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O SÉCULO XIX

No documento NOVOS TEMPOS, MESMAS HISTÓRIAS (páginas 69-72)

O romance como conhecido hoje estava, no fim do século XVIII, início do XIX se adaptando aos novos moldes, afinal, até aquele momento a forma clássica era a vigente. A partir daí, além da literatura em prosa precisar ganhar espaço, ela agora passa a se envolver em assuntos totalmente cotidianos, pois suas principais temáticas se voltam para as experiências de pessoas comuns.

A esse respeito, Ian Watt (2010) dedicará seu estudo A ascensão do romance, a fim de compreender tal período e afirmará – tendo por base os romancistas Defoe, Richardson e Fielding – que é nesse momento que se começa a pensar numa noção de indivíduo particularizado, dando inclusive nomes aos personagens. O que hoje nos parece algo tão comum não era assim considerado antes do século XVIII. Dessa forma, a literatura começa a passar por mudanças significativas.

Sobre as mudanças que se dão, entre outros fatores, devido à diferença de perspectiva de olhar do romance em vista de outros gêneros literários, Watt afirma: “(...) o romance se diferencia dos outros gêneros e de formas anteriores de ficção pelo grau de atenção que dispensa à individualização das personagens” (WATT, 2010, p. 18).

Se analisarmos o personagem Carlos de Viagens na minha terra, publicado em 1846, entenderemos a afirmação do crítico literário. Isso porque temos um personagem complexo, cheio de desejos, com vida interior, absolutamente, portanto, humano. Além disso, é um sujeito que se pensa, se analisa, reconhece seus erros, é, como a pesquisadora Maria Ema Ferreira (1997) o define, um “herói moderno”. Vários trechos do romance seriam dignos de estudo, a princípio analisemos o fragmento em que o narrador nos conta que depois de receber uma carta de Joaninha, Carlos decide

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(...) ir ao prazo dado, no fim do dia. Mas o dia era longo, custou-lhe a passar. Todas as ponderações da noite lhe recorreram ao pensamento; todas as imagens que lhe tinham flutuado no espírito se avivaram, se animaram, e lhe começaram a dançar na alma aquela dança de fadas e duendes que faz a delícia e os tormentos destes sonhadores acordados que andam pelo mundo e a quem a douta faculdade chama nervoso; em estilo de romance, sensíveis; na frase popular, malucos.

Carlos era tudo isso. Para que o hei eu negar? (GARRETT, 2008, p.

128, ênfase no original)

Por esse fragmento, percebemos que “O drama de Carlos reside na instabilidade afectiva, na inconstância amorosa. Carlos é um homem dividido por sentimentos contraditórios e inconciliáveis” (FERREIA, 1997, p. 27). À vista disso, a última frase é reveladora, uma vez que o próprio narrador reconhece a complexidade do seu personagem e possibilita ao leitor que faça o mesmo. Diante dessa asserção, podemos afirmar que há uma diferença de prisma dada ao personagem pelo romancista, dado que, há também um novo formato na literatura do século XIX.

Além disso, Carlos é ainda relevante para esta análise, pois é a ele cedida voz quando temos acesso à carta deixada pelo personagem, que preenche desde o capítulo quarenta e quatro até o quarenta e oito, já no fim das viagens. Diante dessa carta, temos a mudança de foco narrativo, pois o narrador em primeira pessoa, como já apontado, sai de cena e temos pela voz de Carlos a narração dos fatos. Temos assim, um personagem narrador e um narrador que passa a ser leitor e personagem da trama. Isso ainda nos vale, já que teremos em O ano algo similar – apesar de seu narrador não sair de cena como o de Garrett – ambos problematizarão a narrativa permitindo que seus personagens façam parte da discussão sobre ela.

Antes de entrarmos mais detidamente na utilização desses personagens na construção autorreflexiva, trataremos ainda do século XIX, uma vez que ele nos ajudará a entender de que paradoxo tanto falamos.

Outro teórico que se debruçou sobre o “a ascensão do romance”, e o início do século XIX, foi Luiz Costa Lima. O pesquisador ainda nos revela que devido a toda essa mudança na literatura e com o gênero romanesco em ascensão alguns autores optaram por apresentara narrativas ambíguas, as que alternavam “realidade” e ficção, devido à necessidade da autoafirmação do romance. Sobre isso, Costa Lima faz a seguinte declaração:

O romancista tinha que desviar-se da suspeita que o perseguia, dando a entender que participaria da crença de que o romance é uma espécie de história (...). Mais do que estratégia comercial, a

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recorrência à ambiguidade se impunha como ato de sobrevivência.

