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A DESCONSTRUÇÃO DO ROMANCE ROMÂNTICO

No documento NOVOS TEMPOS, MESMAS HISTÓRIAS (páginas 89-94)

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Scripta Alumni - Uniandrade, n. 12, 2014.

onisciente, plano e imparcial.

Uma das primeiras vezes que o narrador se refere ao leitor em Dom casmurro, nota-se uma discussão autoteórica. O texto brinca com o conceito de verossimilhança e simultaneamente joga em relação ao tempo da narrativa. Trata-se de um momento importante do texto, no qual o protagonista reconhece os primeiros arroubos de seu sentimento por Capitu. É possível pensar neste destaque de interpelação, não somente sob a perspectiva de quebra do pacto ficcional, mas também como uma maneira de suspender a narrativa:

Eu, leitor amigo, aceito a teoria do meu velho Marcolini, não só pela verossimilhança, que é muita vez toda a verdade, mas porque a minha vida se casa bem à definição. Cantei um duo terníssimo, depois um trio, depois um quatuor... Mas não adiantemos; vamos à primeira parte, em que eu vim a saber que já cantava, porque a denúncia de José Dias, meu caro leitor, foi dada principalmente a mim. A mim é que ele me denunciou. (ASSIS, 1971, p. 18)

Ao projetar um provável leitor empírico dos romances românticos, acostumados à progressão narrativa e a sucessão dos acontecimentos ficcionais, o narrador suspende o pacto, interrompendo a narrativa, no intuito de brincar com a ideia de suspensão e clímax. Anteriormente ao exposto acima, o narrador discursa sobre a comparação entre a vida e a ópera durante um capítulo todo: uma metáfora para se falar sobre a vida e a literatura. Ao terminar, ensaia o retorno ao caso de amor, adiando mais um instante a história entre ele e Capitu.

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morte de um herói que não se reconhece na glória, que oscila entre os comentários romanescos e a melancolia fúnebre, estabelecendo uma ruptura significativa na maneira de narrar da época. Em Dom casmurro, o narrador parece por vezes construir um romance romântico para em seguida destruí-lo, por meio de sua insegurança doentia, trazendo à tona também o herói de outrora, agora fragilizado.

Em Memórias póstumas de Brás Cubas este joguete entre o romance romântico e a proposta machadiana fica bastante visível quando o autor se autointitula realista e literalmente desconstrói o estereótipo do herói romântico:

Tinha dezessete anos; pungia-me um buçozinho que eu forcejava por trazer a bigode. Os olhos, vivos e resolutos, eram a minha feição verdadeiramente máscula. Como ostentasse certa arrogância, não se distinguia bem se era uma criança com fumos de homem, se um homem com ares de menino. Ao cabo, era um lindo garção, lindo e audaz, que entrava na vida de botas e esporas, chicote na mão e sangue nas veias, cavalgando um corcel nervoso, rijo, veloz, como o corcel das antigas baladas, que o romantismo foi buscar ao castelo medieval, para dar com eles nas ruas do nosso século. O pior é que o estafaram a tal ponto, que foi preciso deitá-lo à margem, onde o realismo o veio achar, comido de lazeira e vermes, e, por compaixão, o transportou para os seus livros. (ASSIS, 1960, p. 54)

As obras aqui analisadas negam, portanto, absolutamente, a estrutura particular dos romances românticos. Pois, em ambos os textos os elementos constituintes da narrativa (o narrador, a linearidade da história, o tempo, a construção dos personagens e a complexidade dos protagonistas: a mocinha e o herói, bem como a ideia de final feliz) são estruturados para contrapor-se ao formato tradicional, contando constantemente com a companhia do leitor ficcional, a ser interpelado, elemento importante para esta “contraestrutura” machadiana.

