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A CONSTRUÇÃO DO TEXTO COMO JOGO

No documento NOVOS TEMPOS, MESMAS HISTÓRIAS (páginas 133-138)

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Scripta Alumni - Uniandrade, n. 12, 2014.

lembranças de imagens da cidade para reconstruir os fatos que narra. O narrador de Rosa apoia-se na lembrança para reconstituir os fatos na tentativa de manter a existência do pai e, consequentemente, a sua, como guardião da vida de seu pai que é.

Por meio das palavras do filho, ficamos sabendo que o tempo passou e que ele próprio já está velho: “Eu sofria já o começo da velhice. (...). Eu mesmo tinha achaques, ânsias, cá de baixo, cansaços, perrenguice de reumatismo” (ROSA, 2005, p. 81). O narrador de Scliar da mesma forma faz alusão ao tempo que passou: “Passavas por uma fase de profunda depressão, de angústia existencial. Que é o dinheiro? – me perguntavas.

Estávamos os dois com sessenta anos” (SCLIAR, 2000, p. 117).

A memória pode ser concebida como uma volta ao passado, por meio da qual fatos também passados serão resgatados no presente. Podemos entender a memória presente nos dois contos como o efeito de desconstrução já que tem no passado um ponto de interrogação para o presente.

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No conto, Uma história porto-alegrense, várias dicotomias se fazem presentes:

a) afirmação e negação: no primeiro parágrafo: “Não penses que estou reclamando, não” (SCLIAR, 2000, p. 115), a personagem, por meio da ironia, reclama no decorrer de todo o conto, tentando disfarçar através do uso da expressão “eu gostava de ti”;

b) conforto e desconforto: a personagem narra as várias mudanças sofridas por ela: “A cidade progredia e a essa altura eu já não tinha mais motorista, porque Petrópolis contava – me disseste entusiasmado – com transporte abundante digno de uma cidade moderna: bondes, ônibus” (SCLIAR, 2000, p. 117);

c) importância e descaso: ao nos falar de sua vida, presenciamos todas as transformações sofridas na vida da personagem e os extremos vividos: “(...) alugaste para mim uma casa no Menino Deus. E que casa! O antigo palacete de um barão, situado no meio de um verdadeiro parque: (...). Um paraíso que durou pouco”

(SCLIAR, 2000, p. 115 -116);

d) presença e ausência: encontramos referência no trecho:

Decidiste que eu deveria me mudar. Gostavas da casa, e a querias para ti, de modo que tive que sair.

(...). Casaste com a tua prima Rosa Maria e assumiste um cargo na direção da firma do pai dela. E aí começaste a aparecer cada vez menos (...). Me instalaste ali porque eu era, dizias, a tua rainha; e de fato como rainha eu vivia (...) eu olhava para a água que entrava no barco e concordava. (SCLIAR, 2000,p. 115-118)

e) escuro e claro: nessas transições temporais, notamos a sucessão de ganhos e perdas da personagem, ocorridas na narrativa. No princípio, as lembranças da protagonista parecem indicar que o amor entre os personagens é como uma luz, que aos poucos vai se instalando, torna-se cinza até a completa escuridão.

Da mesma forma, podemos entender no conto A terceira margem de um rio, essa mesma teoria exposta acima. Tanto nas dicotomias existentes como na elaboração das palavras. A dicotomia se faz presente nos contrastes:

a) ordem e desordem: quando no primeiro parágrafo o narrador diz:

“Nosso pai era homem cumpridor, ordeiro, positivo; e sendo assim desde mocinho”

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(ROSA, 2005, p. 77) para mais a frente declarar: “Mas se deu que, certo dia, nosso pai mandou fazer para si uma canoa” (p. 77), mostra um pai ordeiro e a partir do “mas”

como a desordem se instala;

b) presença e ausência: a presença é suscitada pela transformação sofrida na vida desse pai: “(...) do que eu mesmo me alembro, ele não figurava mais estúrdio nem mais triste do que os outros, conhecidos nossos” (ROSA, 2005, p. 77), e a ausência, sentida pelo filho que passa a vida na contemplação do rio: “Se o meu pai, sempre fazendo ausência. (...) esta vida era só o demoramento” (p. 81);

c) razão e realidade: está presente na busca do filho pela causa que levou o pai a se ausentar e a culpa que o filho carregará ao não conseguir cumprir sua própria sugestão: “A gente teve de se acostumar com aquilo. Às penas, que, com aquilo, a gente mesmo nunca se acostumou, em si, na verdade” (ROSA, 2005, p. 79), para logo chegar à realidade – ao fugir do pai –, carregará a sua culpa: “Sei que agora é tarde, e temo abreviar com a vida, nos rasos do mundo” (p. 82).

CONCLUSÃO

Os limites entre a vida e a arte, a realidade e a ficção permeiam os contos de Rosa e Scliar. Ao analisá-los, é possível perceber que ambos se aproximam em muitos pontos, tais como: as mudanças nas vidas das personagens, os espaços que ficam à margem dos rios e a procura de uma saída para o caos de suas vidas.

Nada nos dois contos fica explícito para o leitor. É necessário que se adentre as narrativas de Scliar e Rosa para obter novas significações no emaranhado linguístico dos textos. Não é possível, ao leitor, distanciar-se e apenas interpretar o que lê; torna-se necessário buscar a subjetividade não só na linguagem, mas também em cada um dos personagens.