(LIMA, 2009, p. 197-198)

A autoafirmação, segundo Costa Lima (2009), era uma necessidade comum nesse período, por isso, temos notícias de tantas histórias que foram encontradas e prefácios que afirmam que a narrativa que irá se iniciar é a história de um primo, tio, ou de algum parente distante, por exemplo, temos aquelas narrativas que eram apresentadas como que se estivessem sido encontradas.

Para melhor observar essas tentativas de aproximação com o leitor, poderíamos pensar em diversos autores do século XIX6, um deles, como já se sabe, é o nosso escolhido, Almeida Garrett e suas viagens. Viagens porque devemos lembrar que nela se encontram duas narrativas, ou viagens, a primeira é a viagem do narrador a Santarém; e a segunda se refere às demais histórias que o narrador nos conta, como da menina dos rouxinóis ou a da Santa Iria.

A primeira viagem foi feita pelo narrador, e dessa surgem as demais, que são narrativas curtas introduzidas dentro dessa narrativa principal. Uma delas, a mais importante, ou que tem maior destaque, é a história que envolve Joaninha e Carlos.

Ela é contada ao narrador e ele depois é quem nos conta, em linhas gerais temos a história amorosa que envolve os primos, Carlos e Joaninha, e suas tragédias familiares.

Mas ela é mais que um romance entre esses dois personagens, é o plano de fundo que Garrett utiliza para problematizar a receita que analisamos no início deste trabalho, consequentemente é também por ela que teremos diversas passagens autorreflexivas.

Por essas duas viagens temos o paradoxo de que viemos falando, Garrett as utiliza para confundir o leitor e a história de Joaninha nos é supostamente descrita como contada a partir de testemunhos reais, afinal, o narrador tem acesso a ela por um companheiro de viagem. Não é a toa também que no fim de sua viagem, o narrador se encontra com frei Dinis, irmã Francisca e nos lê a carta de Carlos. Ao colocar narrador e personagens na mesma cena, dá à narrativa um cunho de verdade e, se autoafirma, como Costa Lima, nos alertou. Porém, em outros tantos momentos, dialoga com o leitor para lhe mostrar que a obra é uma construção ficcional, em alguns momentos chega a pedir, que as leitoras votem, por exemplo, como em uma das cenas que veremos na análise sobre Viagens, ou seja, intercala ficção e realidade e, desse modo, promove o paradoxo.

6 Em Amor de perdição, Camilo Castelo Branco inicia seu texto afirmando que a história a ser contada é uma história real e nos fornece páginas de livros para ratificar a existência do seu personagem principal Simão Botelho. Ainda com Camilo temos em sua obra Vinte horas de liteira, uma viagem que durará a narrativa toda e o assunto principal, entre o narrador e seu amigo, é a literatura. As obras apontadas nos diálogos entre os dois serão as narrativas escritas por Camilo Castelo Branco.

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Fica claro que a tentativa do escritor é fazer com que haja a tal aceitação de que Costa Lima nos informou há pouco, por isso, ele coloca seu leitor em um jogo ambíguo. Ao tomar essa postura, nos dá uma narrativa que a todo o tempo se interroga e se analisa; ademais, faz com que o leitor se posicione diante do que lê, produzindo assim uma obra reflexiva.

Garrett, como dito, promove um paradoxo, a fim de convencer seu leitor de que nem tudo o que lhe era dado a ler era ficção, então envolve seu leitor num jogo que ora brinca com a ficção, ora se concentra na realidade. Atestamos que isso era também uma maneira de Garrett educar seu leitor e lhe mostrar que sua literatura se diferenciava das demais. Mas e Saramago? O escritor do século XX não sente mais a mesma necessidade de educar seu público, pelo menos, não dá maneira como Garrett precisou fazer. Então por que Saramago também promove esse jogo ambíguo?

Para tratarmos melhor desses jogos, diante dos quais somos colocados quando nos deparamos com as narrativas, vamos aos narradores e suas possíveis saídas de cena para ceder suas vozes aos que ajudam a promover a ambiguidade nas obras, e com isso auxiliam na construção da autorreflexão.

No documento NOVOS TEMPOS, MESMAS HISTÓRIAS (páginas 69-72)