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OS ESPAÇOS DA NARRATIVA

No documento NOVOS TEMPOS, MESMAS HISTÓRIAS (páginas 171-174)

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Scripta Alumni - Uniandrade, n. 12, 2014.

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desmonte familiar, mesmo porque a família, moral e socialmente, já se encontrava destruída.

Após essa primeira migração de Clarisse, junto com Carlos e Rui, ocorre sua segunda migração, agora rumo a Luanda, capital de Angola. Os irmãos foram mandados para lá por Isilda, sobre o pretexto de Carlos e Clarisse estudarem no liceu, fato que não se confirma, pois a verdadeira intenção da mãe era livrar-se da vergonha social que a figura de Carlos e o comportamento de Clarisse lhe infligiam.

Em Luanda, ocorre a descoberta da gravidez de Clarisse. Rui se compadece do sofrimento emocional e das dores da irmã e se aproxima dela, porque, além de ter de lidar com o fato de Carlos ir estudar no liceu e se distanciar deles, Rui também sofre com a sua doença. O ápice dessa aproximação é percebido quando ele narra o momento em que Clarisse some atrás da cortina do lugar onde será feito o aborto.

Amadeu e Carlos, desprezados por suas esposas, Isilda e Lena, por causa do estigma de mestiço que caracteriza a figura de Carlos, são as personagens que se encontram mais afastadas do eixo familiar. A mestiçagem, uma culpa histórica que atravessa gerações, pune tanto o colonizador quando o colonizado, porque a ação natural do colonizador é a exploração com a perpetuação utópica da raça homogênea, livre de influências culturais ou genéticas do povo colonizado. Com isso, os frutos dessa influência ou aqueles que a promoveram são fadados ao exílio social que os castiga, fato representado pelo desprezo de Isilda e Lena por seus maridos.

O abandono é promovido por Portugal, quando cria condições somente de exploração do país colônia e não de desenvolvimento, sendo os filhos de portugueses, nascidos em uma colônia, estigmatizados e por isso desprezados em Portugal, que era, antes, por eles, imaginado como pátria.

(...) por não sermos tolerados, aceitos com desprezo em Portugal, olhados como olhávamos os bailundos que trabalhavam para nós [evadidos] de uma aldeia qualquer sobre penhascos de onde vínhamos, habitando no meio de pretos e quase como eles, reproduzindo-nos como eles na palha, nos desperdícios, nos dejetos (…). (ANTUNES, 1999, p. 243-244)

Sendo mestiço, Carlos também não era reconhecido como filho de Angola. Por isso, ele viveu seu exílio de modo ainda mais profundo, quando a guerra civil o fez imigrar, junto com os seus irmãos, para Portugal.

O círculo da ancestralidade, em O esplendor de Portugal, pede que os descendentes dos degredados sejam exilados novamente de seu país de nascimento para sua “pátria-mãe”, que é a cultura de referência, a qual tenta ser imitada e preservada na

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colônia.

Com isso, Clarisse, Rui e Carlos são exilados em Portugal, como ocorreu com seus avós, quando foram para Angola. Lá, os irmãos buscam sua identidade portuguesa, a qual não será fácil obter, pois irão pedir com insistência uma pensão ao Estado, que, depois de ser negada, acaba por igualá-los aos mestiços, negros e indianos, isto é, aos “não-civilizados”.

Esse retorno dentro do círculo da ancestralidade é a metáfora do processo de desterritorialização que Portugal estava vivenciando. Angola como colônia e território português já não existe mais e cabe ao país europeu assimilar política e socialmente essa realidade, assim como ocorre com os irmãos.

Os exilados portugueses, mandados para os países colônia, eram a pária da sociedade, como prostitutas, inválidos, bandidos, miseráveis, entre outros, e Angola, agora superior a Portugal em seu próprio território, devolve todos eles: Rui, um epilético; Clarisse, uma prostituta; Carlos, um mestiço; e Lena, uma branca pobre, obrigando-os a viver no subúrbio da Ajuda.

Já em Portugal, morando num apartamento comprado pelos pais, Carlos sofre seu exílio particular, ao viver olhando o rio pela janela, sempre rememorando sua verdadeira pátria: Angola. Esta afirmação de Bacherlard: “(...) para além das lembranças, a casa natal está fisicamente em nós. Ela é um grupo de hábitos orgânicos” (BACHELARD, 1993, p. 33) mostra por que Carlos não se habituou a Portugal.

A sua pele negra é a marca identitária contundente de que Angola é realmente a sua casa natal.

Carlos, divorciado de Lena, é obrigado a conviver com ela, mesmo sem se suportarem. Contudo, o problema de Carlos não se revela no desamor que Lena nutre por ele, mas em sua condição de mestiço e, agora em Portugal, mulato, o que o desqualifica como sujeito social, excluído e humilhado até mesmo pela população mais humilde.

Os irmãos não conseguem resolver as suas diferenças, que continuam os afastando. Por isso, a casa, como um reduto familiar, apresenta-se como um lugar de conflito, em vez de ser um ambiente fraterno. A importância da sala do apartamento reside na tentativa de Carlos reunir os irmãos e resgatar os referenciais familiares, no Natal de1995, como numa catarse, a fim de reconstruir sua identidade.

Carlos percebe como inútil a consecução desse projeto, pois os seus traumas apresentam-se para a sociedade em sua própria pele, que não pode ser modificada. Assim, ser mulato é como carregar uma tatuagem, que por si só fala contra ele mesmo e o resgate ancestral da África o subjugaria ainda mais.

Carlos é a única personagem que, ao permanecer olhando o rio e buscar unir os laços familiares, apresenta um projeto de vida e com isso um sonho. O rio que o leva novamente a Angola e que representa esse sonho de renovação é o que podemos chamar, como menciona Bachelard, de casa “sonhada”: “(...) a casa do futuro é

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mais sólida, mais clara, mais vasta que todas as casas do passado. No oposto da casa natal trabalha a imagem da casa sonhada” (BACHELARD, 1993, p. 74).

A mudança da casa senhorial, na baixa do Cassanje, para a casa de Alvalade, em Luanda, e depois para o apartamento, na Casa de Ajuda, em Portugal, mostra o processo de afrouxamento dos laços familiares, favorecendo o afastamento dos avós, pais, irmãos e criados (escravos). Não ocorrem o amadurecimento e a união entre os irmãos, quando se afastam dos outros membros da família ou quando aprendem a viver por si. Ao contrário, isso apenas aumenta o sentimento do exílio, que é trabalhado de forma particular por cada um.

O desejo de celebrar o Natal, data em que a narrativa se inicia, tem um caráter dúbio e transgressor. Símbolo de união familiar em torno do nascimento de Jesus, ele, na verdade, apresenta-se pelas memórias, como o começo e o fim da ancestralidade.

No documento NOVOS TEMPOS, MESMAS HISTÓRIAS (páginas 171-174)