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DE COMO A MORTE TRAZ INÚMERAS REFLEXÕES

No documento NOVOS TEMPOS, MESMAS HISTÓRIAS (páginas 114-119)

Não sou religioso mas tenho assistido a muita mágica.

Sou supersticioso e acredito em milagres.

A vida é feita de acontecimentos comuns e de milagres.

(Jorge Amado)

O conto De como o mulato Porciúncula descarregou seu defunto reúne muitas das estratégias utilizadas por Jorge Amado para produzir suas inúmeras obras, as quais contribuíram e ainda contribuem largamente para a formação da identidade nacional brasileira, especialmente na Bahia. Ao longo da leitura do referido conto, é possível observar alguns destes recursos: a caracterização da morte, que sempre caminha próxima à vida das personagens; o sincretismo religioso; a importância das festas e tradições populares; a herança colonial – com a influência dos coronéis e donos de latifúndios, que tudo podem; os valores consolidados pela tradição histórica por meio de estereótipos sexuais (a meretriz, discutindo o papel da mulher) e raciais (negros, mulatos e estrangeiros); a amizade e a solidariedade no cotidiano tão sofrido do povo, por meio da personagem Tibéria; a busca da liberdade, expressa pelo simbolismo do cais do porto e do mar.

Para Alexandre Lôbo, professor e sociólogo, há inúmeras facetas na obra de Jorge Amado: “Embora cada obra possua vida própria, o sonho do tempo está na sua lida de escritor, como se de um ponto emergente da alma pudesse enxergar e compreender o país que gira à sua volta, do qual faz parte e se tornou referência”

(LÔBO, 2009, p. 11).

A narrativa é transmitida por um narrador onisciente – aquele que conta a história em 3ª pessoa e, às vezes, permite certas intromissões narrando em 1ª pessoa. Ele conhece tudo sobre os personagens e sobre o enredo, sabe o que se passa no íntimo das personagens, conhece suas emoções e pensamentos. Numa noite chuvosa, algumas pessoas estão bebendo no bar do personagem Alonso. O personagem Gringo lembra-se quase sem razão do Natal de sua terra. Porciúncula então começa a contar a história de um antigo amor, a prostituta Maria do Véu, apelidada dessa maneira por possuir uma obsessão de assistir a casamentos. O maior desejo de Maria, vestir-se de noiva, acaba se realizando apenas depois de sua morte, causada por uma forte gripe, numa macabra cerimônia improvisada pelas colegas de profissão, tendo Porciúncula

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como noivo. A narrativa do mulato é o “descarrego” dessa história fúnebre.

Como podemos observar, com esse breve resumo da narrativa, nota- se, desde o título, que a morte será tema fundamental durante a trama. Isso é percebido não somente no que se refere à heroína Maria do Véu, mas também dentro das molduras que o autor constrói no início da narrativa, quando nos apresenta primeiramente a trajetória do personagem Gringo, o qual, segundo muitas histórias contadas pelo povo, havia matado um homem e uma mulher a facadas:

Essa história de mulher com dezessete facadas nas partes baixas, nunca consegui saber como veio parar ali, entupida de minúcias, e mais o caso do moço patrício dele, perseguido de porto em porto, até o Gringo lhe enfiar a faca (…). Não sei mesmo, pois, se ele carregava esses mortos consigo, nunca quis se aliviar da carga (…). E olhem que morto é carga pesada, já vi muito homem valente largar seu fardo até em mão de desconhecido quando a cachaça aperta. Quanto mais dois defuntos, mulher e homem, da faca no bucho... O Gringo nunca arriou os dele, por isso tinha as costas curvadas, do peso, sem dúvida. (AMADO, 1959, p. 9)

Verificamos que a morte possui uma conotação espiritual e mística muito grande dentro do enredo. Ela não representa somente o falecimento de alguém, mas um fardo a ser carregado por quem a provocou, presenciou ou sofreu em sua decorrência. Esse fardo pesado, de acordo com a concepção do narrador, e, por conseguinte, do autor, deveria ser “descarregado”, compartilhado com outras pessoas.