É possível notar que a respeito das figuras dos narradores, Dom casmurro e Memórias póstumas de Brás Cubas são constituídos em primeira pessoa. Ou seja, as histórias são narradas a partir de um ponto de vista parcial, subjetivo e intencionado, contrariando a presença onisciente do narrador tradicional. Neste sentido, a maneira como Bentinho aparece na primeira cena de Dom casmurro, escondido e a espiar é bastante significativa. Estas experiências contadas se caracterizam impressões dos acontecimentos e não os acontecimentos de fato:

Ia a entrar na sala de visitas, quando ouvi proferir o meu nome e escondi-me atrás da porta. A casa era a da rua de Mata-cavalos, o mês novembro, o ano é que é um tanto remoto, mas eu não hei de

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trocar as datas à minha vida só para agradar às pessoas que não amam histórias velhas; o ano era de 1857. (ASSIS, 1971, p. 9)

É por meio deste procedimento que acontece toda ambiguidade no mais famoso romance brasileiro: Capitu traiu ou não traiu Bentinho? A resposta é impossível, pois se trata de um ponto de vista parcial do suposto traído, perspectiva de quem conta a história. O mesmo narrador que se vê envolvido por Sancha, com ciúme doentio de Escobar, deduz a traição e rejeita o filho por isso. Estamos tratando, portanto, da profundidade de um narrador afetado pela sua subjetividade, por suas peculiaridades e impressões emotivas que podem tê-lo influenciado para tal conclusão.

Em Brás Cubas, o emaranhado de impressões é também notável. O narrador impõe sua autoridade sobre suas memórias, mistura as reflexões melancólicas de um defunto com as reminiscências romanescas de uma vida longínqua: um réu confesso da subjetividade que o compõe. Tem-se, portanto, um ponto de vista sobre fatos que podem ser colocados em cheque. Brás Cubas é um narrador, por vezes arrogante, por vezes despeitado, por pouquíssimas vezes satisfeito com sua condição humana, por muitas solitário e melancólico. Trata-se de um narrador essencialmente psicológico e submerso a seus pensamentos labirínticos e próprios. Sem pressa, por meio da mente do narrador, compõe-se uma anedota frustrante em relação aos enredos tradicionais, e instigante pela maneira que inova a literatura de seu tempo.

Os romances tradicionais trabalhavam com a ideia de um molde predeterminado que seguia na maioria das vezes uma linearidade que tinha, entre outros aspectos, a apresentação dos personagens, o conflito pelos quais eles atravessam no decorrer da história, o clímax e o desfecho: o final feliz ou o sacrifício do herói. Nota-se que nos romances machadianos aqui estudados esta linearidade é colocada à prova. É interessante atentar para o fato de que a constituição destes romances não se dá somente a partir das duas histórias de amor, mas também por meio da composição de toda a narração dos protagonistas. Neste sentido, têm-se digressões constantes nas duas obras: Brás Cubas retoma as peripécias da vida, Dom casmurro se remete às meninices com Capitu, ou ainda a outros tempos de adulto, já com a família constituída, retornando constantemente ao momento em que escreve o romance, em uma solidão efetiva e notória para o narrador. Estes fatores tornam as duas obras absolutamente não lineares e absolutamente novidadeiras:

Mas é tempo de tornar àquela tarde de novembro, uma tarde clara e fresca, sossegada como a nossa casa e o trecho da rua em que morávamos. Verdadeiramente foi o princípio da minha vida; tudo o que sucedera antes foi como o pintar e vestir das pessoas que tinham de entrar em cena, o acender das luzes, o preparo das rabecas, a sinfonia... Agora é que eu ia começar a minha ópera. "A vida é uma

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ópera", dizia-me um velho tenor italiano que aqui viveu e morreu... E explicou-me um dia a definição, em tal maneira que me fez crer nela.

Talvez valha a pena dá-la; é só um capítulo. (ASSIS, 1971, p. 16)

Em Memórias póstumas de Brás Cubas subverte-se completamente a linearidade. As histórias românticas terminavam na morte e/ou na glória. A morte eternizava o herói e, por consequência, a glória eterna do mesmo. A morte em Brás Cubas promove exatamente o contrário, condiciona a origem de um narrador já colocado numa eternidade solitária. O fim do “herói” dá vida a um anti-herói morto sem glórias, sem homenagens fúnebres. Não se trata, portanto, da glória eterna, mas sim da lembrança e da tormenta eternas, numa lógica narrativa às avessas. Como se não bastasse o procedimento, o autor explica isso a seus leitores, num processo educativo contra o romance tradicional:

Algum tempo hesitei se devia abrir estas memórias pelo princípio ou pelo fim, isto é, se poria em primeiro lugar o meu nascimento ou a minha morte. Suposto o uso vulgar seja começar pelo nascimento, duas considerações me levaram a adotar diferente método: a primeira é que eu não sou propriamente um autor defunto, mas um defunto autor, para quem a campa foi outro berço; a segunda é que o escrito ficaria assim mais galante e mais novo. Moisés, que também contou a sua morte, não a pôs no intróito, mas no cabo; diferença radical entre este livro e o Pentateuco. (ASSIS, 1960, p. 21)