Como mencionamos anteriormente, em seu ensaio sobre a simbologia da água, Bachelard (1997) considera a morte uma viagem. E é essa viagem que os dois personagens empreendem. Sabemos que as almas transportadas na barca de Caronte têm que vagar por cerca de cem anos e que duas moedas devem ser colocadas nos olhos dos mortos como pagamento pela travessia. Como nenhum dos dois personagens parece ter recursos para pagar Caronte, imagina-se que suas almas vagarão nos rios para sempre.

Dessa forma, na sequência narrativa, seguimos o caminho dos personagens. Em Scliar, nas bifurcações de ruas e casas em constantes mudanças e, em Rosa, na contemplação de um rio, cuja água desliza à procura de seu destino. Esses rastros, deixados pelos personagens na tessitura dos textos, é o caminho que o leitor

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deve seguir para buscar a subjetividade e tentar clarificar a ambiguidade. Milton Nascimento, ao compor a música A terceira margem do rio, expõe esse entrelaçamento:

Água da palavra, água calada pura (...) Margens da palavra clareia, luz madura (...) Casa da palavra, onde o silêncio mora Hora da palavra, quando não se diz nada

Fora da palavra, quanto mais dentro aflora (...). (NASCIMENTO, 1992)

O compositor ao escrever essa canção usa a ambiguidade como instrumento para mostrar os espaços silenciosos do texto, os mesmos espaços silenciosos que encontramos nos contos de Rosa e Scliar. Ao questionamento dos narradores aliamos o nosso próprio: Qual seria essa terceira margem, na qual o narrador de Rosa mergulha para terminar seus dias? O narrador de Rosa diz: “Mas, então, ao menos, que no artigo da morte, peguem em mim, e me depositem também em uma canoinha de nada, nessa água, que não para, de longas beiras” (ROSA, 2005, p. 82); e o narrador de Scliar: “Deixar que as correntes do Guaíba me levassem ao sabor do destino” (SCLIAR, 2000, p. 118).

Os espaços em branco nos dois textos podem representar incerteza, angústia, caos e complexidade. Parecem oferecer mais uma indagação do que uma resposta para o destino das duas personagens. No conto de Scliar, a narradora encerra com ironia: “Espero que recebas essa carta. É que estou escrevendo já do meio do rio – é primeira vez que mando uma carta numa garrafa jogada às águas” (SCLIAR, 2000, p.

118). Será que essa garrafa jogada ao léu, tal como foi a vida da personagem, chegará a algum destino? No conto de Rosa o que fará a personagem? “(...) e, eu, rio abaixo, rio afora, rio adentro-o rio” (ROSA, 2005, p. 82). Qual será a margem sonhada por essas personagens, imersas na angústia?

Este trabalho apresenta uma, dentre várias possibilidades de leitura dos dois contos. Outros leitores, sofisticados ou não, poderão juntar suas interpretações e seus questionamentos aos nossos e, ao fazê-lo, irão paulatinamente enriquecer e aprofundar o significado desses textos ficcionais.

REFERÊNCIAS

ALMEIDA, A, A. A estética na obra de Moacyr Scliar: Ensaio sobre a loucura. Triplov, n.

27, Fortaleza, mai. 2012, s/p.

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BACHELARD, G. A água e os sonhos: Ensaio sobre a imaginação da matéria. Tradução de Antonio de Pádua Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 1997.

_____. A terra e os devaneios do repouso. Tradução de Paulo Neves. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

BAUDELAIRE, C. As flores do mal. Tradução de Mário Laranjeira. São Paulo: Martin Claret, 2011.

BERMAN, M. Tudo que é sólido desmancha no ar: A aventura da modernidade. São Paulo: Companhia das Letras, 1982.

CANDIDO, A. A educação pela noite e outros ensaios. São Paulo: Ática, 1989.

_____. Literatura e sociedade: Estudos de teoria e história literária. São Paulo: Nacional, 1973.

CHIAPPINI, L.; VEJMELKA, M. (Orgs.). Espaços e caminhos de João Guimarães Rosa:

Dimensões regionais e universalidade. In: PAPETTE, L. A canoa e o rio da palavra:

Margens da história. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009, p. 327-339.

CULLER, J. Sobre a desconstrução: Teoria e crítica do pós- estruturalismo. Tradução de Patrícia Burrowes. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1997.

NADIA, J. Dicionário Rideel de mitologia. 1. ed. Tradução de Denise Radonovic Vieira.

São Paulo: Rideel, 2005.

NASCIMENTO, M. A terceira margem do rio. Disponível em: <http://www.

vagalume.com.br>. Acesso em: 21 jul. 2014.

ROSA, J. G. A terceira margem do rio. In: _____. Primeiras estórias. Rio de Janeiro:

Nova Fronteira, 2005, p. 77-82.

SEVCENKO, N. Literatura como missão: Tensões sociais e criação cultural na primeira república. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

SCLIAR, M. História porto-alegrense. In: ZILBERMANN, R. (Org.). Melhores contos. São Paulo: Global, 2000, p. 115-118.

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SOLFIERI DE ÁLVARES DE AZEVEDO: O FANTÁSTICO NA

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