Nesse sentido, é possível entender o porquê do título da obra, já que a maneira que o mulato Porciúncula encontrou para compartilhar sua dor foi contando a história de seu amor por Maria do Véu às pessoas que estavam no bar do Alonso, naquela noite. “Por aí parou o mulato Porciúncula, não houve jeito de lhe arrancar nem mais uma palavra da história. Já tinha descarregado em cima de nós seu defunto, tinha se aliviado do fardo”

(AMADO, 1958, p. 45). Segundo Alexandre Lôbo:

A morte adquire nuances de traço cultural na comunidade, pois decompõe-se em detalhes que fazem parte da vida dos personagens, revelando estereótipos de seus sentimentos mais simples. Em Jorge Amado, a morte convive com a vida e, para tanto, um forte desejo natural e sobrenatural, material e espiritual, mistura-se estreitamente para formar um todo, onde os mortos – invisíveis, mas sempre presentes – tomam a mesma parte dos vivos. Esta comunhão

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perpétua com os espíritos e as forças do além manifestam um sentimento de plenitude, onde a inocência, o medo e o vazio unem- se à saudade. (LÔBO, 2009, p. 84)

Já que estamos considerando o tema da morte como recorrente na obra de Jorge Amado, é coerente examinar também o que a Antropologia tem a dizer a respeito desse tema, dentro do contexto cultural brasileiro. Roberto DaMatta, renomado antropólogo e professor da Universidade de Notre Dame, nos Estados Unidos, investiga, em seus estudos, as características e os dilemas do homem brasileiro contemporâneo.

Conforme o crítico, a abordagem que se dá para o assunto da morte é diferente, dependendo da sociedade que analisamos:

Todas as sociedades têm que dar conta da morte e dos mortos, mas há um padrão visível quando se lança os olhos sobre a questão. De um lado há sistemas que se preocupam com a morte, de outro há sistemas que se preocupam com o morto. É claro que não se pode estabelecer um corte radical, mas há uma tendência para ver a morte como importante, descartando o morto; e uma outra que tende a ver o morto como básico, descartando obviamente a morte. (…). De fato, não deixa de ser significativo o fato de, nas sociedades individualistas, as práticas serem de destruir o morto, dele não devendo ficar nem mesmo uma memória, pois aqui pensar sistematicamente no morto e falar constantemente dele traz uma atitude classificada como patológica. (…). Falar abertamente da morte define uma atitude moderna e destemida diante da vida, algo que denuncia um questionamento ―científico‖ e uma procura ―tranquila‖ e resignada face a um momento que, um dia, se espera, será decifrado como tudo o mais. Discursar sobre os mortos, porém, revela o exato oposto, sendo algo sentimental e mórbido. (DAMATTA, 1997, p. 135)

Dessa forma, a morte no Brasil é vista pelos indivíduos de forma diferente de como é vista em outras sociedades, a exemplo da americana, individualista, na qual se acredita que a morte é uma passagem definitiva, a qual recebe grande ênfase, não havendo mais motivos para que o morto seja referenciado com tanto interesse, já que isso demonstraria um apego desnecessário, representando um traço de fraqueza, inclusive, e uma eterna ligação com um passado já sem importância para o futuro. Para DaMatta, as sociedades tribais e tradicionais – e a brasileira é legítima representante desse tipo de sociedade – valorizam a memória do morto porque nelas o sujeito social não é representado pelo indivíduo em si, mas pelas relações entre esses indivíduos, que, mesmo após a morte, continuam a ser lembrados, homenageados e invocados:

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(...) nos sistemas relacionais, a morte tem um tratamento diferenciado.

Uma atitude fundamental que passa pelo crivo de um conjunto de relações sociais imperativas que são, de fato, muito mais importantes do que o morto que se foi e do que os vivos que ficaram e com ele mantinham elos indissolúveis. Não compreender, então a contundência moral e ideológica da rede de relações sociais que dá realidade aos membros destas sociedades é não poder interpretar corretamente essa verdadeira obsessão pelos mortos ao lado deste desprezo intelectual pela morte. (DAMATTA, 1997, p. 137)

No contexto cultural brasileiro, de acordo com Roberto DaMatta, fala- se muito mais dos mortos do que da morte, uma atitude clara de negação dessa última, visto que a memória do morto é prolongada a cada vez que se fala nele, uma maneira de reafirmar as relações que o falecido mantinha em vida e uma forma de eternizá-las, portanto. E, por isso mesmo, a ideia de espíritos e almas que retornam de outro mundo é tão comum para a cultura brasileira:

Se as pessoas morriam e acabavam para o mundo dos vivos, iam para um outro mundo de onde podiam não só retornar, mas também vigiar, atrapalhar ou ajudar a vida dos vivos que ficavam aqui embaixo.

