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DICOTOMIAS ESTRUTURANTES E VOZES QUE COMPARECEM

No documento NOVOS TEMPOS, MESMAS HISTÓRIAS (páginas 99-102)

No livro são retratados dois tempos distintos: o primeiro desenvolve- se em dezembro de 2002 e, o segundo, de janeiro de 1560 a março de 1561. As divisões dos capítulos indicam lugares determinados, tais como Goa, o Índico, Moçambique e as margens do rio Zambeze. A narrativa de Mia Couto coloca em situação de exposição, confronto e análise as várias culturas e crenças do homem moçambicano, conduzindo a narrativa a um movimento espiralar.

Há, no romance, uma dicotomia que o percorrerá a todo tempo.

Trata-se da diferença entre terra e água (ora representada pelo mar, ora pelo rio):

“Mwadia Malunga fez uma concha das mãos e recolheu água do rio. Depois, foi derramando uns pingos sobre a pele. Assim, a sua nudez se revelava, gota a gota, fresta

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Scripta Alumni - Uniandrade, n. 13, 2015.

a fresta. A terra a vestia, a água a despia” (COUTO, 2006, p. 36). A terra, nesse contexto, representa certas características culturais e emocionais da personagem que são reveladas a partir do encontro da água com o seu corpo que, por sua vez, cria um estado de contemplação e êxtase na personagem. Até a origem da Mwadia é vista a partir relação dúplice entre a terra e a água: “Quando tomou nos braços. Constança não nutria dúvidas: a menina tinha sido tomada por uma divindade das águas. Mwadia passara a ter duas mães, uma da terra, outra da água” (COUTO, 2006, p. 85).

Sobre a relação entre terra e mar, verificar-se-á a linguagem como voz que marca a terra e o silêncio – humano – como marca do mar. O silêncio do mar é preenchido pela voz dos sujeitos. O mar bravio, em seu silêncio, oferece espaço para que a voz dos hábitos culturais de uma cultura não dominante seja escutada. O clamor, posto na relação humana como recurso criador de uma comunidade, reflete o silêncio do mar:

Enquanto se discutia, um grumete subiu ao cesto da gávea e testemunhou a existência de pingos de cera verde. Era a prova que o navio tinha sido visitado. Em estado de alucinação, os mareantes se encontraram por debaixo da vela grande e em coro saudaram os espíritos: Salve, Salve! (COUTO, 2006, p. 159)

O mar é constantemente posto como indomável e, para tanto, personificam-no como um ser mítico que não fala, mas anseia por sacrifícios e presentes:

“O oceano Índico recebia os fardos e exalava perfumes e colorações novas: aos poucos, como uma troca desse sacrifício, as ondas amainaram e a tempestade serenou. (...). A imagem de Nossa Senhora cobria os receios de uns e de outros” (COUTO, 2006, p. 159).

Ainda, a voz dos homens que estão no mar é uma voz que carrega desejo e história:

- Sou o que lhe vou dar fogo!, disse o negro, com vaidade.

O orgulho vinha de longe: o ajudante de meirinho não era um simples cafre. Tinha sido capturado no Reino do Congo e enviado para Lisboa em troca de mercadorias que o Rei Afonso I, aliás Mbemba Nzinga, mandara vir de Portugual. Nsundi era um “trocado”, uma moeda de carne. O homem custara uma espingarda, cem espoletas, cinquenta balas de chumbo, um barril de pólvora e uma pipa de cachaça.

(COUTO, 2006, p. 53, ênfase no original)

Em relação a isso, para Todorov, a rememoração dos fatos históricos é necessária para construir a identidade social. A memória de um povo é fundamental para a afirmação da sua identidade. Eis o trecho que confirmar tal posicionamento: “A evocação do passado é necessária para afirmar a própria identidade,

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tanto a do indivíduo quanto a do grupo. Sem dúvida, um e outro também se definem por sua vontade no presente e seus projetos de futuro, mas não podem dispensar-se dessa primeira evocação” (TODOROV, 2002, p. 195). O jogo entre silêncio e a voz mostra ao leitor hábitos e entes importantes, próprios da particularidade de cada cultura. Nos momentos em que há voz, há também as memórias de determinada comunidade, seja dos moradores de Vila Longe ou dos tripulantes do navio.

É possível observar que Zero Madzero é caracterizado pelo silêncio e ausência. Não obstante, para Madzero, “o silêncio não é a ausência da fala, é o dizer-se tudo sem nenhuma palavra” (COUTO, 2006, p. 14). Apesar de ser quase desprovida de voz, possui grande capacidade irônica, de tal forma a romper com certo ideário religioso:

- Vou no caminho de ser Deus.

Arrependeu-se da ousadia do pensamento. Na igreja lhe ensinaram que Deus só é único, mais que único. Ele que apagasse a multidão de deuses familiares, essas divindades africanas que teimavam em lhe povoar a cabeça. Madzero era um “postori”. Noutras palavras, ele era um crente da Igreja Apostólica, criada por John Marange em 1930.

Não seria exatamente um caso de fé, pois aos “vapostori” apenas porque, para ele, o nome soava como um aportuguesamento da palavra pastores, e não de apóstolos. A seita seria onde os pastores pobres como ele se reuniriam e evocariam o dia em que o planeta inteiro se converteria numa reverdejante paisagem. (COUTO, 2006, p.

16, ênfase no original)

O discurso que se fez hegemônico por vias religiosas é desarticulado, e tal desarticulação é feita de forma quase inocente, como uma brincadeira linguística. No entanto, deve-se lembrar: “Ao escritor participante ou militante é solicitado que ele tenha consciência crítica dos processos literários que utiliza”

(ABDALA JÚNIOR, 2003, p. 110). Assim, os trechos que parecem desprovidos de criticidade, talvez sejam frutos de certa militância, ainda que não consciente.

O jogo de silêncio e vozes nos revela mais. A voz do Mestre Arcanjo, o barbeiro da Vila Longe, é de um homem amargurado com a política do país, refletindo o inconformismo e a resistência contra o sistema opressor: “Arcanjo Mistura – Mestre Arcanjo, como lhe chamam – é um homem desiludido, amargo com o rumo político do país, inconformado com aquilo que chama o ‘prateleirar’ da Revolução” (COUTO, 2006, p.

119-20). A voz do barbeiro que comparece possibilita uma autorreflexão sobre o romance: “- O que não é nosso num mundo em que tudo nos roubam?” (COUTO, 2006, p. 24). O romance moçambicano aqui referido faz-nos refletir sobre a literatura enquanto espaço onde vozes silenciadas podem falar. Assim, o fato de hábitos culturais e críticas

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discretas serem formuladas, já indica certa militância pós-colonial, onde outros personagens possuem voz.

A PRODUÇÃO DE UMA NOVA IDENTIDADE E SUAS ESTRATÉGIAS DE

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