade, n. 13, 2015.

A travessia do São Francisco pode ser considerada o primeiro passo na transformação e no amadurecimento de Riobaldo. Foi o momento em que o medo deu lugar à liberdade. Foi também o início, ainda que simbólico, de sua vida de armas, nas veredas do sertão. Morre o menino Riobaldo, nasce o Jagunço Tatarana.

Um segundo estágio no amadurecimento do protagonista-narrador se iniciou em uma madrugada, no topo de um monte, numa encruzilhada deserta e pedregosa conhecida como Veredas-Mortas. O que aconteceu ali foi, de fato, um mistério, pois nem o narrador consegue discernir os reais efeitos do que fizera, mas o verdadeiro mal fora invocado. Aparentemente, nada ocorrera. Ao contrário do espalhafatoso Mefisto de Goethe, o Demônio, aqui, não se mostrara fisicamente, mas deixou efeitos na mente de Riobaldo: uma maior clareza em seus raciocínios e a futura ausência de sonhos. Além disso, em futuros combates, seu corpo parecerá à prova de balas ou facadas, como na velha lenda sertaneja do “corpo-fechado” (ROSA, 1994, p.

199). Nasce o dilema que o perseguirá até a velhice, e o medo disfarçado da existência do Diabo.

O pacto fora uma forma de equiparar-se a Hermógenes (outro pactário, conforme diziam alguns), mas não apenas isso. Foi, antes de tudo, a maneira encontrada para atingir a liberdade, para que nenhum outro o dirigisse, uma espécie de autoiluminação. Como bem lembra Eduardo Subirats, o demônio, aqui, possuiu também as características dos antigos demônios gregos: a iluminação e a revelação das realidades do mundo. O Pacto de Riobaldo3 “se cristaliza, sim, como uma aliança entre a vontade subjetiva de ser e a plenitude existencial de ser” (SUBIRATS, 2014, p. 376). E, apesar da visível maldade que surge depois da invocação, maldade percebida apenas por Diadorim, após a madrugada nas veredas mortas, Riobaldo se tornou mais lúcido e mais sábio, como se os segredos do mundo lhes fossem, repentinamente, revelados, de forma que até mesmo a passagem pelo perigoso Liso do Suçuarão tornou-se fácil. Morre, nas Veredas-Mortas, o jagunço Tatarana, nasce o perigoso chefe Urutu-Branco.

O último estágio na evolução de Riobaldo, a última légua na estrada que o formaria como homem, começou com a morte de Diadorim e a revelação de que o amigo de armas era, na verdade, uma mulher, na cena mais trágica e mais conhecida do romance. Depois da morte de Diadorim, Riobaldo embarca em uma espécie de iluminação eclesiástica e percebe toda a vaidade da vida debaixo do sol e a futilidade das mortes desnecessárias de tantos amigos e inimigos. As razões para o combate, que antes pareciam tão concretas, perdiam agora qualquer sentido. Com a morte de Diadorim, morre também o valente chefe Urutu-Branco. Nasce, em seu lugar, o fazendeiro pacífico do Curralzinho. Morre o “homo actuandi” (GARBUGLIO, 1972, p. 23, ênfase no original);

nasce o “homo cogitandi” (p. 23, ênfase no original).

O que permanece, no fim da história contada ao longo de seiscentas páginas, é o caminho percorrido por um menino que se torna homem e, por meio da vida

3 Citação traduzida do original em espanhol pelo autor deste artigo.

_____________________________________________________________________________________________________

Scripta Alumni - Uniandrade, n. 13, 2015.

de Riobaldo, percebemos que a justiça não é um fim, mas uma longa estrada a ser percorrida, uma Vereda nesse grande sertão que tem o tamanho do mundo:

Só o que eu quis, todo o tempo, o que eu pelejei para achar, era uma só coisa – a inteira – cujo significado e vislumbrado dela eu vejo que sempre tive. A que era: que existe uma receita, a norma dum caminho

certo, estreito, de cada uma pessoa viver. (ROSA, 1994, p. 692)

JOCA RAMIRO, ZÉ-BEBELO E MEDEIRO VAZ: A JUSTIÇA DOS CHEFES

No documento NOVOS TEMPOS, MESMAS HISTÓRIAS (páginas 115-118)