Ou seja, a morte no Brasil é concebida como uma passagem de um mundo a outro, numa metáfora de subida ou descida – algo verticalizado, como a própria sociedade – e jamais como um movimento horizontal, como ocorre na sociedade americana, onde a morte é quase sempre encapsulada na figura de uma viagem aos confins, limites ou fronteiras do universo. (DAMATTA, 1997, p. 141, ênfase no original)

Tomando-se por base tal teoria, é possível visualizar claramente a separação entre as duas atitudes relacionadas à questão da morte, dentro da narrativa: a de Gringo, que se recusa totalmente a sequer falar sobre os acontecimentos; e a de Porciúncula, o qual conta cada detalhe das memórias que guarda. Embora sejam mortes completamente diferentes, acontecidas em situações totalmente diversas, é possível fazer uma relação entre as posturas dos personagens: Gringo, estrangeiro, evita compartilhar os fatos com as pessoas ao seu redor; e Porciúncula, mulato brasileiro, faz questão de relembrar a história de seu romance com a falecida Maria do Véu. Pode-se ir ainda mais além, para verificarmos que, assim como teoriza Roberto DaMatta, o sobrenatural é uma constante na cultura brasileira, pois, ao fim da trama, o mulato narra um fato incomum:

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Agora, junto da cama, sentou-se Porciúncula, era o noivo, tomou da mão de Maria (...). Maria do Véu estava sorrindo, antes não sei, naquela hora estava sorrindo, assim contou Porciúncula, garantindo ademais que não estava bêbado naquele dia, nem tinha tocado em cachaça. Tirou os olhos do rosto tão lindo, espiou pra Tibéria. E jura que viu, viu de verdade, Tibéria virada em padre, envergando aquelas vestimentas todas de abençoar casamento, com corda e tudo, um padre gordo, com jeito de santo. (AMADO, 1937, p. 44)

É justamente pelo fato de a obra de Jorge Amado poder ser citada como uma das maiores representantes da cultura e da literatura brasileiras que é possível fazermos essas associações, afinal, o autor baiano descreve em suas narrativas os mais típicos costumes do país, especialmente os da região nordeste. Sobre a morte e os costumes brasileiros, Roberto DaMatta afirma:

(…) visitamos, falamos, presenteamos, homenageamos e sentimos saudades dos nossos mortos. Temos obrigações para com eles, devendo cuidar de seus túmulos e ossos, provendo para que não se percam ou se destruam e, naturalmente fiquem sempre unidos em família. Todo esse conjunto de relações impressionou (e ainda impressiona) os estrangeiros sensíveis que nos têm visitado, sobretudo quando são protestantes... (DAMATTA, 1997, p. 146)

Além de Roberto DaMatta, outro autor que também discorre sobre tais conceitos na sociedade brasileira é o sociólogo Gilberto Freyre, em sua destacada obra Casa-grande & senzala:

(…) abaixo dos santos e acima dos vivos ficavam, na hierarquia patriarcal, os mortos, governando e vigiando, o mais possível a vida dos filhos, netos e bisnetos. Em muita casa-grande conservavam-se seus retratos no santuário, entre as imagens dos santos, com direito à mesma luz votiva de lamparina de azeite e às mesmas flores devotas.

(FREYRE, 1977, p. 84)

Reafirmando a importância que o tema da morte possui, neste conto de Jorge Amado, há ainda outra passagem interessante, na qual observamos mais uma caracterização do assunto, pela afirmação do narrador: “Por esse tempo, o mulato Porciúncula abusou de esperar. Cansado de bancar besta, andando de dedo agarrado, ouvindo conversa na beira do mar. Todo homem tem seu orgulho, ele viu que era sem

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jeito, era muito sofrer, não estava para morrer de xodó, que é a morte pior de todas”

(AMADO, 1959, p. 35). Pode-se notar aqui uma concepção romântica da morte, já que, dentre todas as formas de morrer, a pior é quando se morre de amor. É dessa ideia que partimos para a segunda parte deste trabalho, a qual visa relacionar o conto de Jorge Amado em questão com a literatura de cordel, que tem, dentre suas características principais, a atmosfera romântica enaltecida.

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