Quanto à apresentação dos personagens dos romances, é interessante notar que a técnica machadiana é minuciosa, caracterizando-os detalhadamente. Em Dom casmurro o narrador descreve um a um dos moradores da casa na Rua Matacavalos, os convivas de Bentinho. Vale salientar que os personagens não são planos, possuem profundidade e complexidade, como se tivessem vida própria e caminhassem pelo espaço ficcional independentes da narração. José Dias é o exemplo emblemático ao pensar nesta característica, ao mesmo tempo em que o personagem se revela um malandro, um mentiroso, o agregado se constitui como uma figura paternal, reta e um exemplo moral a ser seguido por Bentinho. Ele engana a família, mas mesmo com ares artificializados convence a todos a gozarem de sua convivência:

Nem sempre ia naquele passo vagaroso e rígido. Também se descompunha em acionados, era muita vez rápido e lépido nos movimentos, tão natural nesta como naquela maneira. Outrossim, ria largo, se era preciso, de um grande riso sem vontade, mas comunicativo, a tal ponto as bochechas, os dentes, os olhos, toda a

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cara, toda a pessoa, todo o mundo pareciam rir nele. Nos lances graves, gravíssimo.

Era nosso agregado desde muitos anos; meu pai ainda estava na antiga fazenda de Itaguaí, e eu acabava de nascer. (ASSIS, 1971, p.

11)

Brás Cubas, por sua vez, nos revela a complexidade de Marcela que tem algumas aparições no romance. A primeira é triunfal, bela e interesseira, desmitificando o papel das mulheres nos romances românticos: "(...) amiga de dinheiro e de rapazes" (ASSIS, 2007, p. 31). A personagem é, primeiramente, inescrupulosa, ambiciosa, charlatã maravilhosa, linda, e bastante atraente aos olhos de um Brás Cubas que se denomina um mocetão garboso. Posteriormente, este mesmo narrador nos apresenta outra Marcela amarela e decadente, desprezando-a com a humanidade que lhe é peculiar:

Ao fundo, por trás do balcão, estava sentada uma mulher, cujo rosto amarelo e bexiguento não se destacava logo à primeira vista; mas logo que se destacava era um espetáculo curioso. Não podia ter sido feia; ao contrário, via-se que fora bonita, e não pouco bonita; mas a doença e uma velhice precoce destruíram-lhe a flor das graças. As bexigas tinham sido terríveis; os sinais, grandes e muitos, faziam saliências e encarnas, declives e aclives, e davam uma sensação de lixa grossa, enormemente grossa. Eram os olhos a melhor parte do vulto, e aliás tinham uma expressão singular e repugnante, que mudou, entretanto, logo que eu comecei a falar. Quanto ao cabelo, estava ruço e quase tão poento como os portais da loja. Num dos dedos da mão esquerda fulgia-lhe um diamante. Crê-eis, pósteros?

essa mulher era Marcela. (ASSIS, 1960, p. 102)

É possível perceber, portanto, nestas duas aparições de Marcela, tanto a transformação da moça espanhola, quanto à mudança de percepção do protagonista. Evidencia-se assim, a profunda metamorfose em ambos os personagens, ratificando, neste sentido, a complexidade dos habitantes ficcionais nos romances machadianos.

Ao considerar os exemplos mencionados, é interessante reafirmar o caráter autoteórico das narrativas aqui selecionadas. Ao mesmo tempo em que os romances estabelecem uma nova maneira de narrar, uma nova maneira de lidar com o tempo, e, por conseguinte, com a linearidade nas narrativas, propõem-se novas complexidades aos personagens, negando diretamente o cânone estabelecido, o romance romântico. Discute-se então, a partir das escolhas explícitas nos textos, outra maneira de

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conceber e constituir a literatura.

Em Dom casmurro e Memórias póstumas de Brás Cubas constitui-se uma literatura não linear, ficcionalizada a partir de um labirinto temporal, com a ordem dos elementos narrativos às avessas, com narradores parciais e subjetivos, com personagens profundos e aparentemente independentes. Estas obras, já na estrutura do texto, explicitam a concepção de autorreflexividade: o potencial da obra literária em teorizar sobre a própria literatura